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(IN)SUFICIÊNCIA IGNORANTE E (IN)CAPACIDADE POLÍTICA


O frenesim mediático que há dias envolveu a “promoção” de Conimbriga a Museu Nacional revelou algo do pior que ocorre por sistema na política cultural portuguesa, conduzindo a uma discussão ociosa, prejudicial e inoportuna.

A discussão é ociosa porque, na verdade, Conimbriga sempre foi “Nacional”. Monumento Nacional desde 1910; Ruínas de Conimbriga na tutela da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais desde 1930; Museu Monográfico de Conimbriga na tutela do Ministério da Educação desde 1962; serviço desconcentrado da Administração Central do Estado, na dependência do Instituto Português do Património Cultural, com um diretor equiparado a diretor de serviços, desde 1980.

Houve, obviamente, percalços neste percurso. Nos anos 90, uma remodelação de leis orgânicas colocou o Museu na dependência do Instituto Português de Museus e as Ruínas na dependência do Instituto do Património Arquitectónico e Arqueológico; teria sido ridículo se não tivesse sido grave e, de facto, numa janela temporal que correspondeu a todo o 2º Quadro Comunitário de Apoio, nenhum investimento se fez em Conimbriga. A situação veio a resolver-se noutra (das muitas) remodelações de leis orgânicas e a vida retomou o seu curso normal. Algo de semelhante ocorreu em 2012, quando foi criada a Direção-Geral do Património Cultural (que veio a reunir no seu seio todas as instituições que anteriormente tutelavam o Património Cultural em Portugal): Conimbriga foi retirada da estrutura nuclear da DGPC e as competências do seu diretor reduzidas pela sua diminuída equiparação a chefe de divisão. Neste contexto, a presente intenção política podia (e talvez devesse) ser lida como o simples retomar da normalidade, daí a ociosidade da discussão. Mas a um nível mais profundo, não é disso que se trata, e por estar descentrada do real problema, a discussão, sobre ociosa, é prejudicial. Devemos remontar a 2010 para compreender correctamente o problema. Nesse ano veio a lume um documento, a vários títulos lamentável, intitulado “Museus para o século XXI”, que carreou para a discussão pública um conjunto de noções que estavam, tanto quanto os técnicos mais envolvidos nas matérias podiam julgar e se permitiam esperar, pacificamente enterrados. O documento surgiu no âmbito de uma discussão política sobre a oportunidade de, provado o esgotamento do modelo parcelado de tutela do Património Cultural (o país chegou, na viragem do século, a ter cinco Institutos e Direções-Gerais diferentes a tutelá-lo), se regressar ao modelo concentrado do Instituto Português do Património Cultural. Esta era e é uma discussão importante. Mas veio a verificar-se que a discussão se centrou, por força das circunstâncias, não nas virtudes e defeitos do melhor modelo para o país, mas na operacionalidade das instituições no terreno. E, nestas circunstâncias, a tutela reconheceu – muito erradamente – a impossibilidade de gerir adequadamente os Museus que lhe estavam confiados e colocou em discussão a transferência de alguns deles para tutelas regionais ou municipais. Como alguém, muito clarividentemente, apontou na altura: uma solução que em nada beneficiava os Museus e apenas resolvia os problemas dos serviços centrais. Pode acrescentar-se o adágio popular: “Olhos que não veem, coração que não sente”. Como dizia, esta situação rompeu com o consenso criado no país na sequência do Inquérito aos Museus em Portugal (1998): a existência de uma Rede Portuguesa de Museus, agrupando as instituições que, para além dessa designação (que são inúmeras, e muitas muito pouco qualificadas) possam como tal ser certificadas, tendo no seu núcleo um conjunto de Museus, dependentes da Administração Central do Estado que, por mais antigas, mais robustas do ponto de vista técnico e melhor financiadas, desempenham um papel crucial. A orgânica da DGPC e das Direções Regionais de Cultura rompeu com esta situação e, nomeadamente na região centro, houve movimentos muito prejudiciais de desarticulação da rede e de degradação dos seus nós. Sobre a capacidade, ou falta dela, de gerir os Museus, tive oportunidade de escrever* que:

“a ingovernabilidade dos institutos públicos existe devido à política administrativa concentracionária dos poderes nas sedes submetidas à directa superintendência do poder político e à inexistência de uma efectiva delegação de competências (e de capacidade orçamental própria) às instituições que, no terreno, asseguram a efectiva tutela, salvaguarda, conservação e gestão do Património. No caso do Instituto Português de Museus, através de sucessivas remodelações da sua lei orgânica (e das posturas das suas sucessivas direcções), este fenómeno tem-se manifestado numa oscilação do conceito do instituto entre o papel de um coordenador e facilitador da actividade dos Museus e o papel de um organismo central dotado de repartições ‘desconcentradas’, na prática desprovidas de capacidade decisória e actuante. O primeiro destes conceitos beneficia de, e sobrevive graças à, tradicional autonomia pessoalizada da figura do Director do Museu, que se impõe ainda como poder fáctico, quer a nível local, quer a nível central. Mas o conceito concentracionário impera, sobretudo desde o Programa de Reforma da Administração Central do Estado, implementada desde 2000, sob a figura do “alinhamento dos objectivos” dos vários níveis institucionais envolvidos (a nível autárquico os mecanismos são outros, mas é a mesma a situação).”

E sobre a evolução da situação pude observar** que

“a um nível orgânico mais geral, assistiu-se entre 2011 e 2012 à interrupção da existência do Ministério da Cultura e dos seus institutos de tutela do Património, fundidos numa renascida Direcção Geral do Património Cultural. Mantêm-se, fora de Lisboa, as Direcções Regionais de Cultura, mas sem competências autónomas (todos os processos necessitam de ser referendados pela DGPC). Nesta remodelação os Museus dependentes do Estado central sofreram o que se tem de qualificar como um massacre. Dos 40 Museus e Monumentos que dependiam do Ministério da Cultura, através do IMC ou do IGESPAR, os 35 que ainda dispunham de orçamento próprio (os do IMC), perderam-no. 18 instituições foram relegadas a posições secundárias, fosse por terem passado a depender das Direcções Regionais (o que somou mais um nível de decisão à sua tutela), ou fosse por, mantendo-se na DGPC, não fazerem parte da sua estrutura nuclear. Sete Museus, pura e simplesmente, deixaram de ter Director, que passaram a dividir com outros Museus, a distâncias que chegam a atingir uma centena de quilómetros. Por outro lado, Museus que se esperava poderem ganhar autonomia, por para tal reunirem todas as condições (como Tongobriga, Mirobriga ou Santa-Clara-a-Velha), aguardam melhores dias para conseguirem o seu reconhecimento administrativo.”

O argumento principal de aligeiramento das estruturas (tendo como objetivo a redução de encargos) foi, e continua a ser, uma enorme falácia. Enquanto se alijaram responsabilidades no terreno e se descartaram instituições, o peso (e o custo), a inércia e a ingovernabilidade das estruturas centrais foram sempre em crescendo. No limite, viremos um dia a ter em Portugal a solução “ideal” de uma enorme burocracia central que, na realidade, nada tutela e nada governa do Património Cultural entregue à lei da selva, mas se vai alimentando a si própria dos dejetos que outras suas partes vão produzindo. E era este conjunto de assuntos que devia ser discutido, se quiséssemos que a discussão, sobre ociosa, não fosse prejudicial. Na verdade, de que serve um museu ser Nacional, Municipal ou Monográfico, se não dispõe de autonomia técnico-científica e vive sob o império momentâneo de um Diretor-Geral, Presidente da Câmara (ou… da Junta de Freguesia ?). Como podemos garantir aos Museus a capacidade jurídica de exercer em pleno as funções museológicas que a Lei-Quadro dos Museus lhes atribui e a sociedade exige que se cumpram? Qual é o melhor quadro, Museu-a-Museu, para esse exercício? Por fim, quanto é que isso custa e é esse custo suportável? A discussão está completamente invertida. A sub-orçamentação impera de uma forma avassaladora: os Museus do Estado têm neste momento os seus orçamentos tão esmagados que uma parte muitíssimo substancial das suas despesas certas e permanentes -nomeadamente os vencimentos dos funcionários, por isso mesmo reduzidos a níveis mínimos de satisfação das necessidades, quando não abaixo desses mínimos - depende das próprias receitas que geram, e a capacidade para continuar a assegurar o papel basilar nas cadeias de valor do turismo está, para todos os que querem ver com limpidez, posta em causa. Nesta situação, a discussão dos quadros de tutela é uma luta de tração, com um olho na cor do adversário e o outro na “gaveta das coroas”. As funções museológicas na maioria dos casos, estão reduzidas a ter a porta aberta, até porque todo o reforço de meios humanos e toda a renovação geracional dos quadros técnicos está concentrada nos serviços centrais; os Museus só recrutam vigilantes, aliás sob formas inadequadas à satisfação de funções e necessidades permanentes. Mas então, pode perguntar-se, porque se discutiu, a importância de um museu ser “Nacional”, com um caráter tão mais veemente do que se discutiria “a importância de ser Ernesto” (Oscar Wilde)? (E tenhamos bem presente que essa foi a discussão). Porque a focalização numa única palavra e no critério de presença/ausência numa denominação que se muda por decreto, sem nada alterar nas condições efetivas da instituição no terreno é o produto único, necessário e inevitável de uma tutela (política e dita-técnica ao nível mais alto) sem competência, vivendo numa bolha, a partir da qual tenta exercer as suas funções mascarando a sua completa irrelevância política. Porque a verdade é uma: o país não tem uma Política do Património Cultural e é até duvidoso que tenha uma Política Cultural, ponto. Secretaria de Estado ou Ministério, a tutela política nunca teve peso específico, honra seja feita a algumas exceções no início da década de 90, por outro lado revestidas de aspectos de que não importa tratar aqui. A tutela política da Cultura existe para exercer o papel mecenático que o Estado entende ter junto de algumas clientelas mais vocais na capital, vender frigoríficos aos esquimós (peço desculpa, lapso freudiano. Queria dizer: “promover a língua portuguesa”) e, no que diz respeito ao Património Cultural, cortar fitas em inaugurações. Mas isto não impede que a Direção-Geral se empenhe ativamente no reforço do seu poder fáctico e, no momento em que politicamente se empreende uma fase de descentralização de competências, é preciso trabalhar rapidamente no sentido de algumas dessas competências no terreno serem mantidas (não vá alguém, a seguir, questionar a dimensão de uma estrutura de gestão desproporcionada relativamente ao objecto gerido).

Também para isso é necessário garantir a paz interna e o silêncio dos responsáveis intermédios, que não convém que tenham, e muito menos manifestem, dúvidas ou divergências quanto ao rumo a seguir (o Instituto Nacional de Administração chamava a isto, como referi, “alinhamento dos objectivos”, numa tentativa serôdia de aplicar à Administração Pública os modelos de gestão da General Motors, que entretanto faliu). Para tal desiderato basta, arbitrária e ilegalmente, mandar toda a gente a concurso para se manter no lugar. Resultados garantidos e problemas mínimos: a tutela política assina de cruz; não há clientelas a reclamar e, de qualquer maneira, a comunicação social não quer saber. Este exercício de poder à maneira de Talleyrand (“proteger os amigos, perseguir os inimigos e aplicar a lei aos indiferentes”) traz-nos à última característica da discussão - a sua inoportunidade: estamos do lado oposto da realidade, atrás de uma cortina de fumo que, enquanto sopramos para dissipar a nuvem, nos oculta o que se está a realmente a fazer, até ser demasiado tarde. Uma regionalização rejeitada em referendo, mascarada de uma necessária e sempre aguardada descentralização (pela verdadeira, será melhor esperar sentado), vai permitir a estruturas que têm como único objetivo perpetuar as condições da sua sobrevivência, manter essas condições por mais algum tempo, descartando o que é incómodo, recuperando o que julgam poder ser útil, mas sobretudo não modificando o status quo e assegurando que os recursos disponíveis possam continuar a ser canalizados para as iniciativas mediáticas impactantes que, no fim do dia, são a única coisa que lhes importa. Nada que nos possa surpreender. O mesmo se passou com a tutela do Ambiente e, depois, com a do Ordenamento do Território. A política-tal-como-a-conhecemos está apostada em erradicar do quadro da discussão pública todo e qualquer elemento técnico que possa obstar à resolução, sem peias, dos dois únicos problemas que a afligem: os lugares e as pessoas. Agora, tocou ao Património ***. Uma certa figura de Autarca (a que de facto domina o complexo político-partidário) pode começar a descansar, os “obstáculos ao desenvolvimento” (assim os entendem) são removidos do panorama político: a gestão dos favores e das influências pode ser feita livremente, assegurando que no seu Concelho (deprimido e desertificado) nada obsta a que a única instituição existente (a Autarquia; não existe outra administração, nem empresas, e as associações são extensões da Câmara) determine os destinos das clientelas a seu bel-prazer e continue a criar os elefantes brancos que a propaganda eleitoralista reclama. Entretanto, entretenhamos o “pagode” com questões tão significativas quanto a reclassificação dos Museus (em base casuística, pois é de evitar uma discussão mais global, que repensasse a estrutura e obrigasse a reavaliar alguns contratos inter-administrativos entretanto firmados). A qualidade dos pareceres internos, ponderadas tomadas de posição em sede própria (a Secção especializada de museus, da conservação e restauro e do património imaterial do Conselho Nacional de Cultura) e apelos públicos muitíssimo significativos**** fizeram, no caso de Conimbriga, imperar o bom-senso. São devidos sinceros e respeitosos cumprimentos a todos os envolvidos, obviamente incluindo Ministério e Direção-Geral. Mas as decisões agora tomadas acerca de Évora e Conimbriga, na sequência daquelas tomadas acerca dos Museus da Música e Grão-Vasco, todas elas boas e justificadas, ficam ainda assim longe de nos permitir retomar a normalidade e, diria mesmo, ainda aquém de podermos recuperar uma desejável racionalidade na gestão do Património Cultural. Continuamos, nos Museus e fora deles, a viver num horrível contexto de sub-orçamentação*****, num clima de administração concentracionária e desprovidos de qualquer fatia de autonomia decisória. A título de exemplo, mencione-se que, num ano de exercício do cargo, a DGPC ainda não encontrou oportunidade para delegar nos diretores de Museus, competências tão simples quanto as de autorizar excecionalmente uma visita gratuita, a realização de uma fotografia para estudo, o aluguer dos espaços ou a assinatura de um protocolo não acarretando despesas com uma instituição terceira, ao contrário, aliás, do que era costume, e contra os mais esclarecidos preceitos do Estatuto do Pessoal Dirigente (normativo legal que, por outras razões, há motivos fundados para suspeitar que a DGPC desconhece). Mas, como cegos conduzindo os coxos, “estamos” certos do caminho e seguros de lá chegar. Finis. Laus Deo. Virgílio Hipólito Correia, Museu Monográfico de Conimbriga 7 de Março de 2017.

* https://www.academia.edu/12…/20_anos_de_arqueologia_e_museus **https://www.academia.edu/…/Os_Museus_de_Arqueologia_e_os_se… *** https://www.publico.pt/…/descentralizacao-patrimonio-cultur… **** http://www.dn.pt/…/museus-nacionais----o-caso-de-conimbriga… ***** http://www.dn.pt/…/cultura-a-pobreza-cabimentada-5688553.ht…

Este artigo segue o Novo Acordo Ortográfico.

Ruínas Conimbriga (Fotografia retirada de: http://www.conimbriga.pt).

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