Um estudo dirigido pelo Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (UNIARQ) e publicado na revista Science demonstra que a familiaridade dos humanos com o mar e os seus recursos é muito mais antiga do que até agora se pensava, e que a imagem dos neandertais como gentes do frio, especializados na caça de mamutes, rinocerontes, bisontes e renas, é uma distorção criada pela história da investigação. A pesca e a recolecção de marisco, revela agora o grupo de investigadores, contribuíam de forma muito significativa para a economia de subsistência dos neandertais. Na realidade, explica o grupo de investigadores, a grande maioria dos neandertais terá vivido como os de Figueira Brava.
Coordenado pelo Professor João Zilhão, investigador do UNIARQ, ao qual pertencem ainda oito dos outros 21 co-autores, o estudo apresenta os resultados das escavações que a equipa levou a cabo na Gruta da Figueira Brava, situada no Portinho da Arrábida, entre 2010 e 2013. Esta gruta, actualmente à beira mar mas que chegou a estar a 2.000 metros da costa, foi usada de forma continuada como lugar de habitação ao largo dos vinte milénios compreendidos entre há 86 e há 106 mil anos. Os vestígios arqueológicos deixados por essas comunidades do Homem de Neandertal - cinzas, carvões e outras provas de uma utilização intensiva do fogo, utensílios em quartzo e sílex, restos alimentares - são abundantes.
A análise de amostras de ossos humanos provenientes das centenas de enterramentos mesolíticos existentes nos concheiros da região mostra que a quantidades tão significativas de restos de peixe e marisco corresponde uma dieta alimentar com uma componente marinha importante, que chega a ser de 50%. “Podemos inferir, portanto, que terá sido também assim no caso das populações neandertais do litoral atlântico da Península Ibérica”, defende o Professor João Zilhão.
Os resultados da escavação da Figueira Brava vêm acrescentar a este panorama que, a ser verdade que o consumo habitual de recursos marinhos teve um papel importante no desenvolvimento das capacidades cognitivas dos nossos antepassados, então isso aconteceu à escala da Humanidade no seu conjunto, não apenas à escala de uma pequena população africana que depois se expandiu.
A descoberta agora revelada assume, por isso, especial importância quando um modelo muito influente sobre as origens da Humanidade tem defendido que o consumo habitual de recursos aquáticos - ricos em Ómega 3 e outros ácidos gordos que favorecem o desenvolvimento dos tecidos cerebrais - teria propiciado um incremento das capacidades cognitivas das populações africanas “modernas” contemporâneas dos neandertais europeus do último interglaciar. Esse incremento explicaria o aparecimento precoce de uma cultura material simbólica, e uma capacidade idêntica à nossa para o pensamento abstracto, a comunicação por símbolos e, em última análise, a linguagem. Segundo o modelo, da expansão para o resto do mundo dessas populações africanas teria resultado a “inevitável” extinção das populações aborígenes da Europa e da Ásia, nomeadamente a dos neandertais.
Ao longo da última década, no entanto, têm vindo a acumular-se provas de que os neandertais também tinham uma cultura material simbólica. Faz agora dois anos, por exemplo, publicaram-se na mesma revista Science e em Science Advances os resultados de trabalhos co-dirigidos pelo Professor João Zilhão, em que se demonstrava que os neandertais praticavam arte rupestre desde há pelo menos 65 000 anos e usavam objectos de adorno pessoal desde há pelo menos 115 000 anos.
Com este estudo, deixa de haver fundamento para continuar a defender que às pequenas diferenças na morfologia do crânio e da mandíbula que permitem distinguir europeus “arcaicos” (neandertais) de africanos “modernos” correspondem necessariamente níveis diferentes de cognição e inteligência. Na realidade, explica o grupo de investigadores, estamos a falar apenas de diferenças rácicas entre populações que viriam a miscigenar-se extensivamente e que contribuíram todas elas para a génese do Homo sapiens de hoje.
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