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História e Memória, em tempos de incerteza


A tensão entre história e memória, que atravessa a dinâmica de construção do património cultural, tem-se reforçado nas últimas duas décadas, acompanhando os processos de degradação das estruturas sociais e dos mecanismos de interação e integração económica, que se aceleraram a partir de 2008. Num quadro de conflitualidade crescente, que tende a romper as linhas de demarcação ideológica prospetivista que marcaram o século XX, esses processos dão cada vez mais espaço a novas congregações de interesses, que se agrupam em torno da rejeição do passado, mais do que da concordância sobre o futuro. Vivemos tempos de diversas resistências, de radicalização e de redução do espaço do diálogo e da democracia. É um processo que afeta todos os continentes, e face ao qual não precisamos de olhar para outros países, infelizmente.


A estruturação de agendas coletivas em torno de ideais sobre o passado, que em comum apenas têm a rejeição da globalização, tem um impacto enorme sobre o património cultural. As conflitualidades do século XX, construídas em torno de ideais de futuro, estruturaram sociedades que utilizaram o património como herança a preservar, designadamente sob a forma de desapropriações, reapropriações e, muitas vezes, roubos.


O espaço da história, contextualizando os vestígios materiais do passado, manteve-se na tradição iluminista, afirmando-se como raiz academicamente consensualizada e como condição para, sobre a base desse consenso sobre o passado, estruturar as dinâmicas (por vezes muito violentas) de futuro. O modernismo, por exemplo, mesmo na sua radicalidade muitas vezes destrutiva, assumia um projeto fundamentalmente de futuro, no qual a razão e as suas crias, como a História, tinham um espaço fundamental. O apreço pelas realizações artísticas do passado, mesmo quando produzidas no quadro de interesses opostos, era uma característica comum aos diversos movimentos sociais.


O ocaso progressivo dos programas sociopolíticos futuristas no último terço do século passado, acompanhado pela financialização da economia e pela globalização das “coisas”, reduzindo tudo e todos a produtos de mercado, não deixou de afetar os bens materiais e imateriais do passado, presentificando-os de forma radical e quase que os reduzindo à condição de produtos turísticos.

A deslocação progressiva dos museus do eixo da educação (com que se alinhavam até à década de 1990) para o eixo da animação cultural e da economia (em que se encontram hoje), é uma expressão deste processo. E é, também, uma expressão do recuo do terreno da racionalidade, em prol de indicadores focados nos produtos e não nos processos.


Este recuo da racionalidade, que capturou as políticas de património, e em especial as políticas de museus, é um processo que também se registou na esfera da educação, que na década de 1990 se afastou do foco no conhecimento crítico para o futuro, dando lugar a um foco na aprendizagem de competências para o mercado de trabalho existente. Nessa passagem da educação para a aprendizagem, a História, como em geral as Humanidades, mas também o raciocínio científico, deixaram de ser fundamentais, potenciando o divórcio entre os setores da educação e do património.


Hoje, a alienação não é uma consequência dos processos produtivos e sociais (como nos Tempos Modernos de Chaplin), mas um programa de formação.


Uma expressão da conjugação destes processos, nas esferas social, económica, educacional e patrimonial, são os casos de mutilação ou destruição de estátuas e outros vestígios patrimoniais, encarados como testemunhos de um passado a apagar e impossível de ser reapropriado. Trata-se de processos distintos das destruições que marcam processos de rutura sistémica face ao passado recente (como os ataques a igrejas durante a revolução francesa e às imagens do Czar durante a revolução russa de 1917, ou o abatimento de estátuas de dirigentes comunistas no colapso do regime soviético).


O que ocorre hoje, da censura de frases em obras literárias do passado mais remoto, por serem inaceitáveis para a nossa sociedade, às agressões a algumas estátuas, é uma rejeição da memória de um passado mais remoto, que o inscreve no presente como se ele estivesse vivo. E, é importante compreender isso: esse passado está infelizmente vivo, quando é reduzido a memória e quando se afasta a história e a sua racionalização, como parte da origem remota de desigualdades e discriminações que persistem.


Sem surpresa, as agendas futuristas preservaram melhor a história, pois o seu foco era a construção de um futuro que anteviam de forma “clara”, do que as agendas atuais, de rejeição do passado mas sem visões consensualizadas de futuro. A destruição de património ocorreu, de forma muito expressiva, nesse quadro futurista, mas raramente tal aconteceu com a intenção de apagar a memória: o objetivo era, em geral, criara espaço para a modernidade. A generalização de uma consciência patrimonial foi, também, uma resistência a processos destrutivos “não refletidos”, introduzindo essa reflexão a partir da noção de história (mesmo quando de pendor identitário e nacionalista).


Todo o eixo de disputa parece deslocar-se, hoje, para a memorialização do passado, o que em coerência implica pontualmente a destruição intencional de alguns dos seus vestígios (memórias a rejeitar) e, sobretudo, implica um crescente desinvestimento no património material, em prol de tudo o que é vivo e, por isso, mais próximo da memória: as tradições, as artes, a gastronomia.


Houve, no século passado, processos semelhantes (de que o maior exemplo será a revolução cultural chinesa) mas, quando ocorreram, geraram em seguida reações simétricas que se consolidaram rapidamente (mais uma vez, a China é um exemplo muito claro). Hoje, porém, o processo é mais amplo e participado, e não apenas conduzido por algumas lideranças. A destruição de património é, de forma crescente, e por razões que importa compreender, um objetivo de muitos, num movimento que prolonga a exclusão de tantos à educação, o divórcio entre educação e cultura e a transformação da educação em aprendizagem de conteúdos.


Os sítios patrimoniais, se não forem lugares de história, serão presa fácil de memórias em disputa, e tenderão, finalmente, a ser esquecidos (quando a paz entre essas memórias as superar). A pandemia, afastando ainda mais os cidadãos do convívio com o património, tenderá a acelerar esse movimento centrípeto.


Creio que, como profissionais nas áreas do património, da história e da educação, devemos estar atentos a estes processos, para além da espuma dos debates superficiais, pois são processos que, no limite, poderão tornar irrelevante para a sociedade a existência de museus, monumentos ou esculturas do passado. Ou fazer deles campos de guerra, no sentido literal da palavra, o que tem consequências idênticas.

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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