O património é lugar de identidade e encontro. Perguntamos de quem, como e porquê. Cientes da finitude da existência, dificilmente nos será estranha a ideia de uma vida sem caminho, história ou valor, isto é, sem um sentido. No entanto, é interessante verificar que, em face dos testemunhos de valor a que chamamos património cultural, nem todos se revêem do mesmo modo. Normalmente, a escala geracional é determinante e a apropriação do testemunho varia e flutua com o tempo, a ponto de uma geração poder promover um testemunho ao estatuto de património que por outra foi negado e vice-versa.
A modelação da memória é sempre corporizada por transformações arquitetónicas e paisagísticas, pela transplantação de património integrado e móvel para outros horizontes de afeto, ou pela sua sepultura e exumação em e de depósitos vários. Importa saber como ela se operou e, mais do que isso, devolver a todos essa história mais longa, que se perde muitas vezes na noite dos tempos; essa história da história que, em nosso entender, é dever de todos aqueles que têm ao seu cuidado património cultural e artístico investigar e divulgar, no mais alargado espetro possível. A promoção da consciência histórica profunda é um ato de civismo, na medida em que as escolhas hoje feitas em nome do património não podem ignorar a história de vida do mesmo, tantas vezes traduzida na reincidência crónica em circunstâncias que reduzem o alcance do seu valor para todos. Assim, entendemos que aquilo a que hoje chamamos interpretação de paisagens, conjuntos e edifícios não pode ser a última interpretação mas antes uma “radiografia” acessível das interpretações que é possível recuperar. Todo o visitante tem direito à abertura de uma janela crítica sobre a realidade patrimonial que escolhe conhecer e normalmente fica grato pelo enriquecimento que daí colhe.
O mosteiro e a vila da Batalha, cujos destinos são interdependentes, constituem um exemplo extremo de remodelação e reapropriação memorial da raiz comemorativa simbólica do lugar, na dimensão de culto da Nação e dos seus veneráveis mortos. As sucessivas opções de ampliação e amputação do complexo conventual tiveram profundas consequências na estruturação e desestruturação do tecido urbano e rural e, portanto, também da vida que lhe está associada, ocasionando reconfigurações sem retorno da paisagem, bem como a criação e o enfraquecimento de vínculos da mais diversa ordem entre o monumento e a vila. É extremamente interessante verificar que a mais significativa transformação do edificado e de uma paisagem constituídos e consolidados ao longo de quatro séculos e meio conta apenas com 120 anos de história, consubstanciando-se numa versão da Batalha que raramente é questionada, exceto na nostalgia manifesta da geração que localmente assistiu às demolições do período do Estado Novo, nos de 1950 e 1960. Foi este o tempo em que o monumento definitivamente foi separado da vila, com consequências de grande impacte para a paisagem e, naturalmente, para a vida das populações e para a autenticidade do lugar. Especialmente a partir de final da década de 80, a vila cresceu sem plano de urbanização, para além da clareira que anos antes fora aberta em torno do mosteiro e a que, depois de todas as demolições e novas construções, se fez corresponder uma zona especial de proteção que veio a incluir a Estrada Nacional nº1, atual IC2, e a excluir praticamente toda a antiga cerca conventual.
O século XXI parece estar a ser, para a Batalha, o momento de despertar para a sua própria consciência histórica e cultural, entendendo a vila e o seu mosteiro com um todo, ainda que sujeito a administrações diversas, as quais, por todas as razões, devem cooperar em vez de se enfrentarem. A marca deixada na paisagem é praticamente irreversível, apesar do projeto de estudo para reformulação da zona especial de proteção que a Direção Geral do Património Cultural está a promover, nela pretendendo incluir aquilo que resta da antiga cerca do mosteiro. É certo, porém, que proteger não é apenas circunscrever e levantar interdições; é também e sobretudo revivificar pela sensibilização para uma utilização mais equilibrada da paisagem por parte de proprietários e da população em geral. Neste capítulo, tanto o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto serviço dependente da DGPC, como o Município da Batalha, têm desempenhado um importante papel na reaproximação da população à sua história, através de inúmeras atividades, entre as quais se destacam as visitas temáticas ao território da vila e do mosteiro, mas também dotando o monumento e a vila dos equipamentos necessários à interpretação inclusiva dos mesmos. Ao cabo de muitos anos de trabalho, foram abertos ao público, entre 2011 e 2012, o Museu da Comunidade Concelhia da Batalha e o Centro de Interpretação do Mosteiro da Batalha, fechando um ciclo que fora iniciado, anos antes, pelo vizinho Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota. Fica a sugestão para fazerem a rota destes equipamentos e nos darem o desejado retorno crítico!
Demolições em 1966
Centro de Interpretação do Mosteiro da Batalha