Somos do tamanho do que vemos (CAEIRO, Alberto), este é um pensamento que sempre me acompanhou, mas somos de facto da altura da nossa voz.
Durante todo este tempo, o tempo contado pela humanidade e pela mão da História, a voz das mulheres foi sufocada, negligenciada e apagada, negando-lhe o seu espaço e lugar. Toda uma série de existências condenadas, julgadas, oprimidas. Tempo sem expressão, sem igualdade de oportunidades, sempre no lugar da luta, do esforço, da reivindicação de algo que lhe é próprio, de ser.
Apenas Ser com livre arbítrio sobre a sua vida, sem indicações, sugestões, opressões…
No campo da arte as obras no feminino não foram expostas, nem catalogadas nem restauradas, vidas que não foram biografadas, artistas cujo esquecimento no passado marca inevitavelmente o esquecimento no futuro (GALLASCH, Hall, 2006). A raridade de obra nas coleções museológicas, o encarceramento nas reservas, a marginalização são fatores que foram escrevendo uma não história do lugar da mulher artista.
Quando me cruzo com a obra Pintura Habitada de Helena Almeida, oiço sempre em surdina “eu mulher, eu sou, eu faço, eu artista”. Esta obra fala-me do paradigma da mulher artista e do seu lugar, muitas vezes o seu não lugar, e o sem número de nomes sem obra e sem história que nos leva a escrever textos plenos de ausências e carregados de silêncios.
Ao longo dos tempos o papel de musa – Do women have to be naked to get into the Met. Museum? (GUERRILLA GIRLS) – foi-lhe sempre atribuída e o de artista sempre negado. O lugar secundário ocupado pela mulher na sociedade desde o início dos tempos não é diferente do não lugar que lhe atribuiu a historiografia da arte. Sempre como apoio do homem e não como protagonista, a mulher esteve esquecida e posta à margem também na esfera artística.
Porque é que não existiram grandes mulheres artistas? (NOCHLIN, Linda, 1971)
Existiram, mas a obliteração da mulher artista vem desde sempre, com ausências impossíveis de repor. Apenas se começa a ouvir falar na questão da criação artística no feminino por volta do século XVI e só desde recentemente, nos últimos 60 anos, tem esta encontrado território para se afirmar e se fazer ouvir.
Nos anos 70, a exposição Women Artists 1550-1950, que teve lugar em Los Angeles, veio chamar o olhar do público para esta questão essencial. Organizada pelas historiadoras de arte Linda Nochlin e Ann Sutherland Harris no Los Angeles County Museum, reunia pela primeira vez num mesmo espaço artistas de nacionalidades vastas e períodos muito diversos, numa tentativa de consolidar uma abordagem de uma história da arte feminista. A exposição, que foi organizada à margem de um contexto de museu habitual e dominante, incluía investigações pormenorizadas sobre as artistas apresentadas, muitas desconhecidas, e reunia empréstimos de diversos museus e coleções privadas europeias e norte-americanas, numa tentativa de reposição de um lugar roubado.
Numa provocação, o feminino invade o domínio público surpreendendo e abrindo lugar ao questionamento do papel da mulher enquanto artista em vinte séculos de civilização ocidental. Com um discurso feminista emergente, a exposição foi um grito que conseguiu ecoar e tornar esta uma questão premente e objeto de estudo sério e concreto. A História da Arte começa a ser repensada e reescrita e as mulheres artistas encaixadas nas cronologias, biografias e livros da temática.
Foram precisos muitos gestos de pensamento crítico e afirmativo, uns mais fortes e gritantes, outros mais suaves e assertivos, para abrir caminho para a voz no feminino.
Uso os exemplos das Guerrila Girls, grupo anónimo de artistas, historiadoras de arte, críticas de arte, escritoras, mediadoras em museus e galerias, que misturam a prática da arte feminista, a própria história da arte feminista e o ativismo de intervenção politizada na concretização das suas obras. Grupo que usa máscaras de gorilas para proteger as suas identidades e que veio levantar celeuma no contexto museológico com a contestação da não presença feminina nas escolhas dos museus. As máscaras e a opção do anonimato não deixa de ser paradoxal: se por um lado elas lutam precisamente pelo fim da invisibilidade das mulheres artistas, anónimas não por opção mas por exclusão, por outro, elas transformam o anonimato numa escolha. Escolha determinada pelas mesmas características sociais e culturais que elas expõem. A máscara acaba por ser o anonimato que lhes permite denunciar a descriminação sem serem descriminadas, a exclusão sem serem excluídas e a opressão sem serem oprimidas.
E das artistas Ana Vieira, como no exemplo da sua obra Ambiente – sala de jantar, com as suas instalações de ambientes familiares, femininos, simultaneamente delicados e acutilantes que nos trazem um olhar sobra a ausência da mulher, num lugar considerado o da mulher, e Túlia Saldanha na obra 240.180.180 dissemetria mater em que a obra é o espaço do corpo, feito à medida deste corpo, objeto hermético que nos remete para um caixão, a mulher artista persona e o olhar que nos fita mudo mas cheio de voz.
Em pleno século XXI, numa altura de vozes afirmantes, desafiantes e confiantes chega o momento de dar voz e de ouvir novas vozes, vozes multiculturais, multirraciais, que olham para nós e para o mundo e nos devolvem novas leituras, ricas de significado e semânticas como Filipa César com a sua exposição Crioulo Quântico ou Grada Kilomba com a sua obra Illusions Vol.I, Narcisus and Echo.
Novos ventos carregados de vozes.
Num mundo onde se espera ainda tanto pela igualdade, pela liberdade, pela justiça social, pela democracia, que a arte continue a permitir os gritos e a fazer ver as vozes de que todos somos feitos.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.