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Pequeno guia para discutir o derrube de estátuas



Muito se tem discutido sobre o derrube de estátuas nos últimos meses. A maior parte dos textos faz comentários apaixonados a favor ou contra, mas é preciso ter em conta que este é um fenómeno dado: ele está a acontecer, independentemente de discussões teóricas. Em segundo lugar, apesar de estar a passar-se em vários locais, é heterogéneo e é nas suas especificidades que é possível encontrar respostas e buscar campos de actuação. Este pequeno ensaio pretende evidenciar as várias singularidades do fenómeno e lançar luz sobre alguns pontos centrais que devem ser debatidos, já que tanto o ataque às estátuas quanto a respectiva controvérsia estão longe de terminarem.


"Meme" retirado do Facebook: a estátua do bandeirante Borba Gato olha com medo para o derrube de Edward Colson.
"Meme" retirado do Facebook: a estátua do bandeirante Borba Gato olha com medo para o derrube de Edward Colson.

Porquê estátuas?


A morte de George Floyd em 25 de Maio do corrente ano foi o estopim de um fenómeno que já estava em curso: o derrube e o vandalismo de estátuas de figuras históricas associadas a práticas racistas ou colonialistas nos Estados Unidos da América e em outros países do Ocidente. Muitos podem ver no fenómeno a relação violenta de um vandalismo que procura um objecto como alvo de fúria raivosa, mas é preciso entender o contexto da visualização da morte de Floyd: a grande diferença entre essa e outros assassinatos policiais não está na técnica utilizada pelo assassino ou na figura carismática do assassinado, mas no contexto de visualização e reprodução do episódio.


Há-de ficar claro que não assistimos à morte de George Floyd, assistimos a uma gravação do evento. Aquelas imagens repugnantes estão perpetuadas por meio de um sistema audio-visual de grande reprodutibilidade. A gravação, ela mesma, é um monumento. Servirá para assombrar gerações futuras. Poderá ser assistida infinitas vezes e está acessível em qualquer lugar que tenha internet. Parece então óbvio que a reacção seja atacar outro monumento que pareça ter a mesma carga simbólica. É também por isso que as reacções foram globais (ou ocidentais): elas podem ofender todos os que assistem à gravação. Não se trata de uma simples “imitação” global, mas de uma violência que fere parte significativa da sociedade de diversos países.


Diferenciar dois fenómenos


O derrube de estátuas está a ser considerado por muitos como vandalismo, mas o fenómeno é bastante mais complexo e precisa de ser diferenciado sob o risco de se proferirem falsas acusações. O vandalismo é a acção de uma pessoa ou de pequenos grupos de destruição de bens públicos ou privados. Contudo, apesar de ser condenável e de ser imputável de pena legal em quase todos os lugares do mundo, não pode ser tratado com indiferença quando seu foco é recorrente. É sempre de se perguntar por que razão uma pessoa irá perder o seu tempo e expor-se a ser punida se não tiver algum tipo de ganho financeiro ou psicológico ou identitário. A ideia de que se trata de um arroubo de juventude ou de uma descarga de violência aleatória deveria ser examinada com cuidado quando existe um alvo claro.


Um outro grupo de acções que se tem aqui visto é o do derrube ou retirada das estátuas. Estes são movimentos de grupos feitos à luz do sol, com público, e que manifestam ao poder público ou às suas comunidades insatisfação com a homenagem dada a uma figura história. Em muitos casos, há uma discussão prévia ou uma petição ignorada por longos períodos. Por exemplo, Cecil Rhodes, no campus de Oxford, que tem a sua retirada solicitada há pelo menos cinco anos. O derrube mais famoso, o de Edward Colston, já tinha igualmente sido alvo de pichações há vinte anos, em 1999. Nos Estados Unidos, as comemorações da chegada de Cristovão Colombo já tinham sido postas em causa pelo menos em 2017.


História, memória e anacronismo


Este tem sido o cerne da maior parte das discussões. Apesar de os historiadores terem feito um esforço para explicar que história e memória são coisas distintas, este ponto não parece ainda plenamente compreendido: uma estátua não é uma personagem histórica em si. O seu derrube não implica o sumiço histórico de uma personagem. Uma estátua é uma homenagem, feita a posteriori, de maneira a legar à posteridade quem os seus executores consideram dignos de serem constantemente lembrados. O seu carácter exemplar está conjugado no próprio modelo iconográfico e arquitectónico que é usado à exaustão e tem precedentes na antiguidade clássica: um suporte ou pedestal coloca uma figura humana acima dos passantes. A história de uma personagem histórica não está essencialmente nas estátuas: está em documentos textuais e arqueológicos que estão ou deveriam estar salvaguardados em museus, arquivos e universidades.


Mas acontece dano a essas personagens quando há descaso com essas instituições, com os seus profissionais, com os pesquisadores. Logo, o que se ataca não é a história: é a memória. Não há nenhum anacronismo em condenar uma estátua de um mercador de escravos. A sua existência histórica continuará conquanto existam pesquisas e divulgação do seu nome; mas o espaço que a estátua ocupa não é passado: é presente. Assim como as casas precisam de ser restauradas e cuidadas para continuarem a ser ocupadas, igualmente os outros elementos do espaço público precisam de vida presente. É natural que as estátuas de colonizadores, existindo no tempo presente em espaço público, e não em espaço de discussão como um museu, às vistas de muitos transeuntes, causem dor a alguns.


O próprio acto de destruir é histórico


Moda, novidade e terrorismo foram alguns dos adjectivos associados a este fenómeno. Mas a verdade é que não existe nada mais tradicional do que destruir memórias do passado em prol da construção de um novo futuro. Há exemplos desde os tempos egípcios, romanos ou da própria Revolução Francesa, largamente expostos nos últimos meses, mas há também exemplos de transformação operados por mudanças políticas, feitos de maneiras mais consensuais. Por exemplo, uma estátua equestre do ditador Francisco Franco foi retirada em 2005 do centro de Madrid, as estátuas de Lenine e Estaline foram retiradas da União Soviética após a queda do Muro de Berlim. Não há nada que garanta ou deva garantir à estátua uma existência eterna. E há-de se convir que nem todas são grandes obras da História da Arte, vide o célebre busto de Cristiano Ronaldo no Aeroporto da Madeira. Elas são objectos históricos, é certo; mas não mantemos todas as lascas de pedra polida em espaço público ou mesmo expostas num espaço museológico apenas porque são históricas.


Terrorismo versus tensão de narrativas históricas


Outra confusão muito propagada foi a de chamar de talibãs, terroristas e termos semelhantes àqueles que participaram desses actos. Trata-se de uma ofensa muito grave. Há uma diferença muito grande entre um grupo que invade e subjuga o outro, e usa como estratégia a destruição total da memória histórica de outro grupo, e cidadãos de um mesmo país que demonstram insatisfação com a maneira com que são tratados e com que os seus antepassados são representados por outro grupo de um mesmo país. A memória é impreterivelmente um campo onde os vencedores estabelecem um campo simbólico-narrativo sobre os dominados. Uma imagem em contestação, alvo de petições, é possivelmente uma imagem que não conta uma história inteira. O ataque às estátuas e a sua contestação são o resultado claro de choques narrativos que acontecem nos nossos dias.


Alvos


É claro que são figuras históricas com um recorte cronológico bem estabelecido: séculos XV-XX. E com acções contra populações negras ou indígenas, como traficantes de escravos ou como primeiros colonizadores. Este recorte largo, mas preciso, é outro indicativo de que não se trata de uma simples atitude predatória. As estátuas estão a ser atacadas não exactamente por representarem quem representam, mas pelas consequências reais e simbólicas as acções dos representados no nosso presente colectivo. O problema não é que o Padre António Vieira tivesse querido catequizar os índios: é que ainda há quem queira, hoje, catequizar os índios. E é por isso que a imagem de um índio feito iconograficamente com infantilidade é tão insuportável para alguns. Da mesma forma, os traficantes de escravos não seriam tão detestáveis se as populações negras estivessem bem integradas e fossem respeitadas como cidadãos. A presença física destas estátuas perpetua simbolicamente a existência de vencedores e vencidos.


As reacções


Nem todos os países ou governos têm reagido da mesma maneira sobre o tema. É preciso levar em conta antecedentes históricos, discussões teóricas e até cultura religiosa. É sabido que o mundo académico anglo-saxónico tem promovido um um número maior de debates sobre a descolonização, com críticas claras a conceitos como aculturação e com exames cuidados aos diversos tipos de resistência. Também países de tradição protestante ou ateus tendem a sacralizar menos as suas estátuas do que países de tradição católica, que demonstram mais sensibilidade ao tema. Isso talvez explique a razão por que alguns governos foram rápidos nas suas reacções em prol da retirada de estátuas e outros tenham reagido com ofensas públicas aos manifestantes. Nos Estados Unidos, em tempos de eleição, essas reacções ganharam inclusive carácter político com Donald Trump a manifestar-se contra o fenómeno de derrube. Por outro lado, a reacção da imprensa portuguesa e de figuras políticas deixou claro que não se trata de uma simples condenação ao vandalismo (que seria, sim, razoável, se acontecesse sempre), mas da percepção clara de que se trata de uma disputa de narrativas. Afinal, ainda esperamos o regresso de D. Sebastião ao Rossio…


Em Portugal…


Apesar da súbita histeria da imprensa (estátuas são vandalizadas todos os dias e sequer mereciam menção nos jornais), o fenómeno foi sub-representado em Portugal. Até agora só houve uma pichação à figuração do Padre António Vieira, em Lisboa, e uma decapitação de Robert Baden-Powell, em Coimbra. Ambas as acções mais próximas do vandalismo do que de um movimento organizado de contestação. Mas, apesar de serem duas figuras distantes historicamente, elas têm algo em comum: uma inauguração recente. O que deveria deixar descansados todos os que estão preocupados com perdas no campo da história da arte: afinal, o que parece difícil de engolir é que, em data próxima, ainda se façam este tipo de homenagens acríticas. A estátua do Padre António Vieira corresponde a um modelo iconográfico tão ultrapassado, com os índios feitos crianças, que é de se perguntar como sequer foi aprovada.


Estátuas e reconciliação


A principal diferença entre este momento histórico e o de outros ataques é que nos encontramos em uma situação única: a possibilidade de promover discussões e criar soluções que permitam algum tipo de reconciliação entre a população e as estátuas.


Que fique claro: o património é público, os governos tutelam-no! Se uma parte da comunidade pede para que haja uma revisão em uma homenagem, é dever dos agentes públicos e dos especialistas em história e património promoverem esse debate.

Enumeram-se de seguida duas possíveis soluções:


a) Criação de placas ou dispositivos que dêem conta da complexidade histórica daquela figura. É preciso, sim, dizer que uma personagem histórica pode ter sido fundamental para um determinado aspecto da sociedade, mas muito danosa para outro. Ao mesmo tempo, é preciso justificar a sua manutenção como homenageada. Por vezes, será pura e simplesmente por obedecer a um programa urbanístico, arquitectónico, iconográfico (que ficaria incompreensível na sua ausência), mas é preciso que isso fique claro. Não demonstrar consideração pelo sofrimento de uma parte da população parece uma via que só levará a mais conflitos.


b) Recolocação em museus. As estátuas são inegavelmente documentos históricos e merecem ser tratadas como tal, mas talvez nem todas devam pertencer ao espaço público para a posteridade e não há nenhum mal nisso. Os museus são entidades responsáveis pela manutenção do acervo e por uma discussão mais aprofundada e guiada de objectos históricos. Em alguns casos há-de se considerar que para a própria manutenção da peça isso seria mais proveitoso. Alguns países como a Índia, bem como países da antiga Cortina de Ferro, criaram espaços temáticos para a deposição e visitação dessas estátuas retiradas.


A reconciliação com as estátuas só virá se esse debate não for ignorado, mas sim aproveitado como oportunidade para discutir o património, sua inventariação, protecção e divulgação. Para todos os profissionais e interessados este é um momento excepcional que deveria ser utilizado para o aprofundamento dos temas e discussões próprios do campo.


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