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A grande ilusão do Restauro



Da imagem pública da Conservação e Restauro fazem parte diversas ideias que, na realidade, pouco ou nada têm que ver com a Conservação e Restauro, algumas das quais, como a de que apenas basta ter jeito para trabalhar nesta área, têm significativamente contribuído para a degradação do património. Geralmente essas ideias circulam informalmente fora da área, por canais privados e sem registo escrito, mas há uma que frequentemente é expressa em contextos públicos e formais e tem grande divulgação através de meios com alguma responsabilidade. É o caso da que se manifesta, por exemplo, no título que mesmo agora acabei de ler no jornal Público: “Cores originais dos painéis de Almada em gare de Lisboa revelam-se com restauro”. É apenas um exemplo, pois os mesmos sucedem-se.


Com efeito, ainda não há muito, a Câmara Municipal de Lisboa previa que os Painéis de São Vicente, em tratamento de Conservação e Restauro no Museu Nacional de Arte Antiga, “no final de 2024 voltem à sua forma original”. Quando essa intervenção se iniciou, anunciava o Público, em 2022, num outro título: “A limpeza começou e já é possível vislumbrar a cor original dos Painéis de S. Vicente”.


Antes, a Câmara Municipal de Oeiras tinha comunicado ter concluído o restauro da Sala da Concórdia, do Palácio Marquês de Pombal, que integra pintura mural atribuída a Joana do Salitre, restauro que, precisava, tinha tido como objectivo “devolver o aspecto original desta sala”. Mais ou menos pela mesma ocasião, mas por outras paragens, segundo um texto da agência Lusa, tinha terminado o restauro de um altar do Santuário de Santa Quitéria, em Felgueiras, que “permitiu descobrir vestígios de ouro e devolver ao retábulo as cores originais”. Mais recentemente, um jornal de Viana descrevia o objectivo de um conservador-restaurador como “tirar as purpurinas até chegar ao original”.


Num outro patamar, uma conservadora-restauradora registava há anos, num título de uma publicação sobre o tratamento de certa pintura, o “regresso à imagem original” e, mais recentemente, outra conservadora-restauradora, sobre outra obra, escrevia no Facebook que “há sempre a possibilidade de ser devolvido o estado original da pintura”. Não é nada que o mais conhecido conservador-restaurador português, Luciano Freire, que teve uma intervenção marcante na história dos mencionados Painéis de São Vicente, não tivesse dito há uns cem anos a propósito de uma outra obra: “orgulha-me o ter tido ocasião de lhe restituir o aspecto e beleza primitiva”.


Por isso, não admira que o ChatGPT, alicerçado neste contexto, à pergunta “O restauro de uma pintura pretende repor a sua imagem original?” responda com “Sim”, ainda que de seguida matize a resposta com a referência a uma situação ideal: “Sim, o objectivo principal do restauro de uma pintura é, idealmente, devolver a obra à sua condição mais próxima possível da sua imagem original”. Mas, perante a insistência (“Mas consegue-se chegar a essa imagem original?”), não deixa de, indirectamente, considerar que esse objectivo é atingível: “Chegar à imagem original de uma pintura durante o processo de restauro pode ser um objectivo desafiador e, em alguns casos, pode não ser completamente alcançado”.

Mas não! Não é possível anular as marcas do tempo – segundo as palavras de Marguerite Yourcenar, “esse grande escultor”.


1. William Hogarth, Time Smoking a Picture, The Met. Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/366151.

 

Pode-se remover o verniz amarelecido e escurecido que cobre uma pintura – uma das mais frequentes tarefas dos conservadores-restauradores de pintura – e ver o notável ganho de visibilidade daí resultante, mas, mesmo ignorando os riscos associados a tal operação, as marcas do tempo permanecerão sempre, mais evidentes nuns casos, mais discretas noutros. Os materiais de que é feita a pintura que assim fica melhor exposta ao olhar já não são os mesmos que o pintor usou e ali colocou. Os materiais alteram-se, ocorrem reacções de oxidação e reacções de hidrólise, a luz provoca reacções de fotólise, formam-se grupos cromóforos que originam a alteração da cor, substâncias são removidas do cerne das partículas por acção do vapor de água da atmosfera, no interior da camada de tinta desenvolvem-se aglomerados de algumas substâncias que podem emergir à superfície como se fossem quistos (protusões), etc., etc.. Tudo isto contribui para mudanças da cor, da transparência ou do brilho da matéria e um conservador-restaurador pouco ou nada pode fazer contra esses processos. Os efeitos destas alterações, que geralmente não são tidos em conta e que os títulos e os outros testemunhos referidos ignoram, podem ser subtis, mas também podem de ser de monta, como na pintura de Lorenzo Monaco que representa a Coroação da Virgem, de c. 1414, da National Gallery, onde o manto da Virgem, por acção da luz, mudou de um intenso rosa-malva para branco.

 

2. Lorenzo Monaco, Coroação da Virgem, National Gallery. Fonte: https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/lorenzo-monaco-the-coronation-of-the-virgin, CC BY-NC-ND 4.0 DEED.

 

Mas numa pintura não ocorrem apenas transformações químicas da matéria. Mesmo na ausência de acidentes, igualmente se verificam alterações de algumas características físicas em resposta a solicitações mecânicas como as que resultam de oscilações da humidade atmosférica e da temperatura. É bem conhecido o estalado ou, à francesa, craquelé que, salvo em casos excepcionais, nenhum conservador-restaurador quer atenuar e, menos ainda, eliminar, sendo inclusivamente valorizado. É claro que estas marcas, assim como outras microscópicas, influem na imagem visível de uma pintura e, portanto, esta não pode reproduzir a imagem original.


Continuando apenas no plano material, por isso deixando de fora as mudanças de percepção que, pela transformação do contexto cultural, ocorrem ao longo dos séculos, há ainda o problema da iluminação. Por um lado, muitas obras foram deslocadas dos locais para onde foram criadas e, consequentemente, do seu ambiente lumioso original; por outro lado, as fontes artificiais de luz que usamos para observar uma pintura diferem muito das existentes no passado, não só em termos de distribuição e intensidade da luz, mas também a respeito da sua cor. Ora, as cores de uma pintura não dependem apenas dos materiais de que é feita, mas igualmente da sua interacção com a luz. Sendo diferente a luz, é diferente essa interacção e é diferente a cor. Logo, também por isto, é impossível recuperar a imagem original.


Independentemente de tudo isso, além do mais colocando esse objectivo ao nível do ideal – e não do real – e ignorando os constrangimentos práticos, recuperar a imagem original não é necessariamente a decisão mais adequada e até pode contribuir para a destruição do património. Serve de exemplo o caso de uma obra do convento da Madre de Deus de Vinhó, representando Nossa Senhora do Rosário, em que, graças à radiografia, na década de 1970 foram detectadas, não uma, mas duas pinturas subjacentes. Considerando, como um restaurador escreveu na época, que “toda e qualquer alteração que deforme ou modifique parcial ou literalmente uma pintura terá que ser removida, a fim de se esclarecer a concepção autêntica e, consequentemente, a realização original”, foi tomada a decisão quase automática de remoção da pintura mais recente para expor a pintura mais antiga, tal como foi hábito durante algumas décadas do século XX, decisão essa que levou à destruição quer da pintura do século XVIII visível quando se iniciou a intervenção, quer da pintura do século XVII existente imediatamente sob esta, para deixar à vista uma pintura do século XVI. Sem esse afã em restaurar a imagem original, aqui na variante de imagem mais antiga, essas duas pinturas não teriam ido, literalmente, parar ao lixo.

 

3. Nossa Senhora do Rosário, Convento da Madre de Deus de Vinhó. Da esquerda para a direita: pintura do século XVIII, no início do restauro; pintura do século XVII que ficou visível numa fase intermédia do restauro; pintura do século XVI, no final do restauro. Fonte: António João Cruz, “Imagens perdidas, imagens achadas: pinturas reveladas pelos raios X no Instituto José de Figueiredo”, in Henrique Vilaça Ramos (ed.), Actas do Simpósio Comemorativo do Centenário da Descoberta dos Raios X, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1996, pp. 83-103, http://www.ciarte.pt/artigos/199602.html.



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