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Activação do Património


Estreou recentemente O Cônsul de Bordéus, um filme de Francisco Manso e João Correa que activa o nosso património de uma forma extraordinária. Divulga o auge da carreira diplomática de Aristides de Sousa Mendes, um grande humanista que desobedeceu directamente a Salazar para defender a vida humana durante o holocausto.

Produzido por José Mazeda, o filme presta homenagem nacional a este grande homem que arriscou toda a sua carreira para salvar vítimas da 2ª Guerra. Rodado integralmente em Viana do Castelo, a obra divulga de uma forma subtil o património português - não só pela celebração da memória deste grande Homem mas também pelos detalhes (toalha com Bordados de Viana, cabrito assado, o Santuário de Santa Luzia).

Nascido em Julho de 1885 no seio de uma família beirã católica, na aldeia de Cabanas de Viriato (Carregal do Sal, Viseu), Aristides licenciou-se em direito na Universidade de Coimbra. Em 1910 ingressa na carreira diplomática que o leva a vários pontos do mundo, em particular a Bordéus, onde exerce as funções de Cônsul até Junho de 1940 (período retratado pelo filme).

Casou com Maria Angelina em 1909 com quem teve 14 filhos, nascidos em vários pontos do mundo: Zanzibar, Brasil, Estados Unidos, Espanha, Bélgica e Portugal. Conviveu com as elites nacionais e internacionais, nomeadamente o dramaturgo Maurice Maeterlinchk (Prémio Nobel da Literatura de 1911), o Sultão de Zanzibar (que foi padrinho de dois dos seus filhos), o Rei Leopoldo da Bélgica e até Einstein.

Sousa Mendes poderia ter limitado a sua persistência e coragem humanitária a Bordéus mas não o fez: acompanhou refugiados em vários pontos fronteiriços entre França e Espanha e alargou a sua jurisdição a outros consulados. Ousou emitir vistos fora de portas, preparando verdadeiras linhas de montagem nas ruas para salvar milhares de refugiados. Acolheu pessoas na sua residência consular em Bordéus e na Casa do Passal em Cabanas de Viriato.

Estima-se que tenha salvo cerca de 30000 pessoas. Chaim Hersz Kruger, rabino de Antuérpia, no seu testemunho ao Yad Vashem em 1966, cita Aristides: “se milhares de judeus podem sofrer por causa de um católico então é certamente permitido a um católico sofrer por tantos judeus. Eu não podia agir de outro modo e por consequência aceito com amor tudo aquilo que me aconteceu”.

Salvou polacos, austríacos, checos, ingleses, belgas, holandeses, franceses e judeus. Este acto de humanidade valeu-lhe o afastamento da carreira diplomática, a perseguição pela polícia política e uma condenação para toda a vida. Recebeu uma nota de culpa com 15 artigos, onde foi acusado de ter emitido vistos indiscriminadamente, forçado os vice-cônsules de Bayonne e Toulouse a fazerem o mesmo, entre outras acusações.

Aristides de Sousa Mendes contactou vários elementos do Governo, embaixadas estrangeiras, representantes da Igreja Católica, entre outros, para reaver o seu bom nome e a reforma a que tinha direito por ter representado o Estado Português durante mais de três décadas. Sem qualquer sucesso.

Na miséria, em Lisboa, foi acolhido pela comunidade judaica que custeou o seu apartamento na Av. Barbosa du Bocage e alimentou a sua família na cozinha económica israelita. Os anos foram passando e as dificuldades aumentando, ao ponto dos filhos serem forçados a emigrar pelas retaliações contra a família.

Morreu a 3 de Abril de 1954 no Hospital da Ordem Terceira, envergando uma túnica de franciscanos. Morreu em solidão sem ver revogada a sentença que o lançou à desgraça.

Ironicamente, o próprio Salazar aproveitou-se dos actos de Aristides tendo dito, num discurso pós-guerra na Assembleia da República: “quaisquer outros na nossa situação acolheriam refugiados, salvariam e agasalhariam náufragos, ajudariam a suavizar a sorte dos prisioneiros por dever de solidariedade humana. Pena foi não termos podido fazer mais”(1).

Em 1966 Israel reconheceu-o como Justo entre as Nações mas só em 1989 a Assembleia da República Portuguesa reintegra Aristides de Sousa Mendes na Carreira Diplomática. Depois da sua morte, os filhos fizeram tudo para limpar a honra do pai tendo criado a Fundação Aristides de Sousa Mendes para dignificar a sua memória.

A história de Portugal lançou ao anonimato este Homem, exemplo de altruísmo e bravura na defesa da vida humana. Sousa Mendes desempenhou “talvez a maior acção de salvamento feita por uma só pessoa durante o holocausto” (2).

Citando Simon Peres, “If you’ll take away from our people the memory, we shall not have a future. If you’ll take away our heritage we shall not have a vision. And we need a memory and a future, a heritage and a vision.” Preservemos a memória de Aristides de Sousa Mendes para que a vida humana esteja sempre acima de qualquer loucura desumana.

1 António de Oliveira Salazar citado por Miguel Júdice na reportagem Os Grandes Portugueses (RTP).

2 Historiador Yehuda Bauer, no livro “A History of the Holocaust”.

Último retrato de Aristides, na Av. da Liberdade, dias antes de falecer. 1954. Colecção particular da família de Aristides de Sousa Mendes

Aristides e o rabino Kruger. 1940.

Colecção particular da família de Aristides de Sousa Mendes

Fotografias da Casa do Passal Documentário RTP sobre Aristides de Sousa Mendes

Trailer do filme

Testemunho de Henri Deutsch, salvo por Aristides

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