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Conhecer o passado da escravatura para combater o racismo de hoje


Da esquerda para a direita: Sofia Lovegrove, Lonnie Bunch e Paula Cardoso durante o evento "Racismo na praça pública. O papel dos museus em conversas difíceis mas necessárias” na Culturgest (fotografia: Vera Marmelo/Culturgest).


*Sofia Lovegrove



Conhecer o passado da escravatura para combater o racismo de hoje: O papel do intercâmbio internacional neste trabalho difícil mas necessário


Lonnie Bunch em Lisboa


No dia 7 de Janeiro 2023, tive a imensa honra e prazer de moderar – juntamente com Paula Cardoso (Afrolink) – uma conversa com Lonnie Bunch (Secretário do Smithsonian Institution) sobre "Racismo na praça pública. O papel dos museus em conversas difíceis mas necessárias", na Culturgest, em Lisboa. Durante esta conversa, Bunch partilhou as suas experiências e os desafios que enfrentou durante o processo da criação do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana (NMAAHC), inaugurado em 2016. Uma das maiores dificuldades foi contar, num mesmo espaço, a história violenta e traumática da escravatura – central para compreender o passado e presente dos EUA – e, ao mesmo tempo, fazer espaço para partilhar histórias de resiliência e esperança. Para Bunch, um museu que estuda e apresenta a história pela história constitui um museu nostálgico. O NMAAHC tinha necessariamente que ser um museu sobre o passado tendo em vista o contexto e as necessidades do presente.


O Slave Wrecks Project


Lonnie Bunch falou também acerca do Slave Wrecks Project (SWP), que constitui uma colaboração entre o NMAAHC e a George Washington University, e muitos outros parceiros nos EUA, África do Sul, Brasil e Moçambique. O projeto visa aumentar o conhecimento sobre navios negreiros afundados e desenvolver capacidade no campo da arqueologia subaquática em várias regiões do mundo ligadas à história do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Em 2015, o projeto confirmou a identidade de um navio negreiro que transportava moçambicanos escravizados quando afundou na costa da Cidade do Cabo na África do Sul. O São José Paquete d’África representa o primeiro navio negreiro identificado e documentado, um projeto que resultou de uma estreita colaboração entre atores locais, nacionais e internacionais. Este achado foi fundamental para o NMAAHC: por representar uma história individual sobre um navio e um grupo específico de pessoas, ele ajudou a trazer a história da escravatura à escala humana. Desta forma, este e outros museus – como o Slave Lodge (Iziko Museums) na África do Sul – puderam contar a história avassaladora da escravatura de forma mais compreensiva e acessível para os seus públicos.


A investigação em torno do São José, não apenas possibilitou um aumento significativo do conhecimento sobre a história e as consequências socioculturais do comércio transatlântico de pessoas escravizadas, mas também estabeleceu um novo modelo de cooperação internacional entre museus, instituições académicas e as comunidades que eles representam. As colaborações no âmbito deste e outros projetos do SWP têm permitido que muitas pessoas de diferentes países e culturas troquem ideias e conhecimento sobre o significado da escravatura em diferentes contextos, contribuindo assim para um melhor conhecimento deste passado partilhado a partir de perspetivas diferentes.


O caso português


Durante o evento, Bunch também partilhou a sua experiência desde 2019 enquanto Secretário (ou diretor) do Smithsonian. Entre outras coisas, Bunch explicou as ideias por detrás da nova política de restituição adotada no ano passado, baseada em considerações principalmente éticas, em vez de legais, que costumam dominar esta questão. A conversa com Bunch seguiu-se de perguntas e uma discussão com o público, centrada sobretudo no contexto português onde, comparativamente aos EUA, as discussões sobre a história da escravatura e o seu impacto no presente – como o racismo e a discriminação – ainda estão a dar os primeiros passos. Um bom exemplo é o facto de que embora o dono do São José fosse português (José António Pereira) e a sua presença ainda se fazer sentir em Lisboa – o edifício onde Pereira morou ainda existe, bem como uma rua em seu nome (ver fotografia abaixo) –, a história deste navio e da escravatura em geral é ainda largamente desconhecida e invisibilizada em Portugal – em museus, espaços públicos, livros escolares, etc. Tendo em conta o enorme papel do país no tráfico de pessoas escravizadas, estes são factos no mínimo preocupantes.


O evento com Lonnie Bunch na Culturgest foi gravado e pode ser visto aqui: Racismo na Praça Pública | Lonnie G. Bunch III - YouTube[1859036268]



Da esquerda para a direita: Cierra Jefferson (Smithsonian), Sofia Lovegrove, Fleur Paysour (Smithsonian), José Lino (Batoto Yetu), Stephen Lubkemann (George Washington University), Paula Cardoso (Afrolink), Kamau Sadiki (Diving With a Purpose), Raquel Machaqueiro (George Washington University), Paul Gardullo e Lonnie Bunch (Smithsonian), e Yolanda Teixeira Duarte (ArqMoz) junto à casa do José António Pereira e à rua com o seu nome em Lisboa (fotografia: Rui Gomes Coelho).



A mudança é difícil, mas necessária


Este evento antecipou o simpósio “Acertando contas com o racismo. A memória social do tráfico de escravos" no dia 9 de Janeiro, produto de uma colaboração entre organizações em Portugal (MUHNAC, Museu de Lisboa, Acesso Cultura, Culturgest, Batoto Yetu Portugal e a Embaixada dos EUA em Lisboa) e o SWP. Este simpósio de um dia divulgou e discutiu novas direções para as instituições culturais se envolverem e lidarem com a história, memória e legados da escravatura e colonialismo. A manhã centrou-se nos contextos português e lusófono, e a tarde focou-se no SWP e em abordagens decoloniais e participativas na prática museológica de vários países, com Mitchell Esajas (co-fundador de The Black Archives), Paul Reid (diretor do International Slavery Museum Liverpool) e Zandra Yeaman (Curator of Discomfort, The Hunterian). Este último painel foi mais prático e incluiu exemplos das instituições e iniciativas representadas que mostram como se pode criar espaço para narrativas mais inclusivas e desse modo tornar as instituições mais representativas das sociedades das quais fazem parte. Vale a pena ler mais sobre o processo do The Hunterian, que visa abordar os desequilíbrios de poder dentro do museu e das suas atividades. A este processo deram-lhe o nome de “Curating Discomfort”, visto que o desconforto é visto como uma intervenção produtiva da mudança que é entendida como necessária para esta instituição.


O que todos os palestrantes deixaram claro é que o seu trabalho não é apenas sobre a história da escravatura e do passado colonial. É principalmente sobre uma melhor compreensão das nossas sociedades no presente, da forma como estamos interligados e como podemos usar um melhor conhecimento da história para abordar questões sociais no presente. Como disse Stephen Lubkemann do SWP, "nós estudamos o passado da escravatura para abordar os seus legados no presente". Nas palavras de Paul Gardullo (Smithsonian), refletindo sobre o processo de mudança discutido no último painel do simpósio, "este é um processo demorado e às vezes doloroso, mas é necessário".


Este evento também foi gravado: https://www.youtube.com/watch?v=-kLBDA98ds8


A importância do intercâmbio internacional


Estes eventos e a presença de Lonnie Bunch em Lisboa atraíram muita atenção dos média, tanto em Portugal como internacionalmente. Os organizadores, bem como Lonnie Bunch e Paul Gardullo, aproveitaram esta oportunidade para pressionar instituições portuguesas e o governo a confrontar o papel do país na história da escravatura e do colonialismo. Por exemplo, numa das suas entrevistas, Bunch levantou a questão: por que é que o monumento às pessoas escravizadas – planeado desde 2018 para Lisboa – ainda não foi erguido?


Apesar dos atrasos, da inércia e da resistência à mudança, tenho cada vez mais esperança: em comparação com há 8 anos atrás, quando ainda morava em Portugal, vejo cada vez mais iniciativas que procuram dar visibilidade à história da escravatura e da presença africana em Lisboa. Tal como as visitas guiadas da Batoto Yetu Portugal em torno dos “Espaços da Presença Africana em Lisboa” e da criação de placas identificativas destes lugares; ou a African Lisbon Tour de Naky Gaglo; ou ainda as visitas à “Lisboa Africana” organizadas pelo Museu de Lisboa. A nível dos média, a discussão sobre estes temas é cada vez mais significativa e incluí várias vozes diferentes e, frequentemente, dissonantes. A nível institucional, vejo cada vez mais museus e outras organizações culturais (como o MUHNAC, o Museu do Aljube, o Padrão dos Descobrimentos, o Museu de Lisboa e a Culturgest) a desenvolver exposições e programação críticas e de forma co-criativa, em colaboração com associações Afrodescendentes, investigadores e outros grupos da sociedade.


Eventos como o simpósio no dia 9 de Janeiro são partes fundamentais deste processo. Eles juntam pessoas com ideias e missões semelhantes, a nível nacional e internacional, tornando possível um intercâmbio produtivo sobre os desafios que muitos enfrentam, bem como exemplos úteis, boas práticas e lessons learnt. Como disse Mitchell Esajas: “há 10 anos, os Países Baixos estavam numa situação semelhante à atual situação em Portugal. Estamos todos no mesmo processo, mas em fases diferentes”. No entanto, muito tem mudado nos Países Baixos e prova disso é o facto de que em Dezembro de 2022, o primeiro-ministro holandês pediu desculpas pelo papel do país no tráfico de pessoas escravizadas. Quem sabe, talvez daqui a 10 anos (ou esperemos menos) também veremos o primeiro-ministro português – ou, quem sabe, a primeira-ministra portuguesa –, a desculpar-se pelo papel de Portugal no tráfico de pessoas escravizadas e na escravatura!


Um outro exemplo é o evento organizado em 2019 sobre “Descolonizar os museus: isto na prática…?” (organizado pela Acesso Cultura) que incluiu uma poderosa palestra por Wayne Modest (National Museum of World Cultures, Países Baixos). Ainda ouço falar do impacto positivo que esta palestra teve no trabalho de muitos museólogos e outros profissionais da cultura em Portugal. Esperemos que o impacto dos eventos em Janeiro que aqui descrevi continuem a fazer-se sentir nos próximos anos – não apenas em palavras, mas sobretudo na prática. É essencial mantermos o contacto, de forma a podermos continuar a aprender uns com os outros.



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*Sofia Lovegrove é Programme Officer International Heritage Cooperation e Policy Officer Multivocality na Agência Nacional para o Património Cultural nos Países Baixos. Especializada em estudos críticos de património e memória cultural, o seu trabalho e investigação focam-se na representação e usos (políticos e sociais) do passado colonial (e suas durabilidades) no presente em museus, espaços históricos e políticas de memória, particularmente no que diz respeito a formações e discursos de identidade (nacional).



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