Um Museu é um espaço de liberdade. Um refúgio e um escape. A escola e o recreio. O mundo lá fora, o universo dentro de nós. O Museu é tudo isto, e muito, muito mais - dentro de ‘quatro paredes’. Mas se, em condições ideais, esta é uma receita difícil de seguir, podemos começar a ter uma ideia de como é asfixiante viver e trabalhar nos nossos museus por estes dias.
Neste momento, um único tema ocupa a atenção do país inteiro. E por tabela, temos os nossos museus reduzidos a repensarem-se aos pedaços, seja em função de uma dramática falta de recursos técnicos e humanos, seja em função dos mais variados problemas logísticos e institucionais. Isto já para não falar dos mais recentes avanços e recuos reformadores, que ameaçam lançar (de novo) no caos a já mil vezes reinventada estrutura institucional da Administração Pública do Património Cultural e dos Museus.
Num mundo dedicado à conservação e ao estudo do nosso passado, da nossa identidade e da nossa cultura, pressente-se uma estranha ausência de futuro.
Por tudo isto - e por muito mais - é cada vez mais difícil encontrar nos nossos Museus o espaço e o tempo para pensar e discutir o essencial: o seu futuro.
British Museum, Reino Unido
Qualquer que seja a nossa posição face a este turbilhão político e institucional, poucos poderão negar que nos próximos anos, a sobrevivência de muitas instituições estará, mais do que nunca, directamente dependente da sua relação com os seus públicos.
E por isso mesmo, este é precisamente o momento em que se torna vital repensar o papel do Museu na longa lista das instituições culturais que, no sentido mais amplo, enquadram o contacto dos cidadãos com a nossa cultura.
A sua razão de existir deve ser explícita. A sua missão clara. O seu lugar inquestionável.
Num passado não muito distante, na sociedade moderna, industrializada, dominada por um sistema educativo de massas e pela profissionalização em larga escala, o Museu encontrou o seu lugar natural ao da Escola, como mais uma instituição educadora.
Partia-se do princípio que o acesso à cultura e ao património garantiam a sua apropriação, de forma transversal, enriquecendo o quotidiano de todos os cidadãos para lá das diferenças de classe. O privilégio do contacto com o conhecimento e com a experiência estética era estendido a toda a sociedade. E num momento em que tudo parecia replicável graças à produção industrial, o objecto único, original reforçava estas qualidades.
Mais tarde, na transição para uma sociedade de serviços, o Museu acompanhou esta evolução estendendo o seu papel de prestador de serviços educativos a novas formas de ‘edutainment’ e, até, do turismo cultural.
Merchandising no Museu de História Natural de Londres, Reino Unido (Howard Lake, 2009)
Numa lógica social em que o consumo é também um acto cultural, o Museu cresceu como instituição que oferece serviços periféricos, criando valor no acto da visita. Podemos visitar um Museu e aprender com objectos únicos, almoçando no restaurante do Museu, passeando pelo jardim e, no final, comprar uma recordação (porventura uma réplica) da experiência.
Cafetaria no MOMA, Nova Iorque, EUA (Ana Carina Lauriano, 2011)
Mas hoje, se discutimos o papel do Museu, fazêmo-lo sob o olhar implacável de uma sociedade digital. Podemos até ter a tentação de querer reduzir o impacto da tecnologia aos interfaces e aos gadgets que pululam por alguns museus e sítios patrimoniais, falando sobre a perda da experiência do objecto nestes contextos em que, em algumas instituições, as colecções desapareceram ou nunca, sequer, existiram.
Museu do FC Barcelona – Camp Nou, Espanha (DavidFlores, s/d)
No entanto, o digital e as suas exigências estão hoje muito para lá desta discussão. Para o Museu - com uma história institucional relativamente recente, de apenas duas ou três centenas de anos - esta profunda transformação das formas de socialização e comunicação em curso arrisca-se a redefinir o seu próprio espaço vital: o Museu foi criado perante um paradigma societal que já não existe.
A produção industrial globalizou-se e o consumo é, muitas vezes, uma afirmação de identidade. A Escola como instituição está em crise e a própria Universidade procura uma missão que ultrapasse os seus limites endogâmicos de reprodução profissional. O trabalho está a deixar se ser visto como forma de conferir um papel social ao indivíduo, que se confronta com um futuro em que acumula períodos de desemprego com o desempenho de diferentes profissões. E a informação deixou de estar objectificada no livro, nos órgãos de comunicação social, nos líderes de opinião e nas autoridades com o Museu e a Escola, passando a existir de forma líquida, produzida, replicada e transformada em tempo real.
Visita do fundador da Wikipedia, Jimmy Wales, ao Museu da Criança em Indianapolis, EUA, on September 13, 2011 no âmbito de uma parceria entre o Museu e a Wikimedia
Muitos defendem, pensando no papel dos blogues e das redes sociais na sua comunicação, que o Museu deve aceitar a sua perda de autoridade numa lógica de comunicação horizontal, pulverizada pela multiplicação de nichos de interesse.
No entanto, a experiência demonstra que - não obstante a diversidade de fontes e a exploração hiperligada do conhecimento - os públicos esperam do Museu de hoje o mesmo que esperavam do Museu do passado: a autoridade para hierarquizar o conhecimento, estabelecendo cânones e diferenciando aquilo que é importante do que não é.
E a explosão da informação que acompanha esta revolução digital em curso, representa ela própria, em boa parte, uma avalanche diária que exige, cada vez mais, a existência de instituições centrais ao tratamento, selecção, organização, hierarquização e comunicação do conhecimento.
Plataforma Play Miró da Fundação Joan Miró, Espanha
A sociedade digital poderá representar uma era de ouro para os Museus graças à forma como este conhecimento se torna verdadeiramente livre, sendo possível criar camadas de significados em cima de um significante, neste caso único, tangível, como um objecto ou uma colecção.
Se conseguirmos abandonar a lógica politicamente correcta da comunicação directa com os públicos como um fim em si mesmo, esta conjugação de desafios e oportunidades parece encerrar em si um futuro brilhante para o Museu.