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Que farei com esta imagem?


Uma das situações com que frequentemente me deparo e me causam alguma perplexidade é a contradição hoje existente entre a facilidade de se documentar fotograficamente o que se estuda e o mau uso e destino que se dá a essas imagens.


Nos estudos relacionados com o Património, nomeadamente na área da Conservação e Restauro, a documentação fotográfica é muito importante. Não porque uma imagem vale mais do que mil palavras, mas porque a imagem é um poderoso apoio para a descrição das obras, quer à escala das mesmas (numa perspectiva artística ou numa perspectiva técnica), quer numa escala microscópica (escala exclusiva das imagens técnicas obtidas com o recurso a métodos de exame e análise). A acessibilidade dos equipamentos (a começar pela máquina fotográfica que muitos permanentemente transportam no bolso, quando não na ponta dos dedos das mãos), a prontidão com que no presente, graças aos desenvolvimentos tecnológicos, se faz uma fotografia (basta carregar no botão) e a fácil e rápida circulação das imagens digitais que dessa forma se obtêm, pode-se imaginar que trouxeram notórias vantagens para o trabalho de documentação e para o uso dessas imagens nas situações que delas carecem.


No entanto, na realidade, isso não me parece tão evidente.


Em termos de quantidade, é inegável o acréscimo de imagens disponíveis e incluídas nos documentos. Porém, muitas vezes, esse maior número de imagens é concomitante de uma redução do texto, como se aquelas substituíssem este, em vez de o complementar, ignorando-se que as imagens necessitam de uma interpretação que não pode ser deixada para o leitor, seja porque as imagens não são a obra, seja porque o leitor frequentemente não dispõe do conhecimento necessário para ele mesmo fazer essa interpretação ou não tem acesso às imagens com o detalhe e a qualidade indispensáveis. Como escreveu Saramago, as “imagens, sejam elas quais forem, precisam de uma palavra que as explique”. Neste contexto, imagem e texto não se substituem, antes se complementam, apresentando o texto os fios por onde e como deve o olhar ser conduzido na imagem, sem a qual, no entanto, dificilmente se acompanha o texto.


Deste equívoco, que leva a substituir o texto por imagens, são excelente ilustração os designados anexos ou levantamentos fotográficos dos relatórios de intervenções, como, por exemplo, os explicitamente exigidos pelo “Regime jurídico dos estudos, projectos, relatórios, obras ou intervenções sobre bens culturais classificados, ou em vias de classificação, de interesse nacional, de interesse público ou de interesse municipal” (Decreto-Lei n.º 140/2009). No que especificamente diz respeito à Conservação e Restauro, os relatórios de intervenções, elaborados ou não ao abrigo desse regime, frequentemente são um extenso depósito de fotografias com inegável efeito decorativo, mas escasso conteúdo informativo, que contrasta com um lacónico corpo textual. Mas o problema não se limita a esses relatórios e encontra-se igualmente noutros trabalhos elaborados por conservadores-restauradores, em que o texto, com mais ou com menos fotografias, é mínimo: o meu exemplo favorito é o do volume sobre “A Charola do Convento de Cristo: História e Restauro”, publicado pela DGPC em 2014, em que às 288 páginas dos 4 capítulos dedicados à História correspondem as 64 páginas dos 10 capítulos dedicados ao Restauro, ainda que neste caso o problema não resulte directamente do uso das imagens, mas dos problemas comuns em que ambos radicam.


Quanto à qualidade das imagens resultantes das facilidades do tempo que corre, usadas nos documentos, as minhas dúvidas são ainda maiores. Em primeiro lugar, quando se trata de fotografar, as exigências a respeito das condições e do domínio técnico, por vezes ao nível do faça-você-mesmo, não são tão elevadas como na época em que a fotografia documental não estava tão ao alcance de todos. Em segundo lugar, mas mais importante, são os tratos de polé a que frequentemente são sujeitas as imagens digitais, saídas da câmara fotográfica ou com outra origem. De uma forma geral, são objecto de continuada edição feita de modo pouco cuidado, trânsito por sucessivos documentos onde, frequentemente, são reduzidas e comprimidas automaticamente e, finalmente, montagens feitas com software inadequado para o efeito (especialmente o processador de texto). Resultado: imagens com resolução manifestamente insuficiente e visualmente atabalhoadas. Esta é a minha experiência, adquirida quer no ensino, quer na edição e publicação científica, aquém e além-fronteiras, mas não julgo que seja única. Ainda não há muito (2018), desabafavam e desculpavam-se os coordenadores de um volume nas páginas de apresentação do mesmo: “Apesar do esforço da equipa de design e de oportunamente terem sido solicitados aos autores os requisitos necessários dos ficheiros digitais de ilustrações, não foi possível reunir a sua qualidade gráfica em todos os casos, motivo pelo qual foram integrados ficheiros em baixa resolução”.


As consequências desta inabilidade no uso das imagens não se esgotam na forma como são incluídas nos documentos. Com dimensão incomensuravelmente maior e implicações mais gerais, as consequências manifestam-se também ao nível da preservação destas imagens – algo que é fulcral tendo em consideração a sua natureza documental. Antes de mais, o uso de equipamentos pessoais, a inerente mobilidade ou transitoriedade de alguns intervenientes (por exemplo, nos contextos de formação) e a precariedade de outros levam a que essas imagens nem sempre sejam arquivadas nas entidades que as deviam recolher. Além disso, quando são arquivadas, seja no formato original, seja nos formatos degradados a que dão origem, estão sujeitas aos problemas de preservação desses arquivos, sobretudo nas pequenas entidades sem explícitas responsabilidades a esse respeito e com reduzido orçamento, em resultado da natural degradação dos suportes digitais e da ausência de políticas de preservação, que, sendo problemas gerais e comuns à documentação fotográfica guardada noutros suportes, adquirem aqui características e consequências muito específicas, e da obsolescência tecnológica. Portanto, a memória que a documentação técnica digital pretende guardar está frequentemente exposta a estes novos riscos que a acessibilidade e as facilidades associadas aos procedimentos e aos formatos digitais e a sua imaterialidade tendem a ocultar.


Para terminar, volto ao início: causa-me perplexidade esta contradição entre o mundo digital em que vivemos e a propagada naturalidade com que nele se movem algumas gerações, por um lado, e, por outro lado, o mau uso e destino que às imagens digitais se dá, em particular as que são obtidas com objectivos documentais. Imagem do tempo?


Oficina de Restauro do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, c. 1948

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