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Empreender, inovar, fazer obra… sustentável



No livro O Homem da Nave, publicado em 1954, Aquilino Ribeiro escreveu:


“Na batalha das eleições à boca das urnas (…) contentavam-se com postular um sino novo, que a fonte de chafurdo passasse a ser bica, o pontigo fosse de pedra em vez de pranchões podres sobre dois madeiros deitados – tanto assim que partira lá uma perna o burro do Zé Moleiro. Hoje, todas querem estradas, telefone, água canalizada, escola e cantina, luz. Pelo conseguimento destas modernidades batem à porta dos influentes ou de quem presumem que o seja e conclamam. Agora, o que mais lhes dá no goto é a luz inléctrica.

(...)

Mas não podendo tê-la em casa, gostam de vê-la na rua, porquanto alumia-os quando levam o pão ao forno, vão à fonte, se dirigem para os serões e regressam a vale-de-lençóis.

(...)

Com o baixíssimo nível de vida, a luz por agora é proibitiva ao maior número, mormente a instalação, para que possam aproveitar-se de tal melhoramento.

(...)

Um que outro, com possibilidade de introduzir em casa tal adelanto, resiste, submisso ao hábito da candeia de petróleo. E assisti a esta testilha saborosa entre um desses conservadores empedernidos, o Luís de Covelo, e um inovador, mestre Zé Aveleira:

- Luís, para que pôs janelas, logo duas e uma sacada, na casa que agora fez?

- Para quê? Ora essa, para entrar o ar…. enxergar dentro da casa…

- A como lhe ficou cada fresta?

O homem pôs-se a fazer contas: tanto para pedreiro, tanto nas portas de pinho, nos caixilhos de castanho, vidros, betume, tintas – a coisa botava aos seus oitocentos escudos cada janela, para mais que para menos.

- Pois se gastou essa soma para ter luz durante o dia, não é razoável que gaste outro tanto para ter luz durante a noite? E, olhe lá, sob muitos aspectos, não lhe é ainda mais preciso alumiar a casa de noite, que a luz do dia, mesmo sem janelas, entra pelas fisgas das paredes e das portas?!”


Nos anos 50 do século XX, na serra em Argoncilhe, este foi um exemplo de quem optou por mostrar o resultado exterior de uma obra, mas se esqueceu da sustentabilidade do uso dessa obra. Esqueceu-se do futuro.


Agora, em dezembro de 2021, quando muito se fala do PRR, muitas vezes se repetem as palavras empreendimento, inovação e sustentabilidade. Poderíamos retomar o diálogo entre um Luís Covelo e um Zé Aveleira.


Também nas “obras” em Património se apontam os desafios do empreendimento, da inovação e da sustentabilidade, embora com a salvaguarda de fazer gestão, com harmonia, dos egos de quem intervém nos monumentos, nos sítios, na paisagem cultural, e da exigida modéstia perante a herança em que se intervém.


Quando se fala deste PRR, como de outros se falou nas últimas décadas, espera-se que se gaste o dinheiro, se possível com pensamento maturado, planeamento e com bons projetos, refletidos. Geralmente surgem também receios de que algumas (bastantes) obras possam ser feitas com projetos pouco refletidos.


Nestes momentos recordo sempre um alerta que nos deixou Michel Lacroix, em O Princípio de Noé ou a Ética da Salvaguarda, publicado em 1999 pelo Instituto Piaget, Lisboa.


Segundo Lacroix, a delapidação de património cultural é protagonizada por personagens de notável longevidade e dinamismo. Dividiu-os em homem negligente, homem destruidor e homem modernizador.


Em princípio, as ações do homem negligente não são intrinsecamente más, mas resultam da ignorância.


Apesar de não desejar fazer mal, deixa os monumentos ao abandono e não se preocupa com o ambiente, a paisagem. A sua negligência não se expressa, apenas, pelo esquecimento da manutenção e salvaguarda do património, mas também pela falta de devoção. As coisas nas quais deixamos de pensar perdem pouco a pouco a sua substância. O esquecimento equivale à morte dos monumentos e dos sítios.


O homem destruidor já fora reconhecido por Alexandre Herculano quando escreveu (Monumentos Pátrios, 1838-9): “...nós destruímos por ideias falsas, ou exageradas; destruímos activamente, porque a destruição é uma vertigem desta época. Feliz quem isto escreve, se pudesse curar alguém da febre demolidora; salvar uma pedra, só que fosse, das mãos dos modernos hunos.”


Ontem, como hoje, o vandalismo destruidor desfeia o território e transforma a cidade num espaço de incivilidade, assim subvertendo a vocação primacial da urbe que é a de proteger o homem, e a vocação da paisagem que é ser feita e assumida como paisagem cultural.


Mas o homem modernizador pode ser o mais temível de todos os personagens. Escudado pela bandeira do progresso, transforma a modernização numa verdadeira ditadura: a mudança tornou-se uma máquina que ninguém controla. Por vezes, esse homem não tem que prestar contas por ter a virtude de se legitimar através de processos e procedimentos democráticos. Arrastados numa vertiginosa fuga para a frente, os homens modernizadores podem ser agentes de um processo de inovação que pode não ser sinónimo de desenvolvimento. O arquiteto Manuel Correia Fernandes, que foi vereador no município do Porto, recentemente (2020) alertou para a “necessidade de regressar ao estirador e ao lápis. Como o é o regresso ao homem e à casa. E aos vizinhos e à rua.”


Ao contrário da casa de Luís Covelo, construída na Serra da Nave, onde que se esqueceu do futuro, agora o desafio de empreender, de inovar e fazer obra, tem de ser verdadeiramente sustentável. Sustentabilidade que exige investigação prévia sobre os sítios e as paisagens para que não nos confrontemos, como cidadãos, com um mero somatório de obras em detrimento de planos plurianuais refletidos e discutidos.


Deseja-se que haja muitos como o Zé Aveleira para empreender, inovar, fazer obra… sustentável no Património Cultural.

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.

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