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Audiodescrição: recurso essencial de acessibilidade


Anaísa Raquel

audiodescritora


A audiodescrição é o recurso de acessibilidade que permite à pessoa com deficiência visual o pleno acesso a manifestações artísticas e culturais. O recurso permite que a pessoa com deficiência visual usufrua, de forma autónoma, do conhecimento de aspectos visuais que não adquire de outra forma. É, assim, uma tradução intersemiótica (a tradução de um signo visual para um signo verbal) de uma enorme responsabilidade que deve ser exercida de forma séria e profissional.

Na minha opinião, a audiodescrição deve ser o mais objectiva possível e nela não devem existir opiniões do audiodescritor acerca das obras. Há que considerar as obras tal como se deparam àqueles que delas têm a vivência e as apreciam.

(Martin Heidegger, em “A Origem da obra de Arte”)


Inserir opinião ou subjectividade numa audiodescrição é retirar o poder à pessoa com deficiência visual de usufruir e pensar, por si só, o objecto artístico.


Em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas somente sobre nosso sentimento; o qual, pois, colocamos a fundamento, não como sentimento privado, mas como um sentimento comunitário.

(Kant, em “A crítica da faculdade de juízo”)


Seguindo a linha de alguns filósofos, acredito que a audiodescrição deve somente centrar-se na audiodescrição concisa, simples e objectiva da obra, suas dimensões, cores, formatos, local onde está inserida e outras informações que iríamos receber somente através do sentido da visão. O pleno acesso à cultura é também isso: a possibilidade de se criar uma opinião individual e autónoma sobre aquilo que observamos.


Centremo-nos na experiência artística e cultural: museu ou espaço museológico.


Vamos colocar-nos no lugar do outro, fechar os olhos e visitar um museu, sem companhia e sem estarmos integrados numa visita guiada. Como sabemos onde se encontra a bilheteira? Como nos deslocamos até à entrada do espaço de exposição? Como sabemos onde estão expostas as peças? Como lemos as legendas? Como “vemos” as peças?


No caso dos museus que ainda não pensaram nas questões da acessibilidade a pessoas com deficiência visual, a verdade é que uma visita autónoma para este público não é possível. Talvez por isso oiçamos muitas vezes depoimentos como: “Mas eles não vêem.” ou “Nunca aqui entrou uma pessoa com deficiência visual.”


No entanto, já muitos espaços museológicos perceberam que, se implementarem recursos de acessibilidade, o número de visitas incrementa com estes novos públicos. Público, esse, que até então não se sentia bem-vindo e que, agora, por conta destes recursos, já tem curiosidade de visitar museus e participar mais na actividade artística, de forma autónoma. Contribuindo, assim, para o incremento da sua educação e presença nas actividades sociais e culturais que temos para oferecer.


Irei referir algumas vezes a palavra “autonomia”. A meu ver, é isso que se pretende, uma maior autonomia no acesso às artes.


Até há poucos anos, o que acontecia quando chegava uma pessoa com deficiência visual a uma bilheteira? Começava o exercício de “desenrascar”. O museu, de forma célere, mas sob pressão, tinha de arranjar uma solução para que a pessoa não se sentisse excluída. Então, muitas vezes, era pedido a alguém do serviço educativo que fizesse uma visita personalizada e adaptada com a ferramentas de que dispusesse. Esta boa vontade é de louvar. Mas será realmente a solução? A pessoa com deficiência visual deverá depender da boa vontade? Ou deverá ter o direito a ter acesso à mesma experiência que o restante publico? É responsabilidade da pessoa com deficiência ter de se fazer acompanhar por um amigo ou familiar para que essa pessoa lhe passe as informações básicas expostas? Ou é responsabilidade do museu estar munido de todos os recursos para providenciar a todo o seu público a mesma visita? Quererá o museu incrementar o seu público e incluir nele a possibilidade da diversidade, a possibilidade da acessibilidade?

Sabemos dos constrangimentos financeiros mas sabemos também que quando há vontade existem inúmeras opções de se iniciar o processo de mudança.


Então, façamos o exercício de nos colocarmos no lugar do outro e pensemos sobre o assunto. Gostaríamos de nos sentir excluídos de uma visita ao museu? Visita essa que deve ser prazerosa e uma actividade que se pretende regular? Acredito que ninguém deva ser excluído quando existem soluções. Iniciemos, então, este processo de mudança com vista à inclusão e equidade.


Existem inúmeros recursos de acessibilidade que devem caminhar juntos. Mas irei centrar-me na audiodescrição.


Como implementar o recurso de audiodescrição em espaços museológicos com exposições permanentes?


Muitos museus apostam na tecnologia e nos aparelhos de audio e videoguia (O videoguia é extremamente útil para a inclusão da Língua Gestual Portuguesa para as pessoas com deficiência auditiva). Nestes casos aquilo que defendemos é que se acrescente uma segunda faixa de som, para além do audioguia geral, com o recurso de audiodescrição.


Nas informações gerais do audioguia o museu explana acerca dele, sua construção, sua origem, seu propósito, acerca de cada peça ou conjunto de peças, suas histórias e curiosidades, proveniência, e outras informações úteis que se devem receber aquando a visita a um museu. Na faixa de audiodescrição o público ficará a saber exactamente como é a arquitectura do museu e / ou sala, como é a peça, onde ela está exposta, suas dimensões e formas, cores e outras informações visuais. Com a junção do audioguia geral e da audiodescrição o público com deficiência visual sairá da visita com a informação equiparada à do restante público.


Chegará inserir a audiodescrição no aparelho de audioguia? Não. Concerteza que não. Devemos pensar também em colocar piso podo-táctil para facilitar a locomoção de forma autónoma, devemos pensar em inserir tabelas em braille e permitir que algumas obras possam ser tacteadas e/ou produzir réplicas da obra (no caso de esculturas ou obras tridimensionais) ou impressões em relevo (no caso de obras planas como pinturas ou gravuras) para serem tacteadas.


Como implementar o recurso de audiodescrição em espaços museológicos com exposições temporárias?


Muitos espaços museológicos contam com exposições temporárias, que mudam a cada trimestre ou quadrimestre. Neste caso, o museu pode optar por adquirir os aparelhos de audioguia e a cada nova exposição serão inseridas as novas faixas de audioguia geral e de audiodescrição. Ou o museu pode optar por visitas presencias com audiodescrição. Nestas visitas nós trabalhamos sempre com o serviço educativo e temos vindo a comprovar que este é o formato de visita mais completa.


Recordemo-nos que a audiodescrição só audiodescreve a obra. Ela não explana acerca da obra. Assim, a visita inicia-se com a audiodescrição de cada obra seleccionada e, após a audiodescrição, o serviço educativo fará a sua parte, a de se debruçar sobre a obra e comunicar o que pretende sobre ela. Também, sempre que possível, usamos as impressões em alto-relevo e tacteamos as obras passíveis de ser tacteadas. No caso de se tactear a obra usamos umas luvas de espessura fina que previnem a contaminação da gordura dos dedos na obra.

Nestas visitas acontece o audiodescritor ter, também, como função a de guiar a pessoa com deficiência visual pelo espaço e colocá-la de frente para a obra, substituindo, assim, o piso podo-táctil. Refira-se, no entanto, que esta substituição só acontece em visita guiada presencial. Excluindo as marcações para visita guiada com o recurso, o museu não tem disponível nem a audiodescrição nem a plena locomoção no espaço.


Nos últimos anos trabalhámos com as duas formas de implementação do recurso de audiodescrição em museus: a inserção da audiodescrição numa faixa secundária de audio nos aparelhos de audioguia e a visita guiada presencial com audiodescrição.


Cada museu é um museu e a proposta de implementar o recurso de audiodescrição deve ser pensada, ponderada. Devemos estudar as melhores soluções em equipa, junto da equipa do museu, da equipa de audiodescrição e de uma equipa de pessoas com deficiência visual.


Nunca chegaremos a agradar a todos. Mas podemos trabalhar para incluir o maior número de pessoas possível na experiência de visitar um museu.

 

Anaísa Raquel é audiodescritora. Colabora frequentemente com a Acesso Cultura na implementação de serviços de audiodescrição em espaços culturais.


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