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Ainda o Museu do Aljube e o papel dos “museólogos”



“Num momento em que se discute o papel do museólogo e a valorização (ou desvalorização) da formação em museologia – aliás, em grande parte, despoletada pela escolha de Rita Rato, nem historiadora, nem museóloga, para dirigir o Museu do Aljube – este museu torna-se paradigmático da falta de articulação entre a investigação académica (e o conhecimento dela resultante) e o desenho expositivo. É esta articulação que compete ao museólogo na construção do discurso expositivo e é esta que falha aqui para a otimização da mediação entre o museu e os seus públicos – uns mais participantes, pelas suas experiências e memórias, outros a quem é preciso dar a conhecer a resistência e a luta pela liberdade durante o Estado Novo. E é isto que, provavelmente, continuará a faltar no suposto projeto de Rita Rato.”

(Roque, Maria Isabel, "Museu do Aljube – Resistência e Liberdade," in a.muse.arte, 2020/08/04)


Regresso ao “caso” do Museu de Aljube, que tanta celeuma provocou no início deste Verão. Mas não o faço para repetir tudo o que disse sobre a nomeação da directora que veio ao tomar posse em Agosto. Faço-o porque me senti positivamente interpelado pelo texto de Maria Isabel Roque, de que o último parágrafo vai em epígrafe.

Trata-se de escrito que acompanho quase totalmente na descrição e avaliação que faz do discurso museográfico do dito Museu: um museu do tipo “livro em pé”, com tudo o que isso poder ter de mau, conforme pude aprender já lá vão várias décadas.

Recordo as frequentes reuniões de trabalho que a equipa do Museu Nacional de Arqueologia, sob direcção de Francisco Alves, ia tendo nos anos de 1980 com Adília Alarcão principalmente, mas também com designers gráficos e de equipamentos como Alda Rosa, Vítor Manaças (e mais tarde Mariano Piçarra, Emílio Vilar e Luís Moreira, entre outros), que na altura constituíam as referências que todos tínhamos, nós, arqueólogos e ademais jovens, demasiado seguros das nossas verdades, mas sem experiência prática de trabalho em museus. Recordo dessas conversas a análise muito crítica de textos e demais informação que pretendíamos apresentar naquela que antevíamos poder ser a futura exposição de longa duração do MNA, “Portugal, das Origens à Época Romana” (inaugurada, depois de muitas vicissitudes, em Outubro de 1989, para vir a ser desmantelada em Dezembro de 1993). E ainda hoje me interpelam as quase “humilhações” que sentia quando os textos que escrevia, e me pareciam perfeitos, eram revistos, sendo-me pedidos sucessivos cortes, até atingir aquilo que eu muitas vezes me apetecia enjeitar, por não lhe reconhecer mais do que banalidades. Recordo como a esta minha e nossa irritação era contraposto o argumento, supremo e arrasador, de que de nada valeria sermos muito prosélitos na transmissão de dados, se depois não fôssemos lidos.

A bitola estava então, para textos gerais, em procurar contê-los dentro do limite de 60 a 70 palavras. Frases curtas, o mais directas possível, sem complementos ou intercalações. Frases com alguma poética, mas sem exageros literários. Não existia na altura a facilidade de recorrer a obras, ou verdadeiras lições, como as que podemos agora obter apenas à distância de uns quantos cliques no teclado (ver, por exemplo, https://pt.slideshare.net/HelenHales/writing-effective-museum-text-8243677) e por isso essas “aulas práticas” marcaram-me profundamente, somando-se ao gosto que já tinha pela língua, pela gramática (de que antes chegara a ser de uma co-autor, com António Carlos Leal da Silva: Morfo-Sintaxe: Um Modelo Sintagmático e Transformacional do Português Contemporâneo, 1981, Didáctica editora) e especialmente pela escrita de tipo informativa ou referencial (ver as funções da linguagem, tal como definidas por Roman Jakobson, referidas na sucessão de posts sobre a comunicação em museus, que apresentei na minha página de Facebook.

Todavia, dito o que fica dito quanto ao uso regrado do texto em exposições, apenas se diz parte da verdade, que se poderia completar remando em sentidos opostos: do pouco ao nenhum texto; do pouco, ao muito texto.

Podem os museus dispensar de todo os textos, mantendo-se ainda assim exigentes nas mensagens que procuram transmitir? Sim, podem. É o faz o Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, que nem legendas tem junto às peças, na orientação que lhe imprimiu o meu bom amigo José Cardim Ribeiro, naquilo que constitui uma opção altamente audaciosa, tanto mais que se trata de pedras escritas em latim. Defende o amigo Cardim, e a sua equipa, que o museu, aquele pelo menos, deve ser constituir experiência impressiva e muito pessoal, sendo obrigatório contar nela com a interacção humana entre quem visita e quem recebe. Todas as visitas são por isso guiadas e partem do choque da incompreensão, do reconhecimento próprio da ignorância. É uma opção. Sedutora, devo reconhecer, num arco que se estende do ora et labora beneditino ao ocium fecundo latino, retomado pelos renascentistas, por cujo gabinete de curiosidades se termina a visita. É ainda uma opção filosoficamente muito elitista, naquilo que tal pode ter de bom, num tempo de palha. Mas tenho para mim que é impossível de praticar na esmagadora maioria dos museus, tanto por necessidade (falta de pessoal) como por convicção (liberdade dada aos visitantes de construírem por si mesmos os seus universos referenciais, usando, se tanto quiserem, as mensagens textuais que se lhes oferecem).

Salvo excepções como a indicada, os museus precisam mesmo de textos nas suas exposições, os quais podem, devem talvez, ter diferentes níveis de leitura. Títulos, textos principais ou integradores, legendas… mas também textos de segundo e terceiro nível, como lhes chamávamos nos anos de 1980, ou seja, textos e iconografia que visem o desenvolvimento de pontos específicos, testemunhos, transcrições documentais, etc., etc.. Talvez muito poucos visitantes os leiam – mas bastarão esses poucos, um que seja, para os justificar. A isto chamam alguns autores “o paradoxo do visitante”: não lê ou lê menos de metade dos textos numa exposição, mas ainda assim espera que os restantes lá estejam e pode até sentir-se defraudado se tal não suceder. E a verdade é que o museu constitui um serviço público que visa, em última análise, promover o conhecimento, puxar para cima. Mensagens corriqueiras do tipo “reader’s digest”, e só essas, adequam-se melhor ao modelo dos parques temáticos.

Esta “missão de puxar para cima” dos museus deve ser especialmente enfatizada. Ela distingue-se, opõe-se até, às narrativas que outros meios de comunicação oferecem, a começar pela televisão. “Os produtores de televisão – afirma Steve Baker em Film & Narrativesabem que não têm a nossa atenção integral e por isso, em vez da longa explanação de uma narrativa como no cinema, o típico programa de televisão, seja de ficção ou não, funciona em segmentos de cerca de cinco minutos. Embora esses segmentos trabalhem juntos para criar uma narrativa mais longa, a ideia é que eles também podem fazer sentido por conta própria”.

Alguns segundos em minutos ou poucos minutos em meias-horas (raramente um programa comum televisivo ultrapassa a hora), é tudo o que se pede ao telespectador para compreender uma trama narrativa – o que conduz a uma certa infantilização (há quem seja mais radical e diga, brutificação), muito visível nos países que mais se encontram por ela tomados. A célebre série policial “Balada Hill Street” (Hill Street Blues), por exemplo, muito popular em seu tempo (década de 1980) na Europa, constituiu um fiasco nos EUA, precisamente porque o acompanhamento da narrativa, algo complexa, implicava períodos de atenção mais alargados do que o espectador médio americano estava disponível para ter. Não sei se a situação seria a mesma hoje, quando a ditadura das telenovelas fez também o seu caminho na Europa, mas uma coisa parece-me evidente: os museus devem ser chamados a constituir redes de resistência à banalização, à mediocridade, à estupidificação.

E com isto regresso às minhas experiências de vida e ao pretexto imediato, o Museu do Aljube. Estará mal este museu no excesso de textos que apresenta? Sim, penso que sim. Mas não julgo que estivesse melhor se optasse pela auto-censura social de transmitir apenas banalidades, ainda que sob a forma de soundbites dirigidos as mais das vezes, como cumpre, à empatia ou até à comoção (algo aliás fácil no contexto concreto da temática daquele museu), desprovida de ferramentas de análise crítica.

Ora, a grande ilusão está em supor que o justo equilíbrio entre conteúdo e forma, aquilo que Maria Isabel Roque refere como “falta de articulação entre a investigação académica (e o conhecimento dela resultante) e o desenho expositivo”, possa ser dada pela contribuição dessa figura simultaneamente enigmática e salvífica do “museólogo”.

Qualquer exposição constitui trabalho de equipa. Os textos, desde logo, têm pelo menos três “autores”: quem lhes confere os conteúdos, os investigadores e comissários; quem lhes fixa o estilo, os editores; e quem lhes confere o formato e suporte, os designers gráficos. As exposições, essas, alargam o leque de colaborações a conservadores, educadores, restauradores, arquitectos e designers de equipamentos, engenheiros de luzes, etc., etc. Quem na vida participou em equipas que produziram mais de uma centena de exposições sabe bem que as soluções museográficas adoptadas resultam as mais das vezes de contributos variados, sendo no final muitas vezes difícil atribuir a exacta paternidade de cada uma delas. Podem em certos casos existir lideranças mais evidentes, os comissários, os designers gráficos ou os editores, por exemplo, mas a regra geral é a do trabalho de equipa, com quem realmente possui preparação académica e/ou capacidades práticas em cada domínio disciplinar considerado.

Neste quadro, das duas uma: ou se crê que o “museólogo” é assim uma espécie de “homem/mulher dos sete instrumentos”, preparado para subsumir com vantagem todos aqueles perfis profissionais, ou então… bom, sendo frontais, não se vê que falta faz, porque na realidade não possui a preparação inerente a nenhum deles. A menos que seja tendencialmente equiparado a conservador, o que pode fazer sentido ser tiver formação académica inicial ou de exercício que a tal habilitem. Mas então, mais uma vez, será “apenas” um membro de equipa pluridisciplinar. Importante? Sem dúvida. Mas somente “mais um”, dizendo-me aliás a experiência bem sedimentada que na vasta maioria dos casos as soluções museográficas adoptadas em exposições provêm muito mais dos contributos de profissionais como os acima indicados do que do conservador de museu, neste caso dito “museólogo”. O que constitui um imenso logro será pensar que uma qualquer formação dita interdisciplinar, mas de facto de saberes vagos, possa dispensar o verdadeiro trabalho de equipa.

Aquilo que os museus precisam, seja através de pessoal interno, seja pela contratação externa, é de especialistas em cada uma das áreas científicas e técnicas da sua acção. E todos são necessários, embora se possa admitir que nuns casos possam optar por dar maior ênfase às funções de investigação e conservação, contratando para os seus quadros preferencialmente especialistas capazes de saber interrogar criativamente as colecções e de assegurar a sua conveniente gestão, desde logo a sua conservação; noutros casos, possam talvez focar-se nos públicos, dando prioridade a especialistas em comunicação e educação; noutros ainda, nas funções básicas de administração, recorrendo a profissionais da gestão.

As três áreas indicadas são as que constam do Referencial Europeu de Profissões Museais, elaborado pelo Comité de Especialidade do ICOM para a formação de pessoal, o ICTOP. Um total de 19 perfis profissionais são aí considerados: 8, na área da Colecções e Investigação; 6, na área de Públicos; 5, na área de Administração, Gestão e Logística.

Ora, sendo certo que este Referencial de há mais de uma década deve ser revisto, como pressurosamente foi assinalado por alguns a propósito do “caso” Rita Rato e do perfil de director de museu (cuja formação inicial é ali definida nos seguintes termos: “Diploma universitário de segundo ciclo, pelo menos numa das especialidades cientificas ligadas às colecções do museu, bem como formação ou competência certificada em museologia e gestão.”), tal revisão não deverá nunca operar no sentido de reduzir o leque de interdisciplinaridade dos museus e da consequente necessidade de especialistas devidamente habilitados em cada área, substituindo-os por generalistas ou peritos de coisa nenhuma.

Faça-se o exercício simples de indagar junto dos defensores da condição de “museólogo” quais os perfis profissionais do Referencial que os ditos estariam em condições de preencher. E o resultado será esclarecedor: todos ou quase todos, obviamente. Pode um “museólogo” cumprir funções de conservador? Certamente, dirão. De responsável pelo inventário, de gestor de peças, de assistente das colecções, de responsável pelo centro de documentação, de comissário…? Claro que sim. Hesitarão talvez unicamente em restaurador ou designer, mas ainda aqui sublinharão as suas capacidades em matéria de conservação preventiva e da imaginação de soluções museográficas e ambientes expositivos. Pode um “museólogo” cumprir funções de responsável pela mediação e serviço educativo? Por certo, dirão também. De mediador, responsável pelo serviço de acolhimento e vigilância, técnico de acolhimento e vigilância? Pois claro. Vacilarão talvez apenas em responsável pela biblioteca/mediateca e responsável pelo sítio web, ainda que enfatizando em ambos os casos os seus saberes nos domínios das bases de dados e gestão da informação, incluindo o recurso aos meios internéticos. Finalmente, pode um “museólogo” cumprir funções de gestor? Isso nem se pergunta, é evidente que sim, porque essa constitui uma das suas principais praias de veraneio (porque realmente de veraneio se trata). De responsável pela logística e segurança, de responsável pelos sistemas informáticos, de responsável pelo marketing, divulgação e recolha de fundos, de responsável pela comunicação com os media? Obviamente, porque de tudo isso se falou um dia, durante os minutos ou breves horas, nas suas pós-graduações.

O mesmo exercício poderia ser repetido tendo por base outras listagens de profissões museais, sejam as que são indicadas por agências ou centros de emprego (ver, por exemplo,

https://www.localwise.com/a/298-the-16-must-have-museum-jobs-on-the-market), sejam as que visam introduzir os estudantes a potenciais carreiras e níveis remuneratórios (ver, por exemplo, Schlatter, N.E., 2008, Museum Careers: A Practical Guide for Students and Novices, Routledge. Nova Iorque) seja a bendita Wikipedia. O resultado seria sempre o mesmo: ausência do profissão de “museólogo” e, afinal, diluição daquilo que os seus defensores pretendem que ela seja em praticamente todas as profissões identificadas.

Na realidade, a posição mais comum é a de considerar que “museólogo” não constitui profissão, mas conjunto de saberes que podem (e eu diria, idealmente devem) melhor qualificar as profissões museais. Nos seus “Conceitos-chave de museologia” (Armand Colin e ICOM, 2010; edição em português de 2013), André Desvallées e François Mairesse (Eds.), afirmam, debaixo do verbete “Profissão”: “A profissão define-se, primeiramente, em um quadro socialmente determinado e não por definição do acaso. A profissão não constitui um campo teórico: um museólogo pode se intitular um historiador da arte ou um biólogo por profissão, mas ele também pode se considerar – e ser socialmente aceite – como um profissional da museologia. Para que uma profissão exista, ela deve ser definida como tal, e também ser reconhecida como tal por outros, o que nem sempre é o caso no mundo dos museus. Não existe uma, mas várias profissões ligadas ao campo dos museus, o que significa dizer que existe uma gama de atividades ligadas ao museu, pagas ou não, pelas quais uma pessoa pode ser identificada (particularmente no que se refere à sua condição civil), atribuindo-lhe uma categoria social”. Já no verbete “Museologia” reconhecem que “nos países onde não existe a profissão específica reconhecida – ao contrário do que se tem na França com os conservateurs, e no Brasil com os museólogos – o termo “museólogo” pode se aplicar a toda profissão museal (como no caso de Quebec), e, em particular, aos consultores responsáveis por estabelecer um projeto de museu ou por realizar uma exposição”. Ou seja, “museólogo” pode ser tudo e o seu contrário, estudioso dos museus apenas, ou profissional dos mesmos, e neste caso com funções delimitadas (normalmente afins das de conservador) ou com funções ilimitadas, uma espécie de “faz-tudo” de canudo habilitado, diferente portanto da tradicional intendência de usos gerais, que apenas requeria níveis de instrução básica.

O cepticismo em relação a “fazem-tudo” ciosos dos seus diplomas não deve, contudo, ser confundido com menor apreço por perfis multidisciplinares ou de espectro amplo. De modo nenhum. Esta pode aliás ser a grande mais-valia dos ditos “museólogos”, sobretudo em museus pequenos e sem colecções cientificamente muito significativas, quer dizer, com necessidades de interrogação muito especializadas. Tudo depende, como sempre, de cada um na irredutibilidade do seu percurso curricular e da sua própria natureza. Farão muito bem os responsáveis de um museu onde, por exemplo, apenas possa haver um técnico com formação superior em escolheram um “museólogo”, se as condições acima indicadas (currículo e características pessoais), ou outras, assim o recomendarem. Como farão igualmente bem em escolher um sociólogo, um historiador ou um conservador-restaurador… Se falássemos de director, em museu com um ou dois técnicos especializados, então, o leque de escolhas poderia ainda ser muito mais alargado, porque talvez um poeta, um matemático ou um filósofo pudessem ser a melhor escolha.

O que os responsáveis pelos museus andariam muito mal em fazer, seria escolher “museólogos” apenas porque sim, porque na sua de formação reconhecessem necessariamente vantagens. Ou, pior ainda, porque se fiassem na palavra e entendessem que ela cumpre os requisitos que se requerem para ter bons museus.

E com isto regresso à vaca fria: no Museu do Aljube o que para mim especialmente se sente mal não é o excesso de textos e a falta de “museólogos” – é a míngua de peças e, consequentemente, de um discurso que articule ideias com colecções. Ora, “é isto que, provavelmente, continuará a faltar” se entre historiadores e visitantes se interpuser apenas essa figura nevoenta do “museólogo”, homem ou mulher dos sete instrumentos, que pretendendo saber de tudo, na sua prodigiosa e oca interdisciplinaridade, pode arriscar afinal saber pouco mais do que de nada.

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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