Vivemos na era do arquivo. Rodeados de uma parafernália proliferante de meios de captação, registo, armazenamento e reprodução, somos como o Angelus Novus de Paul Klee, há cem anos a olhar para o passado, levado pela tempestade do progresso. Assim vamos nós a fabricar o passado, munidos de câmaras fotográficas, de telefones com funções múltiplas, ligados com e sem fios a discos e nuvens de capacidades improváveis, coligindo informações, memórias, ficheiros, impressões, registos precisos e referências obsoletas.
Na verdade, somos um animal de arquivo — tal como somos um animal político. Assim como o corpo conserva memória de si em cada marca de crescimento, e se regista em cada sinal, em cada ruga ou cicatriz, não nos deixarão também as relações com os outros e com os lugares impressões profundas? Não escreveu Edward Said, pensando sobre o seu ser palestiniano em Nova Iorque, que estava “fora de lugar”? E não será também a pertença aos lugares feita de identidade de afectos, de relações de pertença e de marcas de memória?
Também os saberes se arquivam nos corpos de forma precisa. A modulação da voz na fala, os traços característicos do movimento, as expressões faciais, são outras tantas formas de comportamento arquivado. E veja-se o que acontece com a inscrição e reprodução de gestos, como o manusear de ferramentas de um carpinteiro, os gestos de sabor arcaico de um oleiro, o simples acto de escrita manual de cada um. Até mesmo as possibilidades complexas de reprodução de programas cinéticos nas artes performativas (dança, teatro, música, etc.). Somos arquivos vivos, os corpos em primeiro lugar.
Muito generalizados no nosso tempo são os arquivos culturais. Enquanto categoria da cultura (e poderia dizer, bebendo em Frederic Jameson, da lógica cultural do capitalismo tardio), eles podem ser definidos como dispositivos, ou formações culturais, frequentemente funcionando em contextos de tipo institucional. Bibliotecas, museus, colecções (editoriais, de arte, etc.), dicionários, paisagens, práticas artísticas, discursos produzidos dentro e fora da academia, são outros tantos arquivos culturais.
Reconhecemos um arquivo cultural num qualquer museu e no acervo que acolhe (seja por exemplo um museu do teatro, do dinheiro ou de arte moderna). Uma colecção literária ou editorial constitui-se claramente como arquivo cultural na espessura do seu “ser colecção” (como acontece com a clássica Biblioteca Cosmos, de Bento de Jesus Caraça; ou com os livrinhos da & etc…). Os livros que integram uma biblioteca particular ou pública, histórica ou recente, especializada ou generalista, configuram um repositório de interesses, aquisições ou percursos que repousam mais ou menos in-visivelmente nos usos que deles se tiver feito. Tal como um dicionário transmite um corpus de entradas ou vozes definidas de forma única, identitária e autónoma.
Uma companhia de teatro constrói muitas vezes o seu percurso na sedimentação de um arquivo cultural onde é frequente cruzarem-se territórios como o do repertório e das dramaturgias, o da edição de textos, o dos lugares dos espectáculos, os actores e encenadores que neles actuam (veja-se o caso exemplar dos Artistas Unidos). Um país tem similarmente no seu cinema nacional um compreensível arquivo cultural, carregado tanto de diferenças como de conformidades.
Boris Groys, historiador e crítico de arte alemão, teorizou os arquivos culturais situando-os na zona da economia da cultura. Assinala aquele pensador que os modos de validação do ‘novo’, a circulação de objectos nos arquivos culturais, e as condições de legitimação dessa circulação (interrogando as razões de dados objectos integrarem ou não este ou aquele arquivo), são questões que em rigor evidenciam a variabilidade destes sistemas da memória cultural, sublinhando que a sua durabilidade se encontra em relação directa com os sistemas que os financiam, isto é, com as políticas de arquivo.
É claro que a questão não é reconhecer um arquivo cultural, mas bem mais claramente interrogar as suas dinâmicas internas (o que está dentro e o que permanece fora) e externas (a legitimidade deste ou daquele arquivo, as suas relações com outros da mesma natureza), as condições das suas políticas de representação, a autoridade de quem selecciona, inclui ou exclui do arquivo e regula as suas mecânicas. Sobre isto, muito haveria a dizer. Em rigor, as futuras crónicas serão um bom pretexto para atravessar devagar este campo de inquirições e inquietações sobre os arquivos culturais, esses lugares perigosos.
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