
Convosco não partilho um texto de reflexão como o deveria, mas sim um incontido entusiasmo sentido, uma última arrebatadora paixão a que fui acometido (que nisto, como diz o MEC, as “paixonetas são a prova de que basta uma só pessoa para tratar de um grande amor […] revelando a relação muito alegre entre a imaginação e a promiscuidade”), provocada por uma bela, sensível e inteligentíssima mulher: a Alice. Poderia confessar-vos que já não tenho idade para tais partilhas, nem menos ainda para assumir despudoradamente tais alegrias, mas não consigo evitar. Sorriso estampado, aquela descarga nervosa, aquela sensação simultaneamente de estar em paz com o mundo. As coisas boas são para serem partilhadas – bem, talvez algumas não, definitivamente aplicável às bombocas de chocolate – mas neste caso acho-o legítimo e, talvez, no fim, o achem também justificado.
Cinema e arqueologia têm uma relação de sedução duradoura e persistente. Se deixarmos de parte os documentários (nem saberia por onde começar), respigarmos somente os grandes sucessos cinematográficos das últimas décadas, somos surpreendidos pela imensidão de heróis românticos, inspirados num modelo de arqueologia, mais devedor da imaginação, do que com alguma raiz assente no húmus do chão. Transpostas para o grande ecrã, as mitificações resultaram em inegáveis sucessos de bilheteira. “Indiana Jones” é, sem sombra de dúvida, o mais famoso, seguido por “Lara Croft”, versão feminista oriunda do mundo digital, mas as sagas da “Múmia”, do “Tesouro”, de “Stargate”, por exemplo, contribuíram para tornar os arqueólogos e a arqueologia conhecidos e reconhecidos em todo o mundo.
Aproximámo-nos sem saber bem porquê. Um pressentimento, premonição, sei lá. As minhas narinas, ainda à distância, sentiram-lhe esse odor típico de cultura de necrópole antiga, que me desvelou a sua origem. Ela, sensível, identificou-me logo esse cheiro fantosmínico, daquele que há décadas se dedica a comungar com os mortos, estivador de memórias, que as transporta de novo para o mundo dos vivos. Houve, pois, uma cumplicidade delicada imediatamente gerada.
E se é bem verdade que, no cinema, a ficção teima em negar a realidade experienciada no quotidiano habitual dos operários do património cultural, não há qualquer dúvida que poucas profissões têm tamanho reconhecimento social universal, como a de arqueólogo. As recriações históricas cinematográficas, associadas a consultores especializados cada vez mais profissionalizados, assumem o detalhe realista como relevante, nos quais, uma vez mais, a ficção supera a realidade pretérita. A Roma de “Gladiador”, a idade Média de “Reino dos Céus” e de “Robin Hood”, nas versões de Ridley Scott, são impressionantes frescos, sedutores e credíveis, bem como os incisivos e contundentes ambientes, em “Patriota”, decorrido nos finais de setecentos, em “A Paixão de Cristo”, no século I a.D. e em “Apocalypto”, nos primeiros anos da centúria de quinhentos, realizados por Mel Gibson, pantagruélicos e verosimilhantes retratos epocais são.
Apesar da sua juventude, da mirada fresca, os seus olhos eram velhos. E tal fazia-os ainda mais belos, na minha perspetiva. Milenares vivências lhes adivinhava, que se ocultavam por detrás daquele castanho aveludado intenso, que hipnotizava. Não há gentes verdadeiramente novas, todos descendemos de tudo o que já existiu. Há, todavia, alguns que têm consciência disso e tal empresta-lhes a imensidão profética da profundidade do olhar, como poços fundos nos quais mergulhamos em salto de fé, não intuímos a dimensão, nem sabemos quando voltaremos a vislumbrar luz, mas acreditamos que valem a pena.
E tantas outras impressionantes recriações cinematográficas se produziram, somente neste século XXI, que fazem os “Dez Mandamentos”, “Espártaco” e “Quo Vadis”, dos anos 50 e inícios de 60 de novecentos, assemelharem-se a trabalhos de crianças. E como eu adorava os filmes de Errol Flynn, que eram o meu maior prazer nas tardes domingueiras da infância, quando a televisão era somente de canal único. Naïfs collants eram, plenos de emoções. Neles, tudo era aventura e história, não havia lugar ao tédio. Mas a credibilidade da recriação histórica, malogradamente, obrigado sou hoje a reconhecer, deixa muito a desejar. A pretensão de desejar ver retratada a realidade das nossas vidas de operários do património em obras de ficção, juradas à criatividade, apesar de compreensível, é inútil e, até, contraproducente. A arte não tem, talvez nem deva assumir compromissos minimamente sérios com a neutralidade, com a realidade e com outras coisas tais. O que seria da ficção científica se fosse sujeita a esses grilhões?
Trocámos esparsas palavras, quase que semeando monossílabos desprovidos de sentido. Titubei, afinal desconhecia-a. Porém, Alice tomou a iniciativa. Achara-me graça pois, aos olhos dela, pressentia que eu via o mundo ao contrário. Eu anui, no sentido em que lhe confessei que por vezes acordava com um ligeiro torcicolo, com a respetiva dor, advinda da contratura muscular num dos lados do pescoço, mas que tal somente acontecia quando adormecia no sofá. Riu-se. Não era disso de que me falava, que disparate. Sabendo-me arqueólogo, disse que de tanto contrabandear mercadoria atravessada do rio Lete, de tantas vezes arriscar a resgatar essa matéria-prima ao submundo, que eu era uma espécie de Caronte invertido. E isso deixava-a curiosa.
Contudo, já em idade madura, impressionado fiquei com “A Escavação”, lançado em 2021, baseado num livro de John Preston, inspirado numa história real bem conhecida na arqueologia inglesa, a da escavação da embarcação de Sutton Hoo e os impressionantes objetos aí então exumados, realizado por Simon Stone, com adaptação de texto a guião por Moira Buffini, protagonizado, entre outros, por Ralph Fiennes (que tem evidente queda para a arqueologia, bem visível desde “O paciente inglês”), Carey Mulligan e Lily James. Sabendo-se que se trata de uma ficção e não um documentário, não foi acidentalmente que ganhou praticamente todos os prémios BAFTA desse ano, nas mais diversas categorias. Finalmente estávamos perante um filme, que pese embora destinado ao grande público e efabulando a realidade pretérita, era um onde qualquer operário do património não teria questão alguma em se rever.
Ela encontrava-se deitada sobre as minhas pernas, afagava-lhe os cabelos, aproveitando para trocar algumas ideias, algumas delas muito disparatadas, mas ainda bem que tolas eram. Ela, subitamente, ficou mais séria. Mostrou-se enfadada com tanta ligeireza. Ocorreu-me falar-lhe de Calvino, seu conterrâneo, de modo a tentar criar novamente uma ponte entre mundos. Ia a embalar nas “Cidades invisíveis”, mas ela desviou para “O Castelo dos destinos cruzados”. Nesse, Calvino usou as cartas de tarot, invenção italiana de quatrocentos, como motor narrativo. Alice jurou-me como a carta 0. Por ser número e não o ser, estaria simultaneamente dentro e fora do baralho, entre o mundo dos vivos e o dos mortos, ponto de partida e de chegada. Ofendi-me, afinal, um ser humano é mais do que um mero apeadeiro. Ela riu-se. Não era nada disso. Detalhou que o Louco encarna a impetuosidade, a vontade de viver, representando a descoberta de novos horizontes, bem como a vontade de desvendá-los. Com ele como regente, tudo pode acontecer e no final da viagem ter-se-á aprendido, jurou-me. O que ousa partir é precioso. Lá me deixei persuadir, sem estar realmente convertido.
Por vezes, a vida tende inesperadamente a surpreender-nos, por vezes mesmo arrebatadoramente. Presenteia-nos. E foi realmente assim que recebi “A quimera”, de Alice Rohrwacher, protagonizado por Josh O'Connor, Isabella Rossellini, Vincenzo Nemolato e Carol Duarte entre outros, um filme que se revelou absolutamente certeiro, nos tempos incertos que vivemos. Nele já não se trata somente de separar ficção e realidade. Todo o filme é atravessado pelo realismo mágico, pelo que tais distinções entre uma e outra estão fatalmente condenadas ao fracasso. E, no entanto, o repto colocado por Alice é irresistível a qualquer operário do património que tire uns momentos para refletir sobre aquilo que anda a fazer na sua vida. Aquele que pensa naquelas intemporais questões como quem, quando, como, onde, o quê e porquê – a que nos dias de hoje é inseparável o quanto – naquilo que foi “anglo(falante)colonizado” como “5W2H”, coisa estranha que parece extraída de uma alucinada tabela periódica.
Sintetizando, na paisagem da Toscânia, algures nos anos 80, um arqueólogo inglês, perdido nos seus fantasmas interiores, vende os seus talentos e saberes a quem o quiser contratar. Naquele contexto, os únicos que se demonstraram interessados, foram um pequeno grupo de ladrões de antiguidades, os “tombaroli” que, depois de detetarem e delapidarem túmulos etruscos, vendem os espólios no mercado negro. Contrataram o arqueólogo na esperança de que, pelo seu domínio técnico e científico, os ajude a detetar mais túmulos antigos, com maior frequência e maior rapidez. E tal revelou-se acertado. Inspirado numa prática popular efetiva, os “tombaroli” são, no fundo, um bando de labregos que, no resgate de antiguidades, vêm um complemento fácil e imediato face aos habituais minguados rendimentos dos seus agregados familiares, resultado de uma economia de mercado que tornou os agricultores em carenciados económicos.
Na narrativa cinematográfica, as questões subsequentes desfiam-se paulatinamente. Os tradicionalistas condenam esta prática, pois que os mortos devem ser respeitados, devedora da noção de sagrado católica; os progressistas, que aspiram a uma vida com dignidade económica, dessacralizam os antepassados em prol de um futuro com pitada de esperança; as autoridades são ausentes e são negligentes, apenas perspetivam as obrigações da administração pública na defesa do património cultural como uma chatice; o arqueólogo, especialista no conhecimento da história e da identidade dos outros, de algum modo serve sempre a economia de mercado, no nosso atual contexto vivencial, também tem de ter o que comer e contas a pagar; os muito ricos, pretendem obter as raridades de antanho, que lhes permitam ostentar a raridade, delas advindo o prestígio que procuram demonstrar. Enfim, é toda esta realidade concreta que entra olhos dentro, pese embora vá sendo desvelada progressivamente, com enorme sensibilidade, humor, ironia, excentricidade, poesia e humanismo. Ninguém, absolutamente ninguém, se questiona pela perda de valor do património cultural universal, porque ninguém, na realidade concreta das vidas daquelas vidas, quer saber disso.
Em entrevista concedida a Francisco Ferreira (Expresso, 6/6/2024, p. 57), Alice confessa: “De um ponto de vista político, ao contarmos a história de um grupo de homens que escavam o passado para o vender, enfrentamos uma grande temática. Os crimes dos «tombaroli» são, acima de tudo, reflexo da perda de fé, o dinheiro passou a ocupar o lugar do sagrado. E há muito de contemporâneo neste gesto em que, da História, só retiramos um valor económico imediato. É a Itália de hoje. É o nosso presente.”. E, pergunto-me, não será o nosso país também assim? A capitulação da arqueologia portuguesa, aliás, em boa verdade, de todo o setor do património cultural português, à implacável lógica da economia de mercado, é assombrosa e avassaladora.
130 minutos durou o doce e terno delírio, momento concentracionado em beijo cúmplice, como nos dizem que deve ser, nos tempos presentes. Efemeridade. Como Arthur, deixei Alice, arranquei na carruagem do comboio que me trouxe de volta à realidade. As paixonetas são assim, um tributo ao transitório.

_______________________________________________________________________________ O autor utiliza o novo acordo ortográfico.
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