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Notas sobre Conservação e Restauro; as possíveis, na procura de uma linguagem comum


Personalizando o presente texto, após ter aceite o desafio para participar neste bel projecto da PATRIMÓNIO.PT, inovador nos moldes e estimulante pela equipa envolvida, pelas suas mais diversas visões e formas de actuar no perseguir de um objectivo comum, gostaria que este espaço pudesse ser, de acordo com os “editores”, um espaço de encontro entre colegas da C/R e não só, mas também, uma oportunidade para contribuir com conteúdos pertinentes dentro da nossa área de actividade, a que esta plataforma confere uma maior divulgação.

Tendo ficado então perante uma primeira “encomenda” – esta primeira em solitário –, havia que ter argumento e texto para trazer a esta “praça”. Nunca fui homem das escritas, tendo sempre tentado ser um operacional, um técnico da prática do acto da conservação e menos da sua divulgação ou discussão académica. Por outro lado, neste nosso tempo algo desarrumado nos moldes e na falta de um detonador que me levasse, como no passado sucedeu, a algumas noitadas de escrita inspiradora e terapêutica, pus-me a reler os poucos textos que escrevi desde 1994 para jornais e revistas, alguns deles em colaboração com colegas. Talvez por receio de me repetir decidi fazê-lo, revendo os textos e relembrando o dito e a evolução que tivemos na disciplina da C/R nestes quase 20 anos em Portugal. Muita estrada fizemos, na formação, na legislação, em projectos e na sua concretização, mas a estes passos feitos avante, outros tornaram para trás, num retrocesso de algumas práticas.

Desde o primeiro artigo escrito para o Público, publicado em 11 de Maio 1994, “A conservação do património construído em pedra”, ao último, saído recentemente no Anuário do Património 2012, “O mercado nacional da conservação e restauro do património – notas soltas”, escrito em conjunto com o colega José Artur Pestana, reencontrei o denominador comum de alguma insatisfação e da necessidade da identificação de falhas em aspectos basilares como o da linguagem ou o dos conceitos do saber, qual suporte do fazer, na procura de um melhor contexto para praticar a nossa privilegiada profissão. A profissão do C/R, nas suas diferentes formas de expressão, interage necessariamente com a obra de arte (adopto por simplificação este termo) e esta, desde a sua concepção, passando pela concretização física até à sua epifania (necessária à razão de ser obra de arte), é em si um projecto contínuo do homem. Recebemo-lo e devemos transmiti-lo, como por tantos e tantas vezes salientado. No acompanhamento deste processo contínuo devemos ter consciência dos nossos limites, também como actores intervenientes neste processo (sem poder de assinatura), projectamos e agimos com os nossos conhecimentos e ferramentas disponíveis, sendo, por isso também, potencialmente perigosos. Devemos trabalhar para o evitar, para não “assinar a obra”, porque fazendo-o, adulteramo-la para sempre. No entanto, agindo criticamente, responsabilizamo-nos pelas “alterações” intrínsecas a qualquer intervenção. Tantos erros são possíveis, devemos admiti-lo; um está logo à partida na simplificação do processo de (re)conhecimento da obra de arte, no saltar de etapas da metodologia a adoptar, no tratar o problema sem rigor de método e este deseja-se que seja seguro, documentado e defensável conceptualmente. O perigo está no praticar um não-projecto, o romper com a obra, não desenvolvendo um processo de reconhecimento e estudo da própria obra de arte. Este é necessário à “desconstrução” da obra de arte nas suas componentes materiais, técnicas, estéticas, históricas, sociológicas, etc., e, por conseguinte, como suporte à intervenção de C/R. Imaginemos por um instante o delicado momento da limpeza de uma superfície com valor histórico-artístico, que é uma das fases recorrentes na C/R. Imaginemos essa obra como uma pintura mural, por exemplo, coberta por depósitos de sujidade. Temos claro que a acção se desenrolará na matéria que constituiu a sua superfície, qual interface com a identidade e função de transmitir a mensagem intrínseca ao objecto que queremos conservar. Podemos, igualmente, encarar o acto de limpar, de remover depósitos superficiais, como uma micro-escavação arqueológica, uma remoção de matéria por camadas, como se de micro unidades estratigráficas se tratassem; sem esquecer que esta é uma acção em si irreversível e potencialmente irreparável. Quando estas operações correm mal perde-se a obra de arte, fica-nos a matéria de uma obra desfigurada, como ocorreu recentemente no caso do tão falado Ecce Homo do Santuário da Nossa Senhora da Misericórdia de Borja, em Espanha, crónicas e eventos dos quais também nós, por cá, temos alguns registos. São exemplos de não-projectos, presentes no espírito de cada época, como na nossa. Mas no nosso tempo o erro (verdadeiro ou não) torna-se velozmente público graças aos benefícios da rede – facilidade que, para quem a souber usar correctamente, poderá ser uma vantagem em prol de uma maior atenção sobre as fragilidades e na solicitação de rigor técnico no agir. Devemos ter consciência de que erros destes estão potencialmente sempre presentes, razão pela qual as questões do restauro, depois da conservação, da preservação e prevenção deviam, nas suas abrangências temáticas com especialidades diversas, ser objecto de atento estudo, avaliação e acção, no interagir com a obra de arte; e todos estes momentos necessitam do seu próprio tempo, para que não sejam eventualmente comprometedores. Devemos ter igualmente a consciência de que o acto técnico da C/R deve assentar num contínuo conhecimento da obra de arte e que este, na nossa profissão, pressupõe, correntemente, mexer nas peças, antes mesmo de podermos ter condições para falar em manutenção ou conservação preventiva. Assim, deve dominar-se um conjunto de técnicas, solidamente alicerçadas numa metodologia de trabalho rigorosa e numa análise crítica contínua. Mas o domínio de uma técnica obtém-se com a prática, com o repetir, com a aquisição de experiência. Pode ser prematuro considerar um profissional apto, quando ouviu ou viu fazer, e, no limite, praticou correctamente uma vez. O repetir, o treinar, determina o domínio, o praticar correctamente confere conforto no praticar da técnica, mesmo que aplicada em contextos diferentes. Fundamental é a capacidade de compreender e gerir o maior número de informações, avaliando cada situação, para a tomada de decisão o mais sustentada possível, minimizando o erro. Um profissional de C/R consciente na análise é mais capaz e eficaz no evitar ou no resolver dos problemas que lhe vão surgindo. Esse profissional trabalha sobre a obra de arte e sem ela extingue-se o senso da profissão, que deixa de ser reconhecida, de ter função social. Por outro lado, e no limite deste percurso, a obra de arte necessita de ser conservada e para isso serve-lhe, se correctamente executado, um conjunto de actos técnicos realizados por C/R sobre a sua matéria constituinte. Sem eles pode perder também ela a sua função, deixando de ser reconhecida enquanto obra de arte. Neste tempo de trabalho estandardizado e temporário, do trabalho tendencialmente precário e flexível, perde-se fácil e rapidamente a profissão, o mester. Deixa-se de saber fazer, de dominar as técnicas, pois faz-se de tudo um pouco e menos bem. Também a C/R é filha deste tempo. O perigo está em, paulatinamente, perdermos muito de ambos os lados: do da obra de arte e do de quem, nas diversas formas, por ela zela, sem nos apercebermos que o estamos a fazer. Todavia, sabemos que existe o belo e com ele temos um contrato, que devemos cumprir.

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