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Não sou técnico de Conservação e Restauro!


Não tenho qualquer formação em Conservação e Restauro e, por isso, evidentemente que não sou técnico de Conservação e Restauro. No entanto, o título acima não alude ao meu caso particular, antes ao de quem tem cinco anos de formação superior em Conservação e Restauro e é identificado como técnico de Conservação e Restauro ou, duma forma mais compacta, técnico de Restauro. A situação ocorre frequentemente nas poucas notícias e noutros textos em que são relatadas actividades desta área e, provavelmente, a maioria de quem os lê, designadamente os envolvidos, não vê aí qualquer problema. Pelo menos, salvo um comentário de Frederico Henriques, não tenho visto queixas. Mas as palavras contam e essa designação de técnico, mesmo que usada sem qualquer intuito negativo como parece ser o caso, tem consequências negativas, quer para os nomeados, quer para a Conservação e Restauro.


Em primeiro lugar, ainda que não seja o mais importante, há a questão de já há anos estar estabelecida em Portugal a distinção entre técnico de Conservação e Restauro e conservador-restaurador. Ela surgiu no Decreto-Lei n.º 55/2001, que determinava a criação das carreiras de conservador-restaurador e de técnico de Conservação e Restauro. Numa ocasião em que as licenciaturas tinham cinco anos de duração, para ingresso na carreira de conservador-restaurador era exigida “licenciatura na área da Conservação e do Restauro”, enquanto o recrutamento para a carreira de técnico de Conservação e Restauro era feito “entre diplomados com curso superior na área de Conservação e Restauro, que não confira o grau de licenciatura”. Quanto aos conteúdos funcionais, o documento definia que um técnico de Conservação e Restauro “procede a exames técnicos e ao diagnóstico do estado de conservação do património cultural [e] realiza e documenta as intervenções adequadas a cada caso”, ao passo que um conservador-restaurador “investiga, utiliza e adapta métodos laboratoriais e processos técnico-científicos, a fim de diagnosticar, definir, coordenar e executar acções de conservação preventiva bem como realizar intervenções curativas de conservação e restauro do património cultural”. Ou seja, a distinção passa pelas competências de investigação, estudo e coordenação – que são atributos característicos do conservador-restaurador.


O decreto-lei referia-se apenas a carreiras de pessoal de organismos da administração central sob tutela do Ministério da Cultura, mas a distinção generalizou-se à actividade. Para isso contribuíram, sem dúvida, as recomendações da E.C.C.O. – European Confederation of Conservator-Restorers’ Organisations e da ENCoRE – European Network for Conservation-Restoration Education, em particular a que esta última aprovou nesse mesmo ano de 2001 sobre a necessidade de cinco anos de estudos superiores especificamente de Conservação e Restauro para entrada na profissão de conservador-restaurador. Foi esta a perspectiva adoptada e mantida até ao presente pelas três instituições portuguesas que integram a ENCoRE, designadamente – por ordem de antiguidade dos cursos – o Instituto Politécnico de Tomar, a Universidade Nova de Lisboa e a Universidade Católica Portuguesa, a segunda com formação mais vocacionada para as Ciências da Conservação e as outras duas para a intervenção.


Portanto, conservadores-restauradores e técnicos de Conservação e Restauro, não obstante a parte comum da formação, são profissionais com competências de níveis diferentes que, em nome do rigor e da clareza, devem ser correctamente identificados.


O segundo problema da identificação dos conservadores-restauradores como técnicos de Conservação e Restauro – para mim, de longe, o mais importante – é a posição onde a Conservação e Restauro é colocada no contexto do estudo e preservação do Património. Com efeito, quando a propósito de um caso é relatado o envolvimento, por exemplo, de um arquitecto, historiador ou engenheiro e de um técnico de Conservação e Restauro parece-me evidente que este fica num plano secundário. Ainda que as actividades de todos eles exijam formação equivalente e todos eles, de modo igualmente equivalente, possam contribuir para o estudo e preservação do Património, não me recordo de ver o arquitecto referido como técnico de Arquitectura, o engenheiro como técnico de Engenharia ou o historiador como técnico de História da Arte – embora o conservador-restaurador quase sempre seja o técnico de Conservação e Restauro. É certo que num dos dicionários de português que mais aprecio, o Houaiss, técnico é definido de uma forma vaga, que pode servir para qualquer um dos mencionados, como “aquele que é versado numa arte ou ciência”, mas segundo outro dicionário do mesmo calibre, o Aurélio, de um modo mais concreto, técnico é o “indivíduo que aplica determinada técnica”, algo que não são nem o conservador-restaurador nem os outros nomeados, que não se limitam a aplicar conhecimentos.


Eloquente ilustração desta menorização da Conservação e Restauro, que se manifesta na identificação dos conservadores-restauradores como técnicos quando o mesmo não acontece a respeito dos outros, é o caso da atribuição do prémio Vilalva, pela Fundação Calouste Gulbenkian, à recuperação da Igreja e Torre dos Clérigos, em 2016. No texto distribuído à imprensa, depois amplamente reproduzido sem qualquer informação adicional, eram referidos a instituição que atribuía o prémio, os membros do júri que tinham feito a escolha e a entidade que tutela o monumento e promoveu os trabalhos premiados. Constavam também referências ao respeito pela integridade física do património edificado, ao recurso a técnicas tradicionais, à recuperação da dignidade e dos valores que estavam perdidos, enfim, ao uso de adequadas metodologias de Conservação e Restauro, entre outros aspectos que pesaram na decisão do júri. Mas quem desenvolveu o projecto, quem estabeleceu a metodologia de intervenção, quem executou o trabalho que acabou por ser premiado? Qual foi a empresa de conservação e restauro ou de recuperação do Património que esteve envolvida? Quem foram as pessoas que, entre contraditórios valores, escolheram os que deviam ser preservados, decidiram o que devia ser feito e o que não podia ser feito, seleccionaram as técnicas e os materiais a usar? Nem um nome! Em contrapartida, a propósito da menção honrosa na mesma ocasião atribuída ao projecto das instalações da sede da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos, era claramente identificado o atelier de Arquitectura responsável pelo mesmo.


Este caso, que comentei na ocasião, e outros análogos (designadamente outros prémios Vilalva posteriores) mostram claramente que os conservadores-restauradores não têm o mesmo estatuto que os outros profissionais que lidam com o Património Cultural. Certamente que chamar técnico a um conservador-restaurador quando outros são identificados como arqueólogos, arquitectos, engenheiros ou historiadores não é a directa causa disso, mas, parece-me, alimenta uma ideia de Conservação e Restauro, como actividade manual, que contribui para essa secundarização, prejudicando quer os conservadores-restauradores, quer o Património.



P.S. – Evidentemente que o título deste texto e o que atrás está dito não significa qualquer desconsideração dos técnicos de Conservação e Restauro e da sua actividade – aliás, fundamental para a preservação do Património. O que está em causa é apenas o lugar da Conservação e Restauro, que afecta quer técnicos, quer conservadores-restauradores.


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