Quando pensamos em grandes museus ou em grandes cadeias de restauração, hoje despovoados, destaca-se o impacto da pandemia na sua sustentabilidade financeira. Mas há, também, duas diferenças que se revelam de entre essas realidades. A primeira diz respeito ao futuro: os afluxos de clientes dos restaurantes tenderão a regressar rapidamente, ainda que condicionados pela crise económica, que será mais demorada; mas não é nada evidente que regressem os afluxos de público desses museus. A segunda explica a incerteza de futuro e diz respeito ao passado imediato: os restaurantes estavam cheios de clientes de comida, mas os museus estavam quase vazios de utilizadores de conhecimento, pois os públicos são, apenas, consumidores passivos, e o conhecimento é, sempre, um processo de construção.
A pandemia veio revelar processos que as estratégias dominantes, orientadas para o “mercado da cultura”, teimosamente ignorar. A este propósito, muito se tem escrito sobre o eclipse das ingenuidades neoliberais, perante a evidência de que só o investimento público pode assegurar sustentabilidade nas dimensões essenciais (como a vida ou a criação de conhecimento novo). Mas essas ingenuidades fizeram o seu caminho, de forma persistente, no domínio do património, e em particular em dois dos seus dois principais pilares: a educação e os museus. Segregando-os, primeiro, e reduzindo os seus utilizadores a clientes de produtos, depois, essas ingenuidades foram destruindo a integração dos cidadãos na construção de conhecimento, transformando os espaços educativos e culturais em lugares de consumo e alienando os seus utilizadores do direito ao conhecimento crítico. E, fora do conhecimento crítico, não há possibilidade de cidadania.
Apesar disso, como já aqui defendi, a maior parte da sociedade, em Portugal como noutros países, assumiu comportamentos convergentes não apenas de adaptação à pandemia (à espera de que ela passe) mas de esboço de transformação comportamental. As agendas públicas e institucionais, centradas em objetivos e resultados estatísticos, viram emergir preocupações distintas, com processos e valores. Neste contexto, revisitando reações comportamentais em períodos subsequentes a catástrofes, guerras ou grandes epidemias, o período pós-pandemia não será um regresso ao passado, mas pode percorrer dois caminhos distintos, com direta relevância para a gestão patrimonial: a esperança (que requer reflexão e foco na transformação no médio prazo) ou o desespero (acusando a pressão da crise e com foco no alívio de curto prazo).
Uma reorganização orientada pela esperança tenderá a processos mais lentos, consumos menores (aumento da poupança), inovação na área de serviços (privilegiando a qualidade, o bem-estar, as relações socioculturais de proximidade e a construção de novo conhecimento). Será uma reorganização que não encherá os museus com público, mas poderá devolver-lhes visitantes curiosos, interrogativos, disponíveis para uma co-construção de entendimentos sobre o contexto, o passado e as perspetivas de futuro.
Uma reorganização orientada pelo desespero tenderá a uma aceleração (live fast and die young), consumos elevados (agravamento da dívida privada) e orientados para o entretenimento e a reprodução de serviços de desgaste rápido (privilegiando a quantidade, a ocupação de todos os tempos livres, a afirmação individual e o consumo superficial de símbolos de conhecimento). Encherá de novos os museus com grandes números, retomando a vertigem pré-pandemia, até ao colapso global da cidadania e da democracia.
Certamente, a forma como intervierem os agentes culturais na área do património terá influência neste processo. Por demasiado tempo, a gestão dominante do património tem focado o seu peso comercial (erradamente designado de económico) e negligenciado a sua função principal, de consolidação, produção e socialização de conhecimento. Regressar “à base”, à inspiração das musas, ao espaço de debate sobre os valores em sociedade e a sua transformação no tempo, à compreensão da unidade convergente da espécie humana para além da sua óbvia diversidade,… esse será um caminho que tenderá a recolocar os museus e o património no centro das reflexões sobre o futuro da sociedade.
Mas a forma e natureza desse conhecimento também é relevante. A promoção do passado como um mito de paraíso perdido (como na versão de algumas “dietas tradicionais”) ou de inferno recuperado (como nalguns discursos anacrónicos) potenciará um património memorialista, identitário (localista/nacionalista) e eventualmente xenófobo. Inversamente, um património entendido a partir da compreensão crítica do passado, focando as contradições em cada momento da história, potenciará um património racional, passível de múltiplas apropriações, promotor de convergência em torno a novas utopias humanistas, integrador e eventualmente transformador.
Aqueles que temos esta geringonça nos braços, seremos condicionados mas, também, agentes ativos, do caminho que se abrirá na pós-pandemia, que em última (próxima) consequência construirá a guerra ou a paz. Este não é um tempo para inocências tardias.
Estas serão questões que ocuparão parte dos debates da Conferência Europeia das Humanidades, organizada em maio próximo pelo CIPSH, UNESCO e FCT, no quadro da Presidência Portuguesa do Conselho Europeu. Os fóruns de debate abertos no site da Conferência são uma oportunidade para podermos intervir no desenho do que poderão ser, espero, outras estratégias das políticas públicas nos próximos anos.
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