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A questão da restituição de colecções museológicas “às origens” e o Relatório Sarr-Savoy


O tema que vai em título está definitivamente na ordem do dia, sobretudo no estrangeiro (em Portugal, mais por importação e activismo de jornais do que outra coisa). Trata-se de problemática complexa, onde se juntam dimensões eminentemente políticas e outras fundamentalmente técnicas. Como sempre na vida as primeiras devem ter prioridade sobre as segundas. As grandes opções dependem acima de tudo da vontade quanto aos caminhos a seguir; as virtualidades ou constrangimentos técnicos vêm depois. E não nos esqueçamos que quando um técnico diz a um político que só há um caminho a seguir, normalmente é porque pretende favorecer a sua opção política, ainda que subconsciente.

Comecemos pelo político, pois. A questão aqui está em saber se é razoável devolver a outrem aquilo que esse outrem reclama como sendo seu, independentemente da forma pela qual quem hoje o detém o tenha obtido. Como se compreende são múltiplas as combinatórias possíveis nesta equação. Primeira: a obtenção foi legal à luz do direito de cada época, ou não? Tendo sido legal, foi igualmente “moral”, quer dizer, não se fundou em relações de força em que o mais fraco não pôde dizer não? Segunda: Aquilo que se reclama aos actuais detentores constitui ícone identitário indiscutível de quem o reclama? E é insubstituível (porventura nem sequer já existe hoje)? Terceiro e talvez mais decisivo: quem o reclama possui argumentos válidos para o fazer, do ponto de vista do sentido de pertença? Este último será igualmente válido para vestígios de há milénios, produtos da actividade humana ou não, e objectos feitos pelos antepassados directos, com linhas de continuidade histórica bem documentadas?

Temo-nos referido alguns dos ângulos destas interrogações, seja em artigo de imprensa (ver, por exemplo: “Legítimo e intolerável na restituição ‘à origem’ de colecções dos museus”, Público, 7.12.2018: https://www.publico.pt/2018/12/07/culturaipsilon/opiniao/legitimo-intoleravel-restituicao-origem-coleccoes-museus-1852818), seja em postes no Facebook (www.facebook.com/raposo.luis). Não desenvolvemos ainda no entanto a avaliação que fazemos do documento que, nos últimos meses, mais contribuiu para a actualidade do tema em apreço: o chamado “Relatório Sarr-Savoy”, por ter sido elaborado por Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, com o título “The Restitution of African Cultural Heritage. Toward a New Relational Ethics”), apresentado ao em Novembro passado ao Presidente de França, Emmanuel Macron, que o encomendou. Pode dizer-se que este relatório tem sido como que a centelha no trigal, provocando reacções em todo Mundo. Directores e conservadores de museus, curadores e negociantes do mercado da chamada “arte tribal”, activistas sobretudo das problemáticas chamadas (em meu entender mal) “pós-coloniais” e, claro, políticos. Curiosamente, as reacções dos representantes de comunidades indígenas têm sido menores e por vezes algo desconcertantes, como a de pretenderem que o importante mesmo não é a “restituição” de colecções a que perderam afeição ou foram transfiguradas pelos europeus, mas a valorização das suas culturas e dos seus museus, pelo que a transferência tecnológica e o suporte financeiro lhes seria muito mais útil.

É verdade que existem fundadas dúvidas sobre a efectiva implementação deste relatório e o comunicado de imprensa oficial dado pela presidência francesa não é claro quanto a isso. Informa que o Presidente dirigiu “um convite para que os museus desempenhem um papel fundamental no processo: identificar parceiros africanos, organizar eventuais restituições, circulação e difusão de obras, obter os meios necessários, com a colaboração de docentes e investigadores especializados neste domínio, para o estabelecimento rápido e a disponibilização em linha de um inventário de colecções africanas que conservam, integrando uma pesquisa sistemática de proveniência”. E inclui uma referência à necessidade de articulação europeia: “Foi também sublinhada a necessidade de um trabalho aprofundado com outros Estados europeus que conservam colecções da mesma natureza adquiridas em circunstâncias comparáveis.” Por outras palavras: vamos esperar para ver... De qualquer forma, este relatório merece ser seriamente analisado.

Em termos gerais, levanta o relatório Sarr-Savoy questões pertinentes e desenvolve o que se poderia designar por “pensamento novo”. Existem, por exemplo, alguns argumentos convincentes para considerar as coleções coloniais de maneira diferente de outras provenientes da opressão e roubo ao longo de toda a história (em guerras ou contextos imperiais). Certamente que a dominação colonial moderna e contemporânea não foi mais agressiva do que muitas outras ao longo da história, mas tem o traço especial de ter lidado com povos que ainda vivem e ou seus descendentes imediatos. Questões éticas são, portanto, maiores aqui do que quando se referem ocorrências sem sobrevida directa evidente nos tempos atuais. De qualquer forma, existem muitas características comuns em todas as colecções hoje reunidas em museus e provenientes da ocupação de regiões estrangeiras (ou mesmo de regiões remotas dentro do mesmo país, algo especialmente sensível em países latino-americanos, onde as comunidades indígenas são fortemente discriminada) e talvez continue a ser melhor considerar globalmente este tema.

Esta diferença de enfoque não é todavia significativa. Aquilo que, sim, pode ser mais expressivo ou preocupante no plano conceptual geral é a facilidade com que Sarr e Savoy parecem aceitar que os objetos restaurados poderiam, no final, não estar integrados em museus ou até mesmo não serem preservados. Consideram expressamente que há a necessidade de “desmistificar as noções ocidentais de património cultural e preservação” – observação que deve ser colocada em conexão com a admissão de que os receptores de objetos restituídos podem não ser apenas museus, mas também “centros de arte, museus universitários, escolas ou até mesmo o centro das comunidades para usos rituais”. A consumação (destruição em obediência a rituais que o impõem) de objetos restituídos, usando-os como inicialmente deveriam ser usados, pode pois ser considerada no horizonte de possíveis destinos finais.

Uma vez feita esta ressalva, o relatório Sarr-Savoy aparece como uma tentativa séria de reflexão e deve por isso ser acolhido com a simpatia própria de quem procura “fazer caminho, caminhando”, especialmente num terreno em que as dificuldades são tantas que será fácil usá-las para impedir qualquer movimento para diante. E este é claramente o lado mais forte deste relatório.

No plano mais prático, parecem aceitáveis algumas categorias de coleções dadas como exemplo de restituições sem qualquer análise casuística. Mas outros parecem discutíveis e pelo menos uma afigura-se totalmente inaceitável ​​(tão inaceitável ​​que, se não fôr alterada irão prejudicar significativamente o Relatório na sua aplicabilidade efectiva).

Entre as mais pacíficas, desde logo a que se refere a aquisições ilegais depois de 1960,que surge como quase óbvia. E também a que se relaciona as campanhas militares, mesmo antes de 1899 (data da primeira Convenção de Haia), que alguns podem discutir em termos jurídicos, mas se afigura apropriado considerar eticamente, para campanhas ocorridas durante o século XIX.

Entre as categorias questionáveis, a que envolve ofertas feitas por membros das administrações coloniais ou suas famílias e seus descendentes. Esta categoria corre o risco de incluir no mesmo cabaz ocorrências extremamente diversas e é tão perigosa e excessiva quanto se vê que nenhuma diretriz especial automática é sugerida para objetos obtidos por missionários ou comerciantes, independentemente das condições particulares em que possam ter sido obtidos.

Quanto à categoria inaceitável, e talvez a crucial para a maioria das coleções recolhidas nos museus europeus, estabelece ela a “inversão do ónus da prova” em expedições científicas (ou “raides científicos”, como os autores preferem dizer: o que pode ser verdade para alguns, mas certamente não para a maioria). De acordo com essa proposta, caberia ao museu demandado demonstrar a recolha legal de objetos – e não o contrário. Sendo que “legal” poderia muito bem não querer dizer somente adquirido como acordo ou oferecido pelos autores, uma vez que as relações de força entre “vendedor” e “comprador”, sendo fundadas na matriz colonial, poderiam ser iníquas e por isso inaceitáveis a luz d amoral e do direito actuais.

Tal inversão, há que dizer, abrirá necessariamente uma espécie de caixa de Pandora, uma vez que pode ser facilmente concebida em termos mais gerais, aplicados no limite de todas as coleções alegadamente obtidas de forma ilegal. De acordo com esse novo princípio, as entidades reclamantes teriam apenas que reivindicar o que quisessem, sem provas de ilegalidades precisas. Sarr e Savoy fundamentam brevemente essa inversão do ónus da prova (apenas uma nota de infrapaginal para tal revolução conceitual, o que é incrível...), referindo que ela “leva em conta a evolução do debate jurídico internacional” e segue “ um princípio estabelecido pela Convenção UNIDROIT de 1995, adoptada pela diretiva europeia 2014/60 / UE de 15 de maio de 2014”.

Bom, não se percebe realmente onde tal se encontra expresso ou sequer sugerido.

A Convenção UNIDROIT de 1995 (ainda não ratificada pela maioria dos países africanos, não esqueçamos, que parecem sentir-se mais à vontade de braços e mãos livres de quaisquer tutelas jurídicas), que se aplica apenas a situações originadas após 1995, declara expressamente que: “Qualquer pedido deve conter ou ser acompanhado de informações de natureza factual ou legal que possam ajudar o tribunal ou outra autoridade competente do Estado para determinar se os requisitos foram atendidos” (Art. 5, nº 4). É claro que ela não valida situações anteriores, nem aquelas em que não existem provas (“Esta Convenção não legitima de forma alguma qualquer transação ilegal de qualquer natureza que tenha ocorrido antes da entrada em vigor, nem limita qualquer direito de um Estado ou outra pessoa em apresentar uma reclamação ao abrigo de recursos disponíveis fora da estrutura da presente Convenção para a restituição ou restituição de um bem cultural roubado ou exportado ilegalmente antes da entrada em vigor desta Convenção”(Art. 10, nº 3), mas isto não reverte obviamente o ónus da prova. Pelo contrário.

Já a diretiva 2014/60 da UE, não sendo tão clara neste ponto preciso, estabelece que “os motivos razoáveis ​​para acreditar que ela foi removida ilegalmente” (Art. 5, nº2) devem ser demonstrados; além disso, estabelece um período de até 75 anos (ou mais, se acordado entre partes) para o retorno de objetos incluídos em coleções públicas; e finalmente alinhar uma lista completa de circunstâncias (“a documentação sobre a proveniência do objeto, o preço pago, se o possuidor consultou qualquer registro acessível de objetos culturais roubados e qualquer informação relevante que ele pudesse razoavelmente ter obtido, ou deu qualquer outro passo que um pessoa razoável teria dado”, Art. 10) a ter em consideração para definir a “compensação justa” deviao ao museu europeu, sabendo que “as despesas incorridas na implementação de uma decisão ordenando a devolução de um objeto cultural serão suportadas pela Estado-Membro requerente” (Art. 11). Trata-se, pois, de um Directiva muito em linha com os interesses europeus e de modo algum magnânima, como o relatório Sarr-Savoy deixa o leitor presumir.

Em suma: sim, vamos usar este relatório para aprofundar a reflexão sobre a problemática da restituição. Vamos também revisá-lo criticamente. E, ao fazê-lo, vamos torná-lo viável na prática.

# OPINIÃO


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