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A pintura a fresco «Degolação de S. João Baptista»



O Museu de Alberto Sampaio é o único museu nacional que tem uma sala de exposição permanente dedicada à pintura a fresco. São sete pinturas murais provenientes das igrejas de Bravães (Ponte da Barca), Fonte Arcada (Póvoa do Lanhoso), N.ª Sr.ª da Azinheira (Outeiro Seco, Chaves) e do Convento de S. Francisco (Guimarães).

De entre esses frescos gostaríamos de destacar aquele que representa a «Degolação de S. João Baptista» (séc. XVI, 1.ª metade), e que originalmente se encontrava numa das paredes da Sala Capitular do Convento de S. Francisco, em Guimarães.

Trazido para o Museu de Alberto Sampaio pelo seu primeiro diretor, Alfredo Guimarães, esta pintura a fresco, segundo a abalizada opinião de Ignace Vandevivere e José Alberto Seabra Carvalho, pode ficar a dever-se à mão de um pintor cujo nome se desconhece, mas que vem sendo designado como «O Mestre Delirante de Guimarães»[1].

O tema tratado é a «Degolação de S. João Baptista». De seguida transcreve-se o excerto bíblico no qual este episódio é narrado:

«Execução de João Baptista. Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. Porque João dizia a Herodes: ‘Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.’ Herodíade tinha-lhe rancor e queria dar-lhe a morte, mas não podia, porque Herodes temia João e, sabendo que era homem justo e santo, protegia-o; quando o ouvia, ficava muito perplexo, mas escutava-o com agrado. Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia.

Tendo entrado e dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados. O rei disse à jovem: ‘Pede-me o que quiseres e eu to darei.’ E acrescentou, jurando: ‘Dar-te-ei tudo o que me pedires, nem que seja metade do meu reino.’

Ela saiu e perguntou à mãe: ‘Que hei-de pedir?’ A mãe respondeu: ‘A cabeça de João Baptista.’ Voltando a entrar apressadamente, fez o seu pedido ao rei, dizendo: ‘Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista.’ O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não quis recusar. Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João. O guarda foi e decapitou-o na prisão; depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à jovem, que a deu à mãe. Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o seu corpo e depositaram-no num sepulcro.» Marcos, 6, 17-29. Ver também Mt 14,3-12; Lc 3,19-20.

O tema tratado envolve traição, cobiça de mulher alheia, concubinato, dança, festa, lazer, erotismo… enfim, os ingredientes necessários para se ter tornado um tema recorrente tratado, ao longo dos séculos, através da pintura, escultura, romance, poesia e cinema.

A nível de pintura gostaríamos de destacar a degolação de S. João Baptista tratado nas obras de Andrea Solario (1507-1509), Bernardo Luini (1515-25), Caravaggio (1608) e Lucas Cranach, o Velho (ca 1510), sendo que a pintura deste último pode ser contemplada na exposição permanente do Museu Nacional de Arte Antiga. Faça-se também menção a outra pintura, com o mesmo tema, que se encontra na Igreja de S. João Baptista, em Tomar, e que saiu das mãos do pintor Gregório Lopes.

Na pintura a fresco que vimos comentando as personagens estão vestidas com traje da época em que foram pintadas – repara-se, por exemplo nas vestes e penteados de Salomé e de sua mãe Herodíade. Também é de notar a gestualidade, que quase diríamos teatral, das personagens representadas. Chame-se a atenção para o facto de nenhum dos Evangelhos canónicos nomear a filha de Herodíade como Salomé, mas, ao longo dos séculos, este ser o nome pelo qual ficou conhecida.

A pintura divide-se, se assim nos podemos expressar, em duas cenas, uma de exterior e outra de interior, representando dois momentos diferentes da história – um, em que os soldados cortam a cabeça a S. João Baptista, tendo como pano de fundo um casario; o outro, em que Salomé, junto à mesa na qual se sentam Herodíade e Herodes, ostenta entre as mãos uma bandeja com a cabeça do santo, tendo como pano de fundo uma tapeçaria ou um guadameci.

O que une as duas cenas e nos dá a entender que se trata de uma mesma «história» é o facto de o pavimento do exterior (soldados e S. João Baptista) e a do interior (Salomé, Herodíade e Herodes), pousarem sobre um mesmo pavimento, quadriculado e a preto e branco. Quase que parece que estamos perante uma cena de desenho animado…

Num próximo artigo vamos observar o que se encontra sobre a mesa destes convivas e, vão perceber como a conjugação da documentação de arquivo, da literatura e da pintura nos incentivam a cruzar dados e a melhor conhecer o nosso património material e imaterial.

[1] Veja-se «A coleção de pintura do Museu de Alberto Sampaio: séculos XVI-XVIII». Lisboa: Instituto Português de Museus. Museu de Alberto Sampaio, 1996.

*Este texto foi escrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico.

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