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O que pode a ARTE num mundo em ebulição



O que pode a arte face a um mundo que insiste em reacender guerras, em escalar conflitos e em especializar-se em processos autodestrutivos?  O que pode a arte trazer à Humanidade? Trará de fato consigo algum poder transformador?


São antigas e longas as histórias de conflitos, de opressão, de segregação e de crises humanitárias que nos acompanham, de incómodos e opacidades1 na História e de conflitos relatados na comunicação social, e redes sociais. Arrastam consigo um peso difícil de gerir, que cria um alheamento da realidade apoiado num distanciamento que nos protege de sentir, de empatizar– porque se passa lá longe, quer nas geografias, quer no tempo, mas que trazem consigo um desalento e uma desesperança que se incrusta no presente e no futuro.  Que futuros nos permitimos então sonhar?


São novos, mas não tão novos, os alertas climáticos, nos gritos dos jovens face a um mundo que se sentem a perder e lutam por um acordar coletivo, para um alerta da real proximidade da destruição da nossa própria espécie, e de tudo o resto, neste egocêntrico Antropoceno em que vivemos.


Torna-se difícil encarar a vida e o dia a dia sabendo o pouco que podemos de fato dentro da nossa esfera de atuação contribuir para as mudanças necessárias, ou desejáveis e encontrar a resiliência em cada um de nós para não desistir.


Quando se trabalha em educação e formação de crianças e jovens este é um peso difícil de não sentir. Como equilibramos o constante desequilíbrio? Como humanizamos um mundo desumanizado? Como incentivamos a esperança, o sonho e a utopia com esta humanidade ainda em germinação? Como mantemos nestas pessoas pequenas o coração grande e disponível para o outro? Como projetamos com eles novas possibilidades para um mundo menos conflituoso, mais justo, equitativo e equilibrado? Como podemos ajudar a recuperar um mundo em convalescença?


Qual o sentido de uma educação artística em turmas com cada vez mais migrantes e refugiados que fogem das múltiplas guerras, opressões e desigualdades trazidas por crises políticas, sociais e climáticas? O que pode a arte e o fazer artístico nestes contextos e nestas vidas?  O que pode cada um de nós? O que pode o Nós?


A arte sempre existiu como retrato multifacetado de quem somos enquanto Humanidade, porque é intrinsecamente uma forma de nos compreendermos e ao mundo em que vivemos, de nos pensarmos e expressarmos. Então que retratos deixamos agora? Como pensamos e nos posicionamos? Como questionamos o porvir e como o projetamos?


A arte é pensamento e posicionamento, antes de ser expressão e representação. Inquieta-nos, põe-nos em questão, implica os nossos sentidos e sentimentos e pode ser transformadora de pensamentos, quiçá de comportamentos. Promove mudanças como uma sementeira viva que, se cuidada, pode prosperar e transformar.


É por isso um elemento fundamental no campo da educação potenciando o pensamento critico e divergente, o dissenso2 e o “pensar para além do possível”3, para encontrar novas possibilidades e lugares. Pode ajudar “a derrubar muros, a interrogar as habituais fronteiras e a preparar a mudança que compõe o mundo e a vida.”4 


Talvez por isso seja também a arte que tem sido atacada em museus um pouco por toda a Europa pelos jovens ativistas climáticos, quase como uma convocatória para que a arte se junte ao ativismo. Porque protegemos a arte e não a natureza? Como pode a arte falar desta e de outras crises?


Desde sempre que neste retrato que a arte regista de nós, em vários médiuns, técnicas e expressões, imprime o positivo e o negativo que vamos deixando como rasto, como lastro.


Olhando para o passado encontramos desde sempre representações de momentos conturbados da História como os Fuzilamentos de Goya ou a Guernica de Picasso, que reportam situações humanitárias ligadas a invasões e guerra, ou a obra 7000 Oaks5 de Joseph Beuys que tenta dar resposta em 1982 aos problemas de ecologia e sustentabilidade plantando 7000 carvalhos ao longo de 5 anos para reflorestar a zona urbana da cidade de Kassel, Alemanha, o projeto acabou por se espalhar por várias cidades  ao redor do mundo. Estes são apenas 3 exemplos de entre milhares de possibilidades que sustentam as respostas e as questões que a arte e os artistas foram sempre dando face às crises dos seus tempos.



Beuys descreve esta sua obra como um início simbólico que abre um ponto de transformação da vida, da sociedade e de todo o sistema ecológico. Pretendia com ela originar um movimento de aumento de consciência ecológica que se perpetuasse no tempo num ato socialmente consciente que fundisse arte, educação e questões ambientais.5 É nesta linha que o artista deixou escrita na História, junto com a de muitos outros artistas, que podemos falar de uma voz coletiva que liga arte, educação e resposta a problemas da sociedade. E é também aqui, nas escolhas dos artistas que damos a conhecer, que trabalhamos, que podemos atuar potenciando o poder transformador da arte.

 

“Vivemos um momento histórico conturbado em que (…) os fundamentos e os valores, as identidades e as certezas se tornam ambíguos”,6 em que múltiplas inquietações, como a crise do Mediterrâneo, as migrações consequentes, os campos de refugiados, a guerra da Síria, os avanços Talibãs, a guerra da Ucrânia, a guerra Israel-Palestina, as fronteiras e barreiras políticas, sociais e culturais e as fronteiras climáticas, todas em permanente movimento parecem exigir à produção cultural uma dimensão politico-educacional assumida.


Neste contexto, muitos têm sido os artistas que nos falam através do seu trabalho destas questões emergentes e fraturantes da nossa sociedade global e nos fazem pensar.   Sobre que inícios ou fins devemos questionar numa espécie de call for action, numa ampla gama de temas e situações sociais, políticas e ecológicas. A arte com a sua poética e força simbólica comunicativa, “como processo investigativo sensível e intelectual”7 propõe-nos uma maneira de nos relacionarmos com o mundo.7 Unindo à arte a educação, professores, educadores, mediadores, agentes educativos múltiplos, têm nesta relação a oportunidade de criar transformações dentro das pequenas tarefas dos nossos quotidianos, do nosso dia a dia, almejando pequenas mudanças possíveis de alcançar, mudanças que todas juntas ecoem no mundo, transformando-o, desfazendo os muitos muros ainda erguidos.







Nestas obras (figuras de 1 a 5 e 6 – visita arte na escola: Fonteiras em Movimento, CAM*) os artistas alertam para diferentes problemáticas. A Arte, entendida “como símbolo, abre sobre outra coisa que não ele próprio e pela mediação que realiza abre uma passagem”8, convoca assim a possibilidade de pensamento “sobre os mais diversos temas sociais, cívicos e políticos, para além da sua expressão estética, formal e compositiva e da sua dimensão emocional e poética e é um por isso um enorme portal de comunicação que pode estabelecer diferentes pontes e ligações, quer entre pessoas, quer entre assuntos e temáticas permitindo pensar sobre o passado, o presente e o futuro”9 -  e é aqui que entra a educação, acionada e interligada à obra de arte.


Com a ideia de que “a educação artística é a chave para formar gerações capazes de reinventar o mundo que herdaram”10 e que pode “contribuir para corrigir e minorar as perturbações de ordem individual e social existentes no mundo moderno (…) os perigos da passividade e da falta de espírito critico”11, permite-nos repensar o mundo a partir do lugar da arte e da educação, que quando juntas contêm em si todos os sonhos do mundo.


Podemos nas nossas práticas arriscar pequenas mudanças todos os dias, arriscar num mundo em risco porque “em tempos de crise, a educação artística é particularmente valiosa, pois, (…) ela inspira a criatividade, fornece apoio psicológico e constrói conexões entre as pessoas e as comunidades”10potenciando o poder transformador da arte nas mudanças pessoais e sociais que desejamos ver acontecer. Podemos implicar-nos, permitindo-nos ousar construir novos lugares, partilhados, de amor, de afetos, de confiança e de esperança trabalhando valores como a empatia, a inclusão, a equidade, a democracia e a justiça social, “inspirando os seres humanos à criação de um futuro alternativo para si próprios.”12 e implicando-nos no papel que cada um de nós desempenha na construção desse futuro(s).


Termino com a obra de Fayçal Baghriche que imagina um mundo uno, sem fronteiras, sem conflito, sem discriminação e em harmonia, que propõe a coexistência de todas as identidades – países, num único planisfério, onde de cada bandeira seleciona apenas as estrelas e cria uma nova constelação, um novo mundo em que somos todos um e se arte sonha, se a humanidade sonhar - se cada um de nós sonhar e atuar, então é possível.



 


a) Cada arvore foi emparelhada simbolicamente com uma pedra de basalto, as 7000 pedras foram empilhadas em frente ao Museu Fridericianum com a ideia de que por cada árvore plantada fosse retirada uma pedra que seria plantada junto com a árvore.


1 Farmácia Fanon – I Gramáticas do Azul, Vânia Gala e participantes, Reformular a autoridade e a autoria nas Artes - Culturgest, 2023

2 MARQUES, A.C.S.; PRADO, M.A.M. Diálogos e dissidências. Michel Foucault e Jacques Rancière. Curitiba: Appris, 2018

3 Palavras do aluno Benjamim do projeto LUGAR: https://gulbenkian.pt/cam/agenda/cam-em-movimento-lugar/

4 Plano Nacional das Artes. https://www.pna.gov.pt/premissa-e-valores/

5 All art is quite useful. environment, art & socialhange…, 2012

6 GOERGEN, P. Op. cit., p. 591-601. HONORATO, C.(2007).Expondo a mediação educacional: questões sobre educação, arte contemporânea e política. https://doi.org/10.1590/S1678-53202007000100010 

7 HONORATO, C.(2007).Expondo a mediação educacional: questões sobre educação, arte contemporânea e política.p.122-124 https://doi.org/10.1590/S1678-53202007000100010 

8 CAUNE, J.(1995). Culture et Communication: convergences théoriques et lieux de méditation, Presses Universitaires de Grenoble, p.70.

9 DIAS, A. (2023). O Museu como Ágora: Espaços de debate e educação para a cidadania. Convocarte. N13, p.191

10 UNESCO celebra o poder da arte e da educação em todo o mundo. https://www.unesco.org/pt/articles/unesco-celebra-o-poder-da-arte-e-da-educacao-em-todo-o-mundo

11Vamos Correr Riscos. Textos Escolhidos de Madalena Azeredo de Perdigão. Tinta da China, 2023 p.189

12 EFLAND, A. (2002). Art and Cognition. Integrating the Visual Arts in the Curriculum. Columbia University, p.171


*Visita Arte na escola: Fronteiras em Movimento – CAM : https://gulbenkian.pt/agenda/arte-na-escola-fronteiras-em-movimento/


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