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Tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra



Ao ver as muitas imagens de devastação que a Guerra da Ucrânia já produziu, para além da tragédia humanitária avassaladora que resulta como principal consequência do conflito, enquanto conservador-restaurador não consigo deixar de pensar também no impacto para o património cultural. Quando vemos a destruição que se produziu já em cidades como Mariupol, Liv ou Kiev, quando vemos centros comerciais, teatros ou hospitais psiquiátricos bombardeados, é impossível pensar-se que o património cultural da Ucrânia passará incólume à destruição. Talvez por isso tenha sentido necessidade de revisitar a Convenção para protecção dos bens culturais em caso de conflito armado (Convenção de Haia) para diminuir alguma da minha angústia – realizada em 1954, no rescaldo da segunda guerra mundial, e onde 123 países definiram um conjunto de regras a aplicar ao património cultural, em caso de conflito armado.


Ao ler o documento confesso que o meu estado de espírito não mudou muito, uma vez que o conteúdo não encaixa com as imagens de destruição de património que me recordo ver relacionadas com outros conflitos armados – Tchetchénia (1994), Iraque (2003), Síria (2011). Fiquei com a sensação que é um daqueles casos onde apesar de bem-intencionado e necessário, é pouco exequível, e onde muito do seu conteúdo não chegou a sair do papel – com a honrosa excepção do trabalho desenvolvido pelo Comité Internacional «Escudo Azul». Para isso basta ler-se, a título de exemplo (porque existem muitos outros…), o conteúdo dos artigos 5º (ocupação) e 7º (deveres de carácter militar) para se perceber o desfasamento que parece existir entre os princípios definidos na convenção e a realidade.


O primeiro refere que quando no decurso das operações militares forem produzidos danos em bens culturais determinando a necessidade de uma intervenção urgente nos mesmos, compete à potência ocupante adoptar uma colaboração estreita com as autoridades do país em questão, com vista à conservação do património, sempre que aquelas não possuírem os meios para a sua realização – olhando para o que se passa na Ucrânia, quando as partes envolvidas não conseguem sequer um entendimento para o cumprimento de corredores humanitários, podemos acreditar que é possível existir diálogo sobre a preservação do património cultural?


No artigo 7º, e no âmbito dos deveres militares, entre outras coisas é estabelecido o compromisso dos signatários da convenção introduzirem em tempos de paz nos regulamentos e formação das forças armadas, orientações que promovam o respeito pela cultura e bens culturais de todos os povos – não só ao nível das formações que surgem ministradas pela Academia Militar esta realidade parece ser inexistente, como olhando para os objectivos da Direcção de História e Cultura Militar do Exército, se percebe que o foco se encontra noutro lado, no “fortalecimento dos valores colectivos de Pátria e Nação”, (objectivo que me parece bem distante do definido no texto da convenção…).


Mas se é um facto que o documento se encontra repleto de artigos de aplicação duvidosa (ou mesmo no domínio da utopia), existe uma ideia contida no mesmo (sem grande destaque e que se encontra reflectida no parágrafo anterior), que me parece ser uma das mais poderosas armas para prevenir a guerra, e para garantir em situações limites como a que vivemos que uma parte significativa da memória, identidade e cultura dos povos não fique irremediavelmente perdida: a educação patrimonial.


Este tema que já foi muitas vezes abordado em artigos de opinião na patrimonio.pt, e que existe enquanto conceito desde o início do século XX, continua ainda a ser bastante negligenciado nos sistemas de ensino e no seio de muitas instituições que têm responsabilidades na preservação e protecção do património cultural. Para além disso, torna-se ainda mais evidente, e partindo desta aspiração contida no documento (ainda que para as forças armadas), a importância de museus, monumentos e sítios terem serviços educativos activos, dinâmicos e dotados dos recursos humanos necessários (uma vez que são os espaços por excelência para a educação patrimonial), e a justa pertinência das reivindicações que os seus profissionais vêm fazendo há já muitos anos, relativamente à necessidade da existência de condições que permitam cumprir esses pressupostos.


Decorrido mais de um mês do início da guerra, reforcei a minha convicção, que surge expressa no título deste texto (retirado de um artigo de opinião da autoria de António Guerreiro publicado no jornal Público em 11 de Março), que tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra.



Apesar de pouco valorizado pelas sociedades, o património e os profissionais que nele trabalham (directa e indirectamente) têm uma enorme relevância social, sendo produtores de conhecimento e potenciadores de pontes entre diferentes realidades históricas e culturais.


Sei que trabalhar na área da cultura é um desafio constante, onde muitas vezes nos questionamos se vale a pena o esforço hercúleo que é necessário para nos mantermos profissionalmente na mesma. Mas apesar de tudo isso, momentos como o que vivemos fazem-nos perceber que estamos do lado certo, que trabalhamos para sociedades melhores, e que a solução para os problemas que o mundo enfrenta também passa por nós e pelo trabalho que realizamos.


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