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A peste e a cultura: o futuro está na internet?


A área da cultura vive, entre 2020 e 2021, um enorme paradoxo: se é verdade que tem tido um papel fundamental para a resistência nos confinamentos, também e verdade que é uma das áreas mais atingidas pelas consequências nefastas da pandemia. Apesar de os livros, a música, os filmes, os documentários, as visitas virtuais serem primordiais para a superação psicológica das restrições de circulação, os seus trabalhadores e instituições não são considerados “serviços essenciais”. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) realizou avaliações entre os profissionais da cultura e analisou as restrições governamentais, concluindo que o impacto na área terá sido mais severo do que anteriormente assumido.


A cultura - como outras áreas - foi atingida no que toca à sua própria subsistência: houve uma forte quebra de receitas, consequência direta da ausência de público e de recursos governamentais mais contidos, levando à dissolução de contratos já antes precários e a uma paralisação das atividades das instituições. Com uma redução de horários e atividades, naturalmente, a quantidade de pessoal necessário também diminuiu; despedimentos ocorreram e ocorrerão no futuro. O impacto financeiro é uma questão primordial para as instituições, associações e eventos que não sobrevivem sem verba pública, estando possivelmente sujeitos a eventuais encerramentos ou reestruturações dependendo da sua saúde financeira.


Para ajudar a sistematizar os procedimentos a serem adotados por conta da COVID 19 no último ano, o ICOM e a UNESCO estabeleceram ferramentas, em forma de guia de políticas para minimizar as possibilidades de contágio, e ofereceram soluções e partilha de experiências a nível mundial para que o setor cultural e as instituições museológicas e patrimoniais encontrem alternativas de sobrevivência - como o Cultura em Crise: Guia de Políticas para um Setor Criativo Resiliente.


As medidas sugeridas aos museus, instituições e monumentos dizem respeito ao contacto com o público, à restrição de aglomerações nos espaços expositivos, além da instalação de dispositivos de higienização, limpeza frequente dos espaços e desinfeção de equipamentos utilizados, objetos expostos e superfícies; controlo da ventilação do armazenamento da coleção e das reservas técnicas; uso de máscaras, cancelamento de atividades internas não essenciais. Também sugerem que só o pessoal estritamente necessário permaneça nas instituições - além de que seja organizado em grupos que trabalhem sempre juntos.


Efetivamente, as sugestões proativas de funcionamento das instituições no seu contacto com o público caminham em dois sentidos: a sugestão de manter atividades essenciais, desde que dentro dos novos padrões de segurança, dando prioridade às exposições permanentes e ao prolongamento das que já estão em curso - para evitar deslocamentos desnecessários de peças - e ao uso da internet.


A restrição ao mínimo de serviços, a redução de horários e o encerramento não significam apenas uma redução da faturação, mas igualmente um desvinculamento dos públicos. É por essa razão que manter o contacto por meio da internet é tão necessário. O maior problema é que, embora muitas instituições tenham páginas virtuais e presença nas redes sociais, mesmo entre as maiores poucas têm trabalhadores que atuem neste tipo de comunicação em tempo integral ou sequer percebam a importância desse tipo de atuação. Quando os confinamentos começaram, o escasso uso das possibilidades digitais e a presença reduzida de material online eram realidade para muitas instituições e tornaram-se um problema ainda mais latente.


Um aspeto crucial é a falta de pessoal dedicado apenas ao contacto através da internet. Vale para os museus mas também para todas as entidades e instituições envolvidas com a cultura e o património. E não basta ter tempo para se dedicar, é preciso algum tipo de treinamento e formação. Não é raro que se contrate alguém ou uma empresa para fazer um escarpamento virtual de peças de uma coleção ou para colocar códigos QR em espaços; porém, essas tecnologias tendem a ficar obsoletas em pouco tempo e logo perdem o seu caráter de atratividade do público. É de se perguntar se o passo seguinte não seria integrar informáticos e web designers no próprio staff. A utilização da internet como ferramenta coloca para os museus e monumentos questões próprias deste universo, como a os direitos de imagem, problemas com algoritmos, segurança dos utilizadores, entre outras, requerendo pessoal especializado.


A questão é que é preciso fazer muito para além desse mínimo para que esse contacto com o público potencie um vínculo sólido. As fidelizações, as mobilizações digital e real são diferentes. Nas redes sociais as instituições culturais estão em competição umas com as outras e com todo o entretimento, notícias e outros domínios. O trabalho de comunicação digital exige treinamento e recursos. Entre as atuações mínimas estão o colocar as coleções online, realizar exposições acessíveis digitalmente, realizar lives, enviar newsletters, produzir podcasts, publicar nas redes sociais; mas as possibilidades são inúmeras...


Embora promissor, o contacto através das redes sociais lembra ainda outra realidade: 46% da população mundial não tem acesso à internet, segundo o mesmo guia da UNESCO. Ou seja, só cerca de 50% da população pode aceder a conteúdos culturais e artísticos por essa via. Não é preciso dizer que esse recorte está ligando a rendimento, classe social e a regimes democráticos que permitem o acesso livre à internet, levando a uma elitização perigosa da cultura. Ainda a maior parte dos grandes museus e monumentos preservados está na Europa e, considerando que é também neste continente que estão o maior acesso à internet e os maiores recursos para acompanhar as inovações tecnológicas, há-de se ter cuidado para que não haja um eurocentrismo de paradigmas digitais. Será porventura mais acessível a internet, para uma grande parte da população, em tantas regiões do mundo, do que um museu? Devem então os museus tirar o melhor partido disso, atendendo à oportunidade de descentralização discursiva que daí resulta.


Há ainda uma questão essencial: embora de extrema relevância em contexto pandémico, a experiência virtual substitui a vivência física, presencial, de obras, monumentos ou mesmo concertos? Bruno Latour, trabalhando com o conceito de “humanités numériques”, mostra como a própria visualização das páginas de internet é uma experiência diferente, produzindo assim um outro tipo de leitura e compreensão das informações...


Se as mudanças já estavam a caminho, como se tornou ponto comum dizer, isso não significa que o caminho já está traçado. É preciso ter em conta os problemas enunciados, e outros que ainda devem ser discutidos. As inovações tecnológicas estão em constante mudança, assim como as suas possibilidades. Sobretudo há-de se ter em conta que, não sendo necessário viajar para visitá-los, museus e monumentos tornam-se globais como é global a internet. O desafio de dialogar com diferentes públicos coloca-se como primeiro horizonte de trabalho, tornando a missão educativa dos museus e monumentos global por excelência.

 

A autora utiliza o Acordo Ortográfico.



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