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A Rede de Museus Inclusiva na Demência


Filipa Aniceto* e Catarina Alvarez**


A Demência na atualidade

Portugal é um dos quatro países da OCDE com maior prevalência de Demência (1), existindo cerca de 200.000 Pessoas com Demência atualmente no nosso país (2). De acordo com projeções publicadas pela Alzheimer Europe, estima-se que em 2050 o número de casos de demência aumente até perto das 350.000 (3). A estes dados, acresce o facto de esta ser uma população particularmente vulnerável e em que se verifica uma perda de bem-estar e qualidade de vida, assim como um elevado risco de isolamento e exclusão social. Adicionalmente, os estereótipos e o estigma associados à Demência contribuem para criar uma atitude negativa generalizada e a tendência para atribuir mais défices do que as capacidades reais da Pessoa com Demência (4).


Em Portugal, apesar de existir uma estratégia na área da saúde para as Demências desde 2018, a mesma não se encontra ainda implementada, não existindo percursos definidos e respostas integradas, específicas e acessíveis a todos os cidadãos com Demência e respetivas famílias, independentemente da sua situação financeira ou localização geográfica. Os poucos programas disponíveis acontecem sobretudo no âmbito de uma intervenção não farmacológica formal, realizada essencialmente em contexto de serviço de saúde ou equipamento social. Verifica-se uma lacuna ainda maior de respostas na comunidade desenhadas para ir ao encontro das necessidades e preferências das Pessoas com Demência e ajustadas às suas idiossincrasias. Portanto, é fundamental implementar, de forma sistemática, respostas que estimulem as capacidades intelectuais e criativas das Pessoas com Demência, que proporcionem a oportunidade de se expressarem e que promovam a qualidade de vida, o envolvimento social e a manutenção da dignidade e de um significado. Por outro lado, sabe-se que os cuidadores das Pessoas com Demência também podem apresentar sobrecarga e exaustão emocional associada aos cuidados que prestam, pelo que também beneficiam de apoio e suporte.


Novos paradigmas, novas respostas

A cultura e a arte têm sido um recurso progressivamente explorado nas intervenções de saúde pública e têm contribuído para lidar com problemas complexos para os quais não existem soluções adequadas, podendo fornecer uma lente e resposta holística, e situar os problemas de saúde no seu contexto social e comunitário.


A Interdem - rede europeia de investigação na área das demências - destacou a importância da adoção de intervenções baseadas na arte para atender às necessidades psicossociais das Pessoas com Demência, promovendo a dignidade, autonomia, reciprocidade, diminuição do estigma e inclusão social. Diversos estudos salientam o benefício que a arte proporciona, incluindo ao nível do funcionamento cognitivo, perceção de bem-estar, autoestima e autoconfiança, evasão de si e dos problemas do quotidiano, novas aprendizagens e crescimento pessoal, vínculos estabelecidos e na participação e inclusão social (5, 6, 7, 8, 9, 10).


Os museus como agentes de mudança

Os museus têm-se assumido como instituições destinadas a servir a sociedade, com impacto e valor dentro das suas comunidades e que devem ser envolvidos nos principais problemas da sociedade contemporânea. Pelas suas características únicas são espaços que oferecem: a) um ambiente “restaurador”, uma fuga do mundo exterior, que espelha tranquilidade e quietude, ao mesmo tempo que reflete um mundo organizado, em que os artefactos ocupam o seu devido lugar, em contraste com a confusão crescente e vibrante da vida quotidiana; b) um espaço no qual podem ser contempladas semelhanças e diferenças, passado e presente, continuidade e mudança; c) lugares valorizados, seguros e não estigmatizantes, pois não têm o foco na doença, nem são ambientes onde se sente constrangimento, vergonha ou crítica por participar (11, 12, 13).

A nível internacional, programas de intervenção através da arte para Pessoas com Demência e seus cuidadores são amplamente utilizados, como, por exemplo, o “Meet Me at MoMa”, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, lançado em 2007, sendo o primeiro programa desse tipo concebido especificamente para este público.


A nível nacional, são escassas as ofertas dos museus concebidas especificamente para este público, que proporcionem uma oferta cultural e artística própria. Dentre elas destaca-se o programa “EU no musEU", do Museu Nacional de Machado de Castro, desenvolvido em parceria com a associação Alzheimer Portugal desde 2011 e, mais recentemente, contando com a colaboração do Museu da Ciência e do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, estando a ser replicado em Viseu, no Museu Tesouro da Misericórdia e no Museu Nacional Grão Vasco, desde 2018. Na zona Centro, tem também sido implementado o projeto “Eu sou no Museu” no Museu Municipal de Pombal, com o apoio da mesma associação de doentes. No Porto, o Museu Nacional de Soares dos Reis desenvolveu, desde 2014 até 2019, o projeto “Pela Arte Restaurar Memórias, Desenhar Sorrisos”. Na Fundação Calouste Gulbenkian, as primeiras visitas destinadas ao público com Demência e Cuidadores realizaram-se entre 2011-2013 e em 2019, o Museu Gulbenkian (Coleção Moderna e Coleção do Fundador) retomou e ampliou o trabalho com este público numa visita performativa protótipo, e colaborou na criação de formação especializada destinada aos profissionais de museus em 2021, em parceria com a Alzheimer Portugal.


Mais recentemente, o MAAT e o Museu de Lisboa também decidiram comprometer-se com este público específico, e em parceria com a Alzheimer Portugal e a Acesso Cultura, e com o apoio técnico-científico do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, estão a levar a cabo um programa denominado “Marcar o Lugar – Encontros no Museu” que assenta num modelo replicável de fruição e envolvimento com a arte, através de processos artísticos e participativos.


Museus inclusivos na Demência – Rede MID

Tendo em conta a situação e as necessidades acima descritas, doze entidades decidiram juntar-se para criar uma rede de âmbito nacional para aumentar as ofertas culturais destinadas a este público-alvo, disseminando-as pelo país, tornando os museus agentes ativos de mudança, com vista a tornar a sociedade mais inclusiva.


A rede MID – Museus para a Inclusão na Demência, foi criada em Janeiro de 2023. São dez os museus que constituem os membros fundadores desta rede informal: Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Museu Calouste Gulbenkian, Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, Museu de Lisboa – EGEAC, Museu Municipal de Pombal, Museu Nacional Grão Vasco – DGPC, Museu Nacional Machado de Castro – DGPC, Museu Tesouro da Misericórdia de Viseu – SCMV. Para além dos museus, outras duas entidades fazem parte dos membros fundadores da MID: a Acesso Cultura que promove o acesso – físico, social e intelectual – à participação cultural e que, neste âmbito tem o papel de colaborar na construção e implementação de programas adequados a Pessoas com Demência e respetivos cuidadores contribuir para ao bom funcionamento da rede; e a Alzheimer Portugal que tem, no contexto desta rede, o propósito de partilhar a experiência e os conhecimentos técnico-científicos adquiridos ao longo de trinta e quatro anos de existência e de ajudar a fazer a ponte entre as ofertas culturais/artísticas específicas e o respetivo público-alvo.


A MID tem como principais objetivos, numa fase inicial, implementar programas específicos para Pessoas com Demência e seus cuidadores, de acordo com modelos testados e validados, avaliar conjuntamente resultados, desenvolver e partilhar boas práticas, capacitar as equipas das instituições culturais, divulgar as ofertas existentes e consciencializar a comunidade para o tema das Demências, cada vez mais relevante do ponto de vista social e da saúde pública.


Numa fase posterior, pretende-se produzir um manual de boas-práticas, contribuir para apoiar/avaliar os programas nos museus com o eventual recurso a consultores externos com experiência e competências comprovadas, incluindo, como consultores da Rede, as Pessoas com Demência e os seus cuidadores, e trabalhar em parceria com as Universidades para produzir e publicar conhecimento técnico/científico conjunto.


Além de se pretender alargar a rede a outros museus em 2024, também se pretenderá considerar a eventual integração de outros equipamentos culturais, como teatros e bibliotecas.


Concluindo, de olhos no futuro

Os museus são um recurso valioso para intervenções de saúde pública e, em colaboração com instituições do terceiro setor, podem responder aos problemas da inclusão social e, neste sentido, atuar como catalisadores de mudanças sociais positivas, tanto a nível individual como comunitário. Acresce que o estabelecimento de pontes com este setor é fundamental para a continuidade dos projetos que envolvem públicos específicos, assim como a sua integração em esquemas de "prescrição social”, em parceria com os serviços de saúde, realidade que começa a ser timidamente implementada em Portugal.


Imbuída desta visão colaborativa e transformadora, a MID nasce com o propósito último de contribuir para que, em Portugal, as pessoas vivam melhor com Demência, assim como os seus familiares. Oxalá tenha o maior sucesso neste seu importante desígnio!



Referências bibliográficas

1) OECD (2018). Care Needed: Improving the Lives of People with Dementia, OECD Health Policy Studies, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264085107-en.

2) Dementia in Europe Yearbook 2019 - Estimating the prevalence of dementia in Europe https://www.alzheimer-europe.org/Publications/Dementia-in-Europe-Yearbooks

3) Dementia in Europe Yearbook 2019 - Estimating the prevalence of dementia in Europe https://www.alzheimer-europe.org/Publications/Dementia-in-Europe-Yearbooks

4) Windle, G., Newman, A., Burholt, V. Woods, B., O’Brien, D., Baber, M., Hounsome, B., Parkinson, C. & Tischler, V. (2017). Dementia and Imagination: a mixed-methods protocol for arts and science research. BMJ Open. doi:10.1136/bmjopen-2016- 011634

5) Windle, G., Joling, K. J., Howson-Griffiths, T., Woods, B., Jones, C. H., van de Ven, P. M., Newman, A. & Parkinson, C. (2018). The impact of a visual arts program on quality of life, communication, and well-being of people living with dementia: a mixed-methods longitudinal investigation. International Psychogeriatrics. 30(3), 409-423. doi:10.1017/S1041610217002162

6) MacPherson, S., Bird, M., Anderson, K., Davis, T. & Blair, A. (2009). An Art Gallery Access Programme for people with dementia: ‘You do it for the moment’, Aging & Mental Health, 13:5, 744-752, DOI: 10.1080/13607860902918207

7) Rosenberg, F. (2009). The MoMA Alzheimer's Project: Programming and resources for making art accessible to people with Alzheimer's disease and their caregivers. Arts & Health: An International Journal for Research, Policy and Practice, 1:1, 93-97, DOI: 10.1080/17533010802528108

8) Zeilig, H., Killick, J. & Fox, C. (2014). The participative arts for people living with a dementia: a critical review, International Journal of Ageing and Later Life, 9(1): 7-34

9) Scholar, H., Innes, A., Sharma, M. & Haragalova, J. (2019). ‘Unlocking the door to being there’: The contribution of creative facilitators in supporting people living with dementia to engage with heritage settings. Dementia. 1-18. DOI: 10.1177/1471301219871388.

10) Camic, P.M., Tischlerb, v. & Pearmanb, C.H. (2014). Viewing and making art together: a multi-session art-gallery-based intervention for people with dementia and their carers. , Aging & Mental Health, 18:2, 161-168, DOI: 10.1080/13607863.2013.818101

11) Rounds, J. (2006). Doing Identity Work in Museums. Curator The Museum Journal. 49(2), 133-150. doi: 10.1111/j.2151-6952.2006.tb00208.x

12) Gale, C. (2014). A Museum of the Mind. In Museums and Mental Health. Museum Worlds: Advances in Research, 2, 167–169. DOI: 10.3167/armw.2014.020109

13) Salom, A. (2008). The therapeutic potentials of a museum visit. International Journal of Transpersonal Studies, 27(1), 98–103.. International Journal of Transpersonal Studies, 27 (1). http://dx.doi.org/10.24972/ijts.2008.27.1.98


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*Filipa Aniceto

Psicóloga clínica. Tem desenvolvido a sua prática profissional em contexto hospitalar e comunitário, na área da reabilitação física, demências, cuidados paliativos e saúde mental. Atualmente colabora com a Associação Alzheimer Portugal e é responsável pela operacionalização do projeto Marcar o Lugar – Encontros no Museu, dirigido a pessoas com demência e cuidadores. Colabora também com o Manicómio, no programa de residências terapêuticas em saúde mental e no projeto Consultas sem Paredes desenvolvido em galerias de arte.


**Catarina Alvarez

Psicóloga clínica, com mestrado em Neuropsicologia, especialização em Psicogerontologia e formação avançada em Cuidados Paliativos. Desde 2012 que trabalha na Alzheimer Portugal, como coordenadora de projetos e formadora. Em 2019, passou a ser responsável pelas Relações Institucionais da associação, desenvolvendo atividades relacionadas com a criação de parcerias e trabalho de advocacy. Nos últimos 10 anos, prestou também serviços de Psicologia numa estrutura residencial para pessoas idosas em Lisboa.


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