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A actualidade dos brinquedos e brincadeiras de antigamente



Antigamente, era preciso pouco para brincar. Os brinquedos, construídos pelas crianças, pais ou avós, eram feitos com o que estava à mão: de uma bolota um porco, de um bugalho uma panela, das canas apitos, reque-reques ou cartaxinhos imitando o som dos pássaros. Também os desperdícios da casa (trapos, restos de lã, botões, arame, latas) se transformavam em bonecas, bolas, teimosas ou carros.



Os utensílios eram extensões do corpo. A mão na navalha, na agulha ou na tesoura procurava, com engenho, as formas possíveis para as brincadeiras. Umas preparando para a vida, outras para sonho.


Reproduzindo gestos e objectos milenares


Crianças a empurrar carrinhos de lata, lançando piões, bolas de trapos saltitando na terra, animais talhados na madeira, bonecas de trapo,... Encontramo-los pelos cantos do mundo. É certo que diferem nas matérias-primas e nas vivências que reproduzem. Mas unem-nos gestos universais, onde à reprodução de modelos sociais se associa a criatividade no reaproveitamento das coisas de dentro e fora da casa.


Na verdade muitos dos brinquedos com que brincámos na infância têm origens remotas na antiguidade. Testemunhos escritos, achados arqueológicos e iconografia antiga (pinturas murais, mosaicos, imagens em vasos gregos, representações em sarcófagos infantis) mostram-nos que as infâncias e brinquedos das civilizações egípcia, grega e romana não mudaram assim tanto. Basta observar os testemunhos que nos deixaram, brincando com as suas bonecas articuladas de madeira, cavalos de pau, espadas de madeira, com piões e ioiôs, nozes, ossinhos ou pedrinhas, para o perceber.


Hoje alteraram-se significativamente os seus contextos de construção e utilização. Que sentido fazem agora estes brinquedos? Vale a pena utilizá-los, explorá-los e recriá-los com os mais novos em contexto de trabalho educativo?


Acredito que sim. Ao longo de cerca de 20 anos de vida profissional, tenho várias vezes regressado aos brinquedos populares, nas áreas da investigação, valorização e educação. E, no contexto de actividades educativas, mantem-se o mesmo espanto por parte das crianças quando vêem os brinquedos e brincadeiras que podem nascer de uma mão cheia de pedras, de uma casca de pinheiro, de um troço de cordel, de um pedaço de arame, de uma lata de conservas ou de uma meia cheia de trapos…


Num tempo em que domina o consumo de objectos, de imagens, de informação, uma criança ou um familiar que constrói o seu brinquedo passa de consumidor passivo a criador activo. Hoje, as experiências de construção de brinquedos, a invenção de jogos e brincadeiras, podem ser o ponto de partida para que as famílias e escolas procurem criar contextos alternativos do brincar, onde “fazer” e “criar” interesse mais do que “comprar” ou “ter.”


A descoberta destes brinquedos passa também por uma aproximação à natureza. Em passeios ao ar livre descobrimos que papoilas, pinhas, bolotas, nozes, cascas de pinheiro, pedaços de cortiça, canas, paus, folhas de figueira se podem transformar numa diversidade de brinquedos: bonecas, porquinhos, piões, barcos, assobios, papagaios, sapatinhos… A imaginação é o limite!



Também o que temos em casa (meias, trapos, botões, fios, arames, latas, caixas de fósforos) pode ser reaproveitado com imaginação, criando objectos únicos e reduzindo a compra de brinquedos industriais. Novos 'Rs' – repensar, reduzir, reaproveitar, reutilizar – que se juntam aos restantes, na busca de hábitos e vivências mais sustentáveis.


Para educadores, os brinquedos populares proporcionam a aprendizagem do afecto, do diálogo e da linguagem, do movimento corporal, da solidariedade, das regras do jogo e do convívio. No contexto de pandemia que vivemos, pensadores como Carlos Neto, afirmam ser “tempo de decretar o estado de emergência na infância”, de devolver às crianças o tempo para brincar na rua, ao ar livre criando espaços autonomia, mobilidade, risco, cooperação, em nome da sua saúde física e mental. “O analfabetismo motor tornou-se um problema gravíssimo” – alerta. As brincadeiras e os brinquedos antigos, para além do saudável envolvimento intergeracional que podem estimular, apontam sem dúvida caminhos para dar resposta a muitas destas preocupações.


Num mundo cada vez mais uniformizado, como espelham os brinquedos industriais e os jogos digitais, estes brinquedos, pela sua ligação ao meio local e ao passado, reforçam também, na criança, a consciência de uma identidade que nos diferencia e distingue. Eles fazem parte do nosso património cultural e conectam-nos com a nossa memória colectiva.


Numa actividade educativa recente com os jardins-de-infância e escolas de Vila Real de Santo António, uma bolsa com materiais diversos (canas, paus, pinhas, bolotas, bugalhos, pedras, fios, arame, latas, trapos, meias, botões) e uma mala com brinquedos antigos, levam as crianças numa viagem de descoberta dos contextos antigos do brincar e da construção dos brinquedos. A actividade termina com a criação de alguns brinquedos simples: bola de meia e trapos, bonecas de cabeça de grão, carros de lata e rolhas, porquinhos e piões com bugalhos e bolotas, cartaxinhos de cana e jogo da cama do gato.



Pretendemos, desta forma, explorar o potencial pedagógico e lúdico do brinquedo popular e do jogo; reforçar na criança, através do brinquedo, pelas suas ligações ao meio local e ao passado, a consciência de uma cultura material e de uma identidade que a diferenciam e distinguem num mundo cada vez mais global e industrializado; e estimular o gosto por fazer e criar os seus próprios brinquedos.



Como alerta João Amado, grande estudioso do brinquedo popular em Portugal, importa manter vivos estes patrimónios ligados à infância. Se os deixarmos desaparecer «... o trágico estará na perda da capacidade de criar, de recriar e de “construir ideias”, de exercer uma demiurgia sobre a matéria, de gerar coisas que rolam, que mexem, que andam, que produzem sons, que se adormecem... de “criar uma vida, não uma propriedade”!» (in Universo dos Brinquedos Populares, Coimbra, Quarteto, 2002, p.195.)



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