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Entre “O Museu Imaginário” e os museus faz-de-conta


Evoco neste título uma obra célebre de André Malraux, que muitos conhecerão, através da qual concebe um museu de escala universal, sem fronteiras físicas, um museu imaginado, composto por imagens, cujas reproduções (de testemunhos com origem em diversas culturas e épocas) confinam-se às páginas do livro mas o que suscitam extravasa, em muito, esses limites. Geram interrogações, reflexões, que nos interpelam, é um contributo para o diálogo estabelecido entre os museus e a sociedade, na medida em que aqueles provocaram (a meu ver devem continuar a fazê-lo) uma outra percepção das obras de arte, da produção artística e cultural no geral, da nossa parte, enquanto pessoas, cidadãos, e claro está, públicos. Um museu global, aglutinador e intercultural (sem receio de utilizar o termo), que influencia a própria arte, a criação artística, e a nossa prestação enquanto indivíduos e cidadãos.

As dinâmicas que lhe sucederam subsidiaram, com o auxílio da tecnologia e de novas formas de comunicação, um acelerar dessa disseminação e diálogo. Umas mais rigorosas e eficientes do que outras. Umas mais questionáveis e criticáveis do que outras. Em linha com a discussão sobre o sector cultural e criativo, no âmbito museológico e da musealização de património cultural, sobre o que é produção de conhecimento, científico, formativo, didático, pedagógico, o que é entretenimento e lúdico e até que ponto se podem e devem cruzar, articular. Já sem falar na tensão constante entre exposição, comunicação e conservação, todas vertentes da missão de um museu.

A definição de Museu que ainda vigora, com a chancela do International Council of Museums (ICOM), é “O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”. A Comissão Portuguesa do ICOM, presidida pelo José Alberto Ribeiro, divulgou publicamente - e aqui relembro - as diligências que tem feito, nomeadamente junto do Governo por via do ministro da Cultura, por ocasião do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios deste ano (http://icom-portugal.org/2018/04/18/comunicado-icom-dia-internacional-de-monumentos-e-sitios/), alertando “para os problemas existentes na área dos museus”. Quero concentrar-me num deles, a necessidade de “revitalizar a RPM, com vista à valorização e qualificação crescentes dos museus portugueses, dos seus profissionais e dos serviços que prestam ao público”.

Com efeito, a Rede Portuguesa de Museus (RPM), que formalmente existe e está prevista na Lei-quadro dos Museus Portugueses - Lei n.º 47/2004, de 19 de Agosto https://dre.pt/application/conteudo/480516 (Capítulo VIII), “visa a descentralização, a mediação, a qualificação e a cooperação entre museus”. Neste momento a palavra de ordem deve ser mesmo a “revitalização”, trazê-la de novo à vida, pois encontra-se, não encontro expressão que ilustre melhor, moribunda. Revivificar os recursos humanos e materiais para que o cumprimento da sua missão e dos seus objectivos seja exequível, com seriedade, e traga frutos.

Com as receitas crescentes do turismo e um ciclo económico mais favorável tal não será impossível, bem pelo contrário, e até muito justo, tendo em conta a motivação que é para quem nos visita, assim como para os próprios visitantes nacionais que circulam no território, os monumentos, os museus, entre outros atractivos patrimoniais e culturais. Deixo bem claro que na minha opinião tal não constitui qualquer intenção de mercantilização do património nem o alegado imperativo da sua rentabilização económica e exploração comercial face a outras funções. A importância do património cultural é real, é estratégica, quer para a Cultura em si, quer do ponto de vista social e económico. O saciar do interesse crescente dos visitantes e turistas não deve ser o objectivo principal da preservação e da valorização do património cultural. Não deve inviabilizar, apesar disso, o assumir de uma vertente económico-social que não pode ser desprezada ou sequer secundarizada. Coloca novos problemas e desafios (alguns não tão novos) mas ainda assim deve ser vista como parte da solução e não do problema.

Para terminar, regresso à revitalização da RPM e à reorganização de prioridades no que diz respeito a uma política museológica nacional. Apesar do anúncio recente feito pelo Governo do novo modelo de autonomia de gestão dos museus, palácios, monumentos e sítios arqueológicos tutelados pela Direcção-geral do Património Cultural e pelas Direcções Regionais de Cultura, para já e até ver não passa disso mesmo, um anúncio, uma intenção de vir a vigorar a partir de 2019, que de resto omitiu, tanto quanto me apercebi, uma estrutura como a RPM. Assim, prossigo afirmando que esta rede deve pautar-se por critérios de qualidade e qualificação científica e técnica cada vez mais exigentes, poderá ser uma espécie de parceria público-privada (sem receio, uma vez mais, de utilizar o termo), com responsabilidade, com uma boa gestão entre entidades de tutelas diversas, públicas e privadas, a funcionar em rede, articuladamente, optimizando recursos, aprofundando parcerias e a cooperação entre si, com a organização de acções conjuntas, promovendo uma descentralização, quer administrativa, quer cultural, alargando o acesso aos bens, equipamentos e actividades culturais.

Com base nos tais critérios cada vez mais rigorosos de adesão, credenciação e manutenção na rede de museus, poderá ser mitigada a existência de museus que apelido de faz-de-conta. Ou em português do Brasil, de “mentirinha”. É do mais elementar interesse público. Alguns até podem desempenhar, e desempenham em múltiplos casos, um papel cultural e social interessante, mas tecnicamente não são um museu tal como a definição de museu do ICOM ou da Lei-quadro dos Museus Portugueses estabelece. Podem constituir, por exemplo, e ao abrigo desta mesma lei, coleções visitáveis. Outros, que manifestamente não são museu, nem coleção visitável, nem centro interpretativo, nem centro cultural ou de exposições, nem algo similar, em algumas situações mais próximo de um parque de diversões ou centro de recreio do que de uma instituição que presta um serviço cultural.

Espero que a Câmara Municipal de Lisboa não caia numa dessas soluções para aquele que poderá ser (ou não) o futuro Museu das Descobertas, da Descoberta, da Viagem ou alguma quarta ou quinta via que surja. A designação, não sendo irrelevante (agrada-me o conceito da interculturalidade de origem portuguesa e não vejo, como alguns, contradição na mesma), mas parece-me que deverão sobrepor-se tópicos como a missão e objectivos, as colecções e os conteúdos, o serviço público cultural de qualidade.

Museu da Luz (Aldeia da Luz, Mourão)

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