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Ser Museu… da necessidade ao desafio de definir a missão


Liliana Henriques Aguiar

Mariana Jacob Teixeira

Museólogas, Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão


@Joana de Rosa
@Joana de Rosa

A presença de museus em Vila Nova de Famalicão remonta ao início da década de 1920, com a abertura ao público da primeira casa-museu de Portugal – o Museu Camiliano. Nas décadas seguintes, assistiu-se à inauguração de vários museus repletos de história, de memória e de identidade, onde a cultura é entendida como crucial para o exercício da cidadania.


A 26 de novembro de 2012, com a assinatura da Declaração de Princípios[1], constitui-se a Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão (RMVNF). À luz da Lei Quadro dos Museus Portugueses, a RMVNF é composta por museus e coleções visitáveis do concelho, com diferentes tutelas, num total de doze: Casa de Camilo – Museu. Centro de Estudos; Museu Bernardino Machado; Museu Fundação Cupertino de Miranda – Centro Português do Surrealismo; Museu Nacional Ferroviário – Núcleo de Lousado; Museu da Indústria Têxtil da Bacia do Ave; Museu de Cerâmica Artística da Fundação Castro Alves; Museu do Automóvel; Museu da Guerra Colonial; Casa-Museu Soledade Malvar; Museu de Arte Sacra da Capela da Lapa; Museu da Confraria de Nossa Senhora do Carmo de Lemenhe e Museu Cívico e Religioso de Mouquim. É coordenada pelo Município através da sua Divisão de Cultura e Turismo.


Em 2017 iniciou-se um caminho conscientemente diferente. A RMVNF comemorou cinco anos com a exposição temporária “Lugares (In)visíveis” que esteve patente ao público na Casa do Território do Parque da Devesa (Vila Nova de Famalicão), entre 1 de abril e 3 de setembro, tendo atraído um total de 2 504 visitantes, sendo este um valor bastante representativo para o contexto local. Foi um projeto que nasceu da vontade conjunta dos elementos da RMVNF se articularem na construção de uma narrativa que através de um diálogo partilhado procurou contribuir para uma reflexão sobre o tema do Dia Internacional dos Museus 2017 “Museus e histórias controversas: dizer o indizível em museus”. Os objetos selecionados foram repensados numa perspetiva contemporânea onde “dar a ver” equivale a “dar a pensar”, permitindo uma discussão alargada e a criação de múltiplos pontos de vista. Este projeto aportou inovação de processo através da metodologia em rede, constituindo a primeira exposição em que efetivamente foram criadas ligações entre as diferentes coleções museológicas.


Exposição “Lugares (In)visíveis”. @Rui Vilaça.
Exposição “Lugares (In)visíveis”. @Rui Vilaça.

A par deste projeto expositivo foi implementado um diagnóstico interno que nos sensibilizou para a existência de carências nas áreas da formação profissional relacionadas sobretudo com o exercício das diferentes funções museológicas e com as condições das instalações e recursos financeiros e humanos. Limitações estas que, à luz da Lei Quadro dos Museus Portugueses, distinguem os elementos da nossa RMVNF como museu e coleção visitável. Deste universo, apenas três são credenciadas pela Rede Portuguesa de Museus e duas estão em processo de preparação de candidatura. Outras limitações relacionavam-se com uma divulgação pouco eficaz e uma fraca participação da comunidade local e, ainda, a falta de visibilidade e de reconhecimento, ao nível nacional, do trabalho que realizávamos. Uma outra limitação incidia no ténue sentimento de pertença à nossa rede, bem como nas formas de cooperação e programação entre as diferentes unidades museológicas e a inexistência de definição de temas interpretativos de acordo com os interesses e necessidades culturais e sociais do território.


Após o diagnóstico, conscientes do papel ativo que a RMVNF poderia assumir no seu território e da sua relevância, mas reconhecendo uma ação pontual (essencialmente em momentos de efeméride), considerámos urgente uma mudança de paradigma, procurando criar uma maior consciência do papel que a RMVNF poderia, efetivamente, assumir.


Para isto, desenvolvemos um processo que teve como base uma metodologia de mediação, participada e colaborativa, para a criação de uma estratégia que não se limitasse a uma rede de contactos. Ambicionámos refletir sobre o papel que cada museu desempenha, a sua missão e os desafios para o futuro que enfrenta no território onde está inserido. Só assim o trabalho em rede terá verdadeiramente sentido e poderá constituir-se como estratégia com objetivos educativos, sociais e culturais. Verificámos que seria necessário iniciar esta mudança de paradigma de atuação com uma reflexão sobre o que somos e o que queremos ser. Saindo de nós para olharmos para a sociedade e para o mundo, constatámos que deveríamos iniciar este processo pela missão, entendida como o coração e a alma de um museu.


Após uma primeira análise, concluímos que mais de metade dos museus da RMVNF tinham como missão uma série de funções e que os restantes não tinham missão definida. Neste sentido, desafiámos todos os museus – e a própria RMVNF – a criar uma proposta de declaração de missão.


O documento resultante deste exercício incluiria a visão, a missão, cinco objetivos, cinco ações e as palavras que inspiram as equipas de cada entidade. Serviria para comunicar com os diferentes públicos de forma clara, informativa e inspiradora. As declarações de missão, que orientam diariamente as diferentes atividades e decisões das equipas, são uma ferramenta essencial para a gestão de um museu e, consequentemente, das suas coleções. Finalmente, esta reflexão local enquadrava-se na reflexão promovida pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), a nível internacional, para a criação de uma nova proposta da definição de museu.


O processo acima descrito, teve como ponto de partida o workshop “Ser/Fazer Museu” da responsabilidade da Professora Doutora Alice Semedo, onde foi proposto, de forma simbólica, um “Plano de trabalho a 100 dias”, implementado entre novembro de 2018 e novembro de 2019.


Workshop “Ser/Fazer Museu”. @Eduarda Alves.
Workshop “Ser/Fazer Museu”. @Eduarda Alves.

Esta metodologia integrou momentos organizados em torno de documentos ou apresentações mais estruturadas, proporcionando uma compreensão compartilhada de conceitos, bem como de alguns enquadramentos mais teóricos. Integrou, ainda, abordagens mais informais e dinâmicas, que proporcionaram espaços de partilha e pensamento crítico, através da reflexão e discussão de questões em pequenos grupos e, posteriormente, com todas as partes envolvidas:


Momento 1 – Levantamento das missões existentes e dos documentos fundadores para reflexão sobre os conceitos e a razão de existência.


Momento 2 – Análise de exemplos de boas práticas de declarações de missão.


Momento 3 - Preenchimento de uma grelha com contributos para responder à visão (o sonho impossível, mas que queremos alcançar), missão (a razão de ser: o coração do museu), objetivos (o quê? quais os objetivos centrais?), ações correspondentes (como o faz? que estratégias utiliza?) e valores-chave.


Momento 4 – Revisão das grelhas através da criação de grupos de trabalho transdisciplinares para discussão colaborativa e construtiva.


Momento 5 – Síntese dos conteúdos das grelhas e revisão dos objetivos e ações correspondentes atendendo ao Código de Ética do ICOM para Museus, à Lei Quadro dos Museus Portugueses, aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, e ainda, aos documentos internos, como os programas museológicos, regulamentos e políticas/procedimentos relacionados com as diferentes funções museológicas, etc..


Momento 6 – Revisão científica, adaptação à linguagem clara e tradução para inglês das propostas de declaração de missão pela Acesso Cultura.


Momento 7 – IV Encontro da RMVNF com o tema “Ser Museu” que incluiu um dia de trabalho interno em formato team building e um dia aberto ao público com o debate “Ser Museu no século XXI” que teve como objetivo dar seguimento ao debate público gerado pela proposta para uma nova definição de museu pelo ICOM e a apresentação do livro “Definir a Missão…da necessidade ao desafio”. Este livro é o primeiro número da coleção monográfica “Ser e fazer museu no século XXI”, coordenada pela RMVNF, disponível gratuitamente online[2].


Debate “Ser Museu no século XXI”. @Diana Correia.
Debate “Ser Museu no século XXI”. @Diana Correia.

Estes momentos contribuíram para a criação de laços entre equipas e para avivar o sentimento da responsabilidade de cada membro na defesa da sua identidade e da identidade da RMVNF. Este processo de reflexão e construção conjunta foi acompanhado, numa perspetiva poética, pela criação de um objeto: uma toalha. As equipas foram convidadas a fazer uma intervenção artística sobre tecido, aplicando diferentes técnicas, para representarem cada museu, tornando-se um todo nessa relação em rede.

Toalha criada pelos museus da RMVNF. @João Macedo.
Toalha criada pelos museus da RMVNF. @João Macedo.

Foi, igualmente, produzido um vídeo[3] onde as pessoas que tornam possível a existência dos nossos museus, e da própria RMVNF, selecionaram 100 palavras que completam a frase “Museu é um lugar de...”. Ocupando a tela para declarar publicamente estas palavras, afirmam quem são e quem aspiram ser, dizendo o que fazem e o que sonham fazer, esperando que outras palavras lhes sejam devolvidas por aqueles que também fazem os museus: os públicos. Nem sempre foi fácil este caminho, mas os momentos de construção conjunta são promissores e todos acreditamos no potencial desta nossa Rede de Museus. Na verdade, talvez o papel social mais importante que os museus podem desempenhar seja a sua própria transformação em organizações conscientes do seu potencial de contribuir para mudar o mundo e a vontade de o fazer.


Texto adaptado a partir do artigo originalmente publicado em “Definir a missão… da necessidade ao desafio” (2019). Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão (ed.). N01, Coleção Ser e Fazer Museu no século XXI. Vila Nova de Famalicão: Câmara Municipal. ISBN 978-989-8012-62-3.

 

[1]Declaração de Princípios (2012). Aprovada pela Câmara Municipal na reunião de 25 de julho. [Em linha] In Boletim Cultural, III série, nº 6/7. Vila Nova de Famalicão: Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão. Disponível em https://www.famalicao.pt/_boletim_cultural, pp. 381- 390.

[2] Livro “Definir as missões… da necessidade ao desafio” disponível em: https://issuu.com/municipiodefamalicao/docs/redemuseu_livro

[3] Vídeo “Museu é um lugar de…” disponível em: https://youtu.be/HZB5a2CZr-4


As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico.


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