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A Geração de Setenta



Num calor de ananases, e numa outra distópica realidade paralela, Eça a ripostar, - «Que bizarra pergunta meu caro. Lhe digo que inusitadamente cheguei a esta meia idade com tudo que queria. Excepção feita à pulsão ferina de dedicar o resto dos meus dias ao rock an’roll, a real realidade das coisas é que jusqu’ici tout va bien».


Antecipando que admito partilhar uma moderada visão toquevilliana do mundo, sei que dentro da geração represento uma parcela do tabuleiro. Mas estou com o autor de Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal – Luiz da Silva Pereira Oliveira – nas sempre apropriadas palavras da página dezanove do malogrado código jurídico de 1806, que resumo: «(…) a Nobreza não está no sangue, e os homens não vêm ao mundo nobres, sábios, prudentes e bons por serem qualidades acidentais, que cada um adquire depois». Há quem ainda não atribua esta profundidade ao mérito que que uma pessoa constrói controla e demonstra. E depois há sempre aquela queirosiana coisa da basezinha.


Mas eu sou um suspeito membro da geração de setenta. O que significará, latu sensu, quem tenha nascido - como eu - entre os finais da década de 60 e o início da de 70. Que pode até - e muito bem -se não rever no filme que corto à aqui frente na mesa de montagem e mostro ainda não em movimento. É uma só de muitas bobinas.


Somos a primeira geração a nascer numa ditadura em guerra com as suas apelidadas colónias e socialmente hostil no seu derradeiro estrépito shakespeareano como já o designou Jorge Ramos do Ó n’ O Lugar de Salazar. Do protocolo desse tempo no berço ninguém nos livra. Das primeiras memórias não herdadas, uma obnubilada (a partir do olhar de uma criança) festa

de Liberdade.


Paz Liberdade e Tropa; sempre muita tropa e nem sequer fogo amigo. Uma bizarria histórica emoldura as nossas primeiras polaroids do mundo imediato. A nossa imagem/tempo oferece uma velatura de tonalidades e cores irrepetíveis - pouco verosímeis: polaroids, super 8 e rolos a preto e branco. Naquele tempo não nos fazíamos às fotografias. Tínhamos vergonha. Mais vergonha que os nossos pais, que eram mais livres que nós.


Uma vez por outra, de atalaia sempre hiper-atentos, tomávamos nós conta de nós. Os adultos tinham um rol de ocupações que lhes eram desagradáveis no nosso enquadramento quotidiano: o trabalho, a política, e divorciarem-se. Depois aquela maçada de nos levarem à catequese – afinal tinham-nos baptizado – eles já sem o jugo da culpa, ateus agnósticos e iconoclastas.


Hiper-atentos mas também dispersos. Éramos do Sporting, do CDS e do Bairro Embaixador Augusto de Castro. Andávamos à tareia nas eleições com os miúdos dos outros partidos; às vezes com um bom parceiro de carteira – tudo sempre mais ou menos bem quando o festival da canção era tão importante como natal e ano novo. E 1979, que foi o Ano Internacional da Criança.


Para atalhar: Salazarismo/Marcelismo, 25 de Abril de 1974, PREC, 25 de Novembro de 1975, Constituição da República Portuguesa de 1976, ano do arranque de uma democracia representativa ocidental (à época tinha que se dar o ponto cardeal) na Assembleia da República, nos Municípios, nas Regiões Autónomas e na Presidência da República. Até 1980 – de permeio, na televisão que era outra televisão - não há outra maneira de o dizer – telejornal com fumo nos cinzeiros, mundial de futebol, jogos olímpicos e os sem fronteiras, perigos esparsos, organizações terroristas e, na televisão, pessoas discutir durante muito mais tempo que um episódio do Vikie.


Em 1980 o primeiro-ministro de Portugal foi assassinado. Na televisão ficou parado em suspensão silenciosa. Todos sabemos onde estávamos quando soubemos.


Tenho por pensamento ocioso que Borges pecou por defeito no The Book of Imaginary Beiings. Aquele ser outrora volátil que poderia estampar uma kitsch estampa da Geração de Setenta: o Dodo. O seu nome é uma corruptela da expressão portuguesa «pássaro doudo». Em suma, em remotos tempos de que não há humana memória, um pássaro - talvez maior que um pombo - voou para sul e deixou-se ficar pelas Maurícias e Madagáscar. Um insular fenómeno natural: gigantismo/ nanismo. Agigantou-se e deu numa espécie de galinhola do tamanho de um porco com asas de pombo. Desde quando lhe chamaram «pássaro doudo» até haver ilustração científica, em moldes actualmente consensuais, o Dodo foi extinto. Nenhuma das imagens, desde as dos desenhadores das embarcações da expansão moderna até todas as representações contemporâneas é deveras mais que uma aproximação. Não sabemos como era um Dodo.


Dodos em fila, numa rigidez protocolar de Academia de Ciências Naturais; os mais velhos sorriam muito para nós. Quando fomos as primeiras crianças nascidas no antigo regime a ir livremente votar. Crianças transportadas sem cinto de segurança, para ir ao circo no outono em tendas de aspecto finissecular, e que todos os dias brincavam na rua.


À nossa beira andou uma plêiade de todo o tipo de cientistas sociais a exaltar Bordieu. Os subúrbios são um problema que extravasa as questões de origem cultural. Em democracia não há outra maneira de perpetuar as relações de poder de ancièn regime a não ser através da escola (entretanto massificada). Se as lições forem ministradas num código decifrado apenas pela minoria que traz de casa a sua cifra – a linguagem padrão. Em democracia é mais fácil. Aqui acabou por ser não tanto para evitar o exclusivismo que se chamou Bordieu; foi para depois se explicar tudo, escrupulosamente citando a sociologia francesa do mainstream académico mais vante à vante.


Ocorre-me que a geração do poder tem talvez mais pessoas nascidas antes e depois de nós. Este foco temático a fechar convoca On Agression de Lorenz. Ou Chatwin e Herzog a rodar o Cobra Verde do Vice-rei de Ajudá e que há uma síndrome designada Beziehungswahn, que caratcteriza as pessoas que têm uma permanente e irreprimível pulsão para associar, em girândola, dissemelhantes ideias.


Teremos alguma rara (hoje) dispersão de interesses que nos distraiu de ocupar o poder. Um ligeiro tropeção, nada de fracturante. Um exemplo-metáfora: na Assembleia da República Portuguesa 74 deputados têm entre 41 e 50 anos; 62 entre 31 e 40 anos e 59 entre 51 e os 60 anos. Sempre ficámos para trás, mas sempre sem aviltantes distâncias.


Seja lá isso o que for, como cantávamos no século passado, «quero lá saber». Persona e pose post-punk. Na verdade, vamos estando de bem connosco, queremos saber, somos ligeiramente incrédulos - e temos o mais importante: um sentido de humor talvez nos tenha

salvo as vidas.



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