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Novo SEC, novo OE: o Património no Estado (Parte II: políticas)


Falámos de pessoas no nosso anterior editorial e de como, de forma crescente, o Estado teria de recorrer a uma diversidade de naturezas profissionais – profissionais liberais, empresas, associações sem fim lucrativos – para levar a cabo com sucesso a sua missão na área do património.

Importa então discutir qual é a missão do Estado neste sector. Sabemos o que diz a Constituição (“proteger e valorizar” (artº. 9, alínea d), assim como garantir as condições de “fruição” (artº. 78, ponto 1). Vejamos o que se passou nos últimos 30 anos no campo da conservação e restauro de monumentos: até ao surgimento do Instituto Português do Património Cultural, as intervenções em património eram conduzidas e, em alguns casos – como no património móvel ou integrado – executadas pelos organismos do Estado. Esta situação decorria do facto de haver pouco pessoal formado especificamente nas áreas da conservação e restauro, e deste, em grande parte, estar integrado no Instituto José de Figueiredo (IJF). A missão do Estado de “proteger e valorizar o património cultural do povo português” era assim interpretada num sentido literal, cabendo aos organismos públicos competentes seleccionar o bem a intervencionar, providenciar orçamento para a acção, formar os técnicos que iriam intervir, e construir uma equipa preparada para o efeito. Tudo em casa.

Foi o caso das importantíssimas Brigadas de Pintura Mural do IJF que, conduzidas pela “militante do património” Teresa Sarsfield Cabral, resgataram muitos exemplares de pintura mural por Portugal fora, deslocando-se a locais inóspitos no país dos anos 70 e 80, com enormes dificuldades de acessibilidade, de alojamento e com condições de trabalho dificilmente imagináveis nos nossos dias.

Um exemplo das intervenções das Brigadas de Pintura Mural do Instituto José de Figueiredo, aqui, na Igreja Matriz de Vila Ruiva, Cuba, Alentejo.

Porque é que já não existe a Brigada de Pintura Mural do IJF? Será que a pintura mural deixou de ser protegida pelo Estado português enquanto manifestação artística merecedora de investimento público? Claro que não. Deu-se antes um importante e saudável fenómeno que poderíamos classificar de “progresso do saber”: mais gente ficou a saber do métier com a criação e aumento de número de formações específicas neste campo; e estes novos técnicos, em maior número, acabaram, parte significativa de entre eles, por criar as suas micro-empresas, especializadas, normalmente, em determinado património móvel ou integrado. O Estado passou assim a seleccionar o bem público a ser intervencionado, providenciar orçamento para a acção, lançar concurso público ou efectuar um convite para ajuste directo e a fiscalizar – por vezes directamente, por vezes recorrendo a um fornecedor externo – a intervenção levada a cabo pela empresa contratada para o efeito. Ou seja, mantendo a componente inalienável da sua missão mas executando-a com a melhor gestão possível do ponto de vista financeiro: sem encargos permanentes com a equipa especializada em causa; com maior rapidez de execução da obra; e assegurando a qualidade da mesma. A pintura mural continua a ser intervencionada no nosso país, agora por um naipe de empresas actuantes na especialidade.

Esta transferência de uma actuação monopolista por parte do Estado terá de acontecer, inevitavelmente, a curto prazo, noutros campos do sector patrimonial pelos motivos que tivemos oportunidade de explanar no nosso anterior Editorial. Alguma perspectiva histórica de evolução do sector permite-nos constatar afinal que esta transferência não será mais do que a repetição do mesmo fenómeno que aconteceu já noutros campos da esfera patrimonial, como é o caso acima relatado da conservação e restauro em património móvel e integrado: surgimento em força de pessoal especializado; falta de recursos financeiros públicos para contratar pessoal; indução da criação de micro-empresas que executam o que outrora era levado a cabo pelo próprio Estado; criação de uma maior dinâmica na área.

Julgamos que este fim de monopólio deve ter lugar no campo concreto da gestão patrimonial. E deve acontecer de forma progressiva, começando pelas componentes que são mais claramente excêntricas à missão do Estado: não compete ao Estado criar lojas de merchandising nos seus monumentos, palácios e museus....Não compete ao Estado promover sistemas de visita guiada eficientes e adaptados às múltiplas disponibilidades de consumo dos clientes / visitantes...Não compete ao Estado desenvolver programas de festas de aniversário e actividades de férias em museus e monumentos para as crianças...Acções (negócios?), produtos claramente de natureza comercial.

Concessionar restauração parece mais evidente para o sector público, eventualmente tanto pelo reconhecimento da sua total e natural ignorância do funcionamento do sector; como ainda por todo o conjunto de pré-requisitos e regulamentos a que esta actividade obriga.

Ao Estado compete, em nosso entender, definir a estratégia a longo prazo (10 anos) – a política patrimonial –, assim como definir o programa de acção a curto prazo com objectivos qualititativos e quantitativos bem expressos. E desse programa, entre muitos outros pontos, deverão fazer parte a lista de bens a intervir e consequente orçamento; planeamento dessas intervenções à escala nacional; os serviços de fruição patrimonial a garantir ao público distinguindo entre serviços considerados de “serviço público” e “serviço de natureza comercial”; as linhas de acção complementar que possam contribuir para o aumento de receita de forma significativa, linhas que resultam da visão macro sobre o sector, assim como resultam da visão integrada entre os diferentes equipamentos, serviços e equipas sob a alçada do Estado e da sua imperiosa articulação com os fornecedores externos.

Ao Estado compete planear, promover, monitorizar a salvaguarda e a valorização do património cultural e, subjacente a tudo, defender o interesse público: precisamos muitíssimo de quem reflicta de forma macro, de quem se posicione sempre num “nível superior”, de quem tenha uma “big picture” no seu horizonte visual para que, depois, cada um dos diferentes agentes, públicos ou privados, ocupe o seu lugar nesse puzzle da operação regular o mais eficientemente possível. Para que o património fique a ganhar, mas também o erário público, e aumentando a probabilidade de garantir, na justa medida, o cumprimento da componente de serviços ou o alcance da parcela da sociedade que, de alguma forma, não pode ser assegurada ou não consegue ver os seus direitos garantidos senão pelo Estado.

Mas não será uma ilusão pensar que as regras pelas quais se rege uma loja de produtos de merchandising na área patrimonial não carece igualmente do mesmo know-how específico, de um "foco" exclusivo e de uma orientação comercial muito forte? Quais os benefícios de não considerar esta dimensão com o seu devido peso? Eventualmente, a solução a alcançar deveria ser um "in between" uma loja exclusivamente orientada para os resultados comerciais e um espaço estritamente de divulgação cultural. Esta clarificação de competências é imprescindível para que não continuemos a ter um Estado que assume matérias, missões que lhe são extrínsecas, retirando consequentemente lugar ao surgimento de actores externos e que desempenhariam serviços de natureza eminentemente comercial de forma muito mais intuitiva.

Estar ao serviço do património é um direito que assiste a todos. Fomentar políticas que permitam este tipo de acção é um dever que compete ao Estado. Afinal, defender o património, garantir a sua melhor e máxima fruição e criar mecânicas de salvaguarda sustentáveis também passa, e muito, por um sector sólido, rico em diversidade de parceiros e profissionais, criativo nas soluções apresentadas, saudavelmente competitivo e com capacidade de contratar os agentes mais enriquecedores da oferta cultural que se quer disponibilizar. De facto, nunca é de mais sublinhar que o património pertence a todos e que existe para todos nós.

Catarina Valença Gonçalves

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