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Os museus e o património cultural antes, durante e depois da pandemia de Covid-19




Cerca de 1/3 dos museus dos EUA podem não reabrir – calcula a Aliança Americana de Museus, conforme citado na declaração do ICOM internacional sobre o impacte da crise do Covid-19 neste sector. Na mesma declaração, sugestivamente intitulada “da necessidade de libertar fundos para museus durante a crise do Covid-19”, informa-se que em Itália o sector cultural espera uma perda de 3 mil milhões de euros durante o próximo semestre; e em Espanha, essa perda será de 980 milhões de euros só neste mês de Abril.


Na verdade, os museus e o património cultural em geral constituem um poderoso sector da actividade económica nas sociedades contemporâneas e especialmente na Europa, de que constituem, e de longe, a principal marca identitária, agregadora não somente dos europeus como atractiva de visitantes de todo o mundo. O Ano Europeu do Património Cultural, ocorrido em 2018, bem o demonstrou através de números esmagadores: 200 a 300 mil milhões de euros anuais em serviços dentro do ecossistema gerado pelos bens patrimoniais; mais 300 mil postos de trabalho directos e mais de 7,8 milhões indirectos (ou seja, o património cultural gera em média cerca de 26,7 postos de trabalho indirectos por cada directo, enquanto que esse valor é de somente cerca de 6,3 na indústria automóvel, por exemplo).


Acresce à dimensão económica a do envolvimento cidadão, porventura ainda mais importante. Também aqui, o Eurobarómetro sobre como vêem os europeus os museus e o património cultural é bem elucidativo do que falamos: mais de quatro quintos dos respondentes dizem ter orgulho quanto ao património do seu país e mais de dois terços quanto aos de outros países; mais de metade visitaram monumentos, sítios ou museus no último ano – índices muitíssimo superiores aos da frequência da maior parte dos espectáculos de artes performativas; mais de dois terços afirma escolher os destinos de férias tendo em conta o património cultural dos destinos (e esta percentagem é ainda superior, quase três quatros, no segmento dos jovens); mais de quatro quintos desejaria ver introduzido nos currículos escolares o ensino dos temas patrimoniais… e também quase três quartos (74% para ser exacto) consideram que os poderes públicos nacionais deveriam investir mais em património cultural, contra somente pouco mais de um décimo (14%, em rigor) que entende que tal deveriam ser cometido à iniciativa privada.


Perguntar-se-á qual o factor essencial que motiva este apego cidadão e justifica aquela actividade económica. E a resposta, em meu entender, só pode ser uma: a necessidade da memória e o gosto pela experiência na primeira pessoa, em relação empática directa com “o autêntico”. Fora deste quadro sensorial físico imediato, ou de primeiro grau, a mística (ou aura”, como lhe chamou Benjamim) do património cultural esvai-se, reduz-se e assimila-se pouco a pouco ao show business, ele igualmente muito relevante no mundo contemporâneo, mas diverso e, como confirmado em definitivo pelo Ano Europeu acima referido, de menor impacte económico e social, não obstante o bombardeamento permanente dos media a das campanhas publicitárias nos conduzem a pensar o contrário.


A experiência directa, in loco, está para os museus e o património como o nascer ou o pôr-do-sol estão para quem os vê. Nenhuma foto, vídeo ou recriação digital, por mais belos e pirotécnicos que sejam, podem substituir o ver por si próprio, fisicamente, analogicamente. No caso dos museus, mais ainda do que no dos monumentos em geral, a dimensão do contacto directo é sobremaneira marcante, porque se funda em partes iguais nos sentidos e na razão: vemos, melhor sentimos, as obras de arte, movemo-nos com elas no espaço e no tempo, tendo imediatamente à nossa disposição os elementos de enquadramento que, em tempo real, nos permitem racionalizá-las e assim atingir plataformas sucessivas, e crescentes, de experiência cognitiva, simultaneamente sensorial e intelectual. Nada substitui, pois, o choque sensorial físico, enriquecido pela razão: e isso só mesmo dentro dos museus, não sentado à frente de um écran, seja ele de televisão, seja de computador.


Ora, como podem os museus e os bens patrimoniais em geral cumprir a sua função social, estando encerrados? Dir-se-á que através de serviços afins do take-away e do home-delivery. Sim, em parte, mas apenas em parte – ainda que com o espírito positivo de o poderem fazer melhor do que seria levar ao domicílio água das praias de Carcavelos ou da Apúlia, na intenção de simular, quiçá substituir, a experiência do banho de mar. Vale, pois, a pena que invistam em tais serviços.


O encerramento forçado a todo o tipo de utilizadores, não apenas a visitantes entenda-se, a que uma situação de pandemia obriga, pode assim constituir uma oportunidade para desenvolver novos serviços de “entregas ao domicílio” de museus e monumentos. Eles já vinham sendo praticados, claro. Mas agora adquirem maior centralidade, até pela maior disponibilidade das equipas para a produção de conteúdos por via remota e para distribuição igualmente remota. E, de facto, dir-se-ia que, em praticamente todos os continentes, nunca como por estes dias se produziram tantos conteúdos de museus para consumo através da “ampla rede que liga o mundo” (possível tradução livre para “world wide web”). Ninguém quer ficar atrás. Nuns casos recuperam-se produtos já existentes: fichas digitais de peças e colecções, boletins informativos, etc. Noutros, criam-se ofertas novas: comentários ao vivo de peças e visitas guiadas a exposições ou reservas, etc. Mais raramente, oferecem-se produtos realmente inovadores, adaptados especificamente ao potencial do meio usado (a Internet) e dos recursos tecnológicos digitais. É o caso das exposições virtuais, baseadas ou não em exposições reais, mas detentoras de capacidades interactivas que permitam aos internautas não apenas circular nos espaços, em simulação tridimensional dos mesmos, como fazer sucessivas aproximações a peças, também elas volumétricas (e com capacidade de flutuarem no espaço de tal sorte que se pode ver o que nunca normalmente nelas se veria), podendo adicionalmente obter toda a informação contextual relevante, quiçá, com arte e engenho, penetrar nos próprios espaços de origem, igrejas, castelos ou sítios arqueológicos, que se podem vislumbra primeiro em voo de pássaro para depois entrar e descer até ao salão, à sacristia, à alcova, à parede ou ao nicho onde originalmente se encontravam.


O mundo das ofertas especificamente orientadas para o contacto remoto é realmente imenso. A Network of European Museum Organizations (NEMO), num inquérito que ainda decorre e ao qual seria bom que mais museus portugueses respondessem, apresenta o seguinte elenco de actividades: programas de aprendizagem em linha, exposições em linha, passeios virtuais pelo museu, podcasts de museus, programas do YouTube, boletins especiais, conteúdos ao vivo (como visitas ou comentário de peças ao vivo), aumento das colecções disponíveis via Internet, trabalho com hashtags nos meios sociais, jogos, passatempos e concursos. E em muitos casos estas ofertas nem sequer requerem pesados investimentos financeiros: as teleconferências ou simples consultórios, do tipo “à conversa com…” ou “pergunte a…”, aí estão para o demonstrar.


Quando sairmos das actuais condições de confinamento social, ou mesmo quarentena, os museus estarão por isso muitíssimo mais dotados de recursos digitais do que quando nela entraram. Talvez principalmente os museus, acrescente-se, porque nos monumentos, na sua maioria (excepção a alguns de maior dimensão e sobretudo aos palácios, que na verdade são afins de museus), não existem em geral equipas residentes próprias e tudo depende de retaguardas, as mais das vezes ocupadas em funções dispersivas de administração, fiscalização e gestão.


Será, então, a altura de pensar no “dia seguinte”, começando porventura por avaliarem criticamente o que fizeram durante a crise. Produziram muitos conteúdos digitais? Os triviais apenas, aqueles que já tinham do antecedente ou outros mais inovadores e realmente vocacionados para o contacto a distância? E tais conteúdos visaram e visam o quê? A democratização do saber, simplesmente? Sendo obviamente positivo, não chega. Os museus em particular têm maiores responsabilidades sociais, que aliás deveriam ter conduzido a pensar que papel poderiam ter desempenhado durante a crise em apoio das comunidades em que se inserem. Cita-se a frase de combate segundo a qual “um museu que não serve para vida, não serve para nada”. Claro que, como todas as frases idênticas existe nela uma uma certa vacuidade, algo infantil (como aliás, aliás o prova a circunstância esta mesma frase poder e de facto já ter sido aplicada a praticamente todos os campos da vida social). Mas, ainda assim, importa reflectir nela. Não poderiam muitos museus ter tido na crise papel comunitário mais activo? As suas instalações, os seus equipamentos, até as suas equipas, não poderiam elas ter sido postas ao serviço do combate à pandemia? O único caso português que conheço (outros haverá e peço antecipadamente desculpa pela minha ignorância) é o do Museu Nacional de Machado de Castro, que converteu capacidades laboratoriais instaladas (conjugadas com trabalho em casa) para produzir equipamentos de protecção de pessoal em serviço nos hospitais da cidade de Coimbra.


Finalmente, devem os museus reflectir sobre lições a tirar desta crise e, tanto quanto possível, devem procurar adaptar-se ao que estimem vir a ser o futuro. No momento em que escrevo ninguém pode ainda com segurança prever qual será o futuro depois do Covid-19. Mas não custa admitir que os canais de acesso remoto ir-se-ão intensificar – e muito mais rapidamente do que já antevíamos. Os museus deverão, por isso, começar a pensar em estruturar internamente as equipas nesse sentido. A escassez de competências dentro dos museus para estes domínios, com total dependência de aquisições de serviços externas (fazendo os museus o papel de “belas adormecidas” à espera dos beijos dos príncipes salvadores, neste caso as empresas das chamadas “indústrias criativas”, mormente de produtos digitais), deve ser urgentemente reconsiderada.


Aquilo para que projectos como o Mu.SA vinham chamando a atenção nos últimos anos adquire maior premência e deve obrigatoriamente ser feito “de dentro para fora”, quer dizer a partir da reflexão interna de dentro dos museus, com estrito controlo de conteúdos pelas suas equipas, e só depois para fora, para os especialistas das tecnologias digitais e os fabricantes de equipamentos. Idealmente e a título meramente exemplificativo, diria que todas as futuras exposições físicas em museus deveriam conhecer versão interactiva para visualização remota.


Existe, pois, um imenso campo de reflexão técnica perante nós, porque talvez o mundo não volte a ser o mesmo depois desta crise planetária, de que ficará para a história a imagem pungente de um papa a orar sozinho em frente da grande Praça de S. Pedro, porque todos escapuliram, desta vez não porque Aníbal estava às portas… ou talvez sim, porque poderíamos dizer: “Annibal ad portas, corona virus in specie”.


Mas precisamente porque o mundo será talvez outro, a reflexão não poderá ser somente técnica. Terá de ser também política. E aqui cada um terá sua, como cumpre em democracia. No que me diz respeito, a lição das lições é a da centralidade da propriedade e em grande medida também da gestão pública, sobretudo quando se trate de acervos que o conjunto da sociedade entenda constituir memórias comuns. O terço de museus estado-unidenses que não voltarão talvez a abrir portas, soçobram porque precisamente foram criados e eram geridos numa óptica privada, não necessariamente de lucro (na maior parte dos casos e pelo menos em palavras seriam administrados por sociedades sem fins lucrativos), mas debaixo do paradigma da dispensabilidade da intervenção do Estado ou, se quisermos, do acintosamente chamado “estado-patrão”. O mesmo se passa naquele país com outros sectores, como o da saúde. Só que enquanto neste sector o mesmo ominoso “estado-patrão” acabou por injectar imensas quantidades de dinheiro no sistema, para salvar vidas e afinal salvar empresas também, a exemplo do que sucedeu em todas as crises passadas do capitalismo (haja em vista o caso paradigmático da banca, como em passado mais remoto o do aço e diversas outras commodities), no caso dos museus, bom, eles são muito mais dispensáveis e pouco importará que encerrem. Ora, a mim muito importaria que encerrassem os nossos arquivos de memória e entendo que o melhor forma de o conseguir é através do modo de organização social que inventámos e a que continuamos a recorrer sempre - e sempre, especialmente em momentos de crise. Hoje, por causa de uma criatura microscópica, como há seis ou sete mil anos, por causa das cheias no Eufrates.


Nota: Depois de redigido este texto tivemos conhecimento dos resultados do inquérito promovido pela NEMO sobre o impacte do Covid-19 na situação dos museus da Europa. Os dados são muito sugestivos e podem ser obtidos aqui.


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