Com que idade se iniciou na profissão de barbeiro? Onde e quando apanha a palma para fazer as alcofas? Que caminhos seguia e como se orientava à noite quando andava com o rebanho? Que ervas se usavam para defumar as crianças com mal de lua? Como se tirava a água dos poços para regar as hortas e pomares? Como reconhece os olhos dos bivalves quando anda a mariscar na ria? Como se conservavam os alimentos: o peixe, o porco, os frutos? Onde costumavam aparecer as mouras encantadas? São questões que muitas crianças de Vila Real de Santo António, no Sotavento Algarvio, têm colocado aos familiares e antigos profissionais, no âmbito de projectos educativos temáticos na área do património que vêm a ser dinamizados com a comunidade educativa desde 2006. O território como ponto de partida para dinâmicas de aprendizagem na área do património
Memórias e saberes-fazeres ligados à pesca e indústria conserveira no litoral, ou ao trabalho da terra e ao pastoreio no interior, antigas tradições festivas, artes de entrançar a cana e a palma, engenhos hidráulicos para a irrigação de hortas e pomares, tradições alimentares, lendas de mouras e encantamentos são algumas das heranças que identificam o património de Vila Real de Santo António. Mas são de alguma forma também comuns ao Algarve, à vivência das populações nas fainas do mar, trabalhando as terras férteis do barrocal ou vivendo as agruras e isolamento da vida na serra, ao seu imaginário colectivo e calendário ritual. Outras marcas porém, também elas profundamente ligadas às especificidades do território, remetem para percursos históricos particulares: Vila Real de Santo António com o seu urbanismo racional e iluminista, mandada construir pelo Marquês de Pombal junto à foz do Guadiana; Monte Gordo crescendo a partir de cabanas de pescadores que pelo menos desde o séc. XVI vinham explorando o abundante pescado na baía; ou Cacela Velha numa arriba à entrada da ria Formosa onde já no séc. X se controlavam, a partir da fortaleza, as embarcações que seguiam para Tavira e Faro.
Este território, seus usos antigos, valores naturais e culturais e aqueles que o habitam têm sido pontos de partida para o desenvolvimento de dinâmicas de aprendizagem e fruicção criativa a partir do património, com o público infanto-juvenil.
Experiências de educação e sensibilização para o património
A estratégia e a metodologia de actuação definidas pelo Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela / CMVRSA para a educação para o património tiveram na base uma reflexão em torno do trabalho educativo que vem sendo desenvolvido com as escolas, a partir de municípios e museus, e a consequente consciência de diversas necessidades: planos educativos de longa duração que proponham temas a tratar com o envolvimento de alunos, seus familiares e professores; preparação de materiais e instrumentos pedagógicos; oferta regular de visitas e oficinas que promovam uma aproximação com a comunidade educativa; e uma rede de parcerias amplas entre os agentes do território que possam contribuir para o enriquecimento dos projectos.
Na área da educação para o património, para além da oferta regular de oficinas e visitas orientadas ao património local, é através de projectos temáticos orientados para o 1º ciclo do Ensino Básico (dinamizados ao longo de um ano no mínimo e três no máximo), que vimos garantindo, a partir das crianças e jovens, o envolvimento de toda a comunidade no conhecimento, preservação e valorização do seu património
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Em 2006, com a acção educativa Mouras Encantadas e Encantamentos no Algarve, a partir das lendas recolhidas por Ataíde Oliveira na transição do séc. XIX para o XX, pretendeu-se aproximar as escolas deste imaginário popular e da valiosa herança islâmica no Algarve e em especial em Cacela. A visita a exposição didáctica sobre o lendário das mouras e tesouros, o contacto directo com as lendas reavivadas por contadores, visitas a a Cacela Velha e oficinas de criatividade foram momentos marcantes. Do projecto resultou a edição de um CD-ROM interactivo “Mouras encantadas e tesouros”, com narrativas da tradição oral entretanto recolhidas em Cacela, informação sobre a herança islâmica e componentes lúdicas.
Já em 2007 com a acção educativa “Patrimónios da Nossa Água”, o património hidráulico – minas, canhas, poços, noras, aquedutos, tanques, cisternas e represas – que marca e identifica, ainda hoje, o território algarvio – foi ponto de partida para que a comunidade educativa, através de visitas a noras, sessões de contos populares sobre a água, identificação de engenhos hidráulicos na envolvente da escola e da casa, oficinas de desenho e pintura, ficasse a conhecer uma paisagem cultural de hortas, pomares e fazendas trabalhada pelo homem século após século, onde se sobrepõem heranças de romanos, árabes e populações que lhes sucederam.
“Velhos saberes, novos fazeres. Actividades profissionais no litoral, barrocal e serra Algarvia” desafiou, em 2008, as escolas a descobrir os testemunhos relacionados com o trabalho das populações, ligados ao mar e ao sapal, ao trabalho rural, às artes e ofícios e trabalho industrial, envolvendo testemunhos materiais e imateriais (memórias, saberes, competências técnicas) relacionados com o trabalho. Centenas de crianças de todo o concelho pesquisaram sobre as antigas profissões e sua ligação ao território local, recebendo antigos profissionais na escola, entrevistando, na sua localidade pescadores, conserveiros, faroleiros, cesteiros, hortelãos, mestres caleiros, barbeiros, e participando no Verão em oficinas como “Um dia na Horta” ou “ Artes Tradicionais de entrançar a cana, a palma e a tabua”.
Em 2009 e 2010 “Para que servem as plantas? Usos antigas da flora algarvia” crianças e jovens exploraram os seus usos na alimentação, medicina popular, artes e ofícios, construção tradicional. Com a apresentação de um diaporama, sessões de contos na escola, saídas de campo para reconhecimento das ervas, realização de herbários e oficinas durante as férias, pretendeu-se dar a conhecer a flora autóctone da região algarvia e seus usos antigos. Do projecto resultou uma exposição "Plantas que curam. Usos e saberes na medicina popular" e a edição de um jogo de memória dirigido a todas as crianças e jovens, tendo por base as suas recolhas e desenhos.
“O que comiam os nossos avós? Alimentação no Sotavento Algarvio” explorou, em 2011 e 2012, antigas tradições alimentares, na sua ligação ao território, ciclo agrícola e calendário festivo. O projecto arrancou com a apresentação de diaporama sobre a alimentação no Algarve e com a entrega de fichas de recolha de receitas e guiões de entrevista que as crianças aplicaram junto de familiares. Saídas de campo propiciaram contacto com alguns dos mais importantes ciclos alimentares da região (o pão, o azeite, o porco, a sardinha, o atum e a sua conserva, o figo, os citrinos, o leite e o queijo, o mel, os doces de amêndoa, as compotas…). O projecto contou ainda com sessões de conto popular e tradições orais relacionados com a alimentação. Nas oficinas “Casas de fogo” as crianças foram desafiadas a criar miniaturas de antigas cozinhas da nossa região, desde a estrutura das chaminés ao mobiliário e utensílios. No mini-curso “Cozinha dos avós” os avós partilharam e confeccionaram com os mais novos algumas receitas como açorda de galinha, carapaus alimados, xarém com conquilhas, griséus com ovos, doces de laranja, amêndoa e figo,...
Todos os projectos educativos têm partilhado uma metodologia comum: motivação de alunos e professores com apresentação na escola de diaporama sobre o tema; concepção e entrega de materiais pedagógicos (fichas, guiões) com vista ao trabalho de pesquisa que as crianças fazem junto dos seus familiares e comunidade próxima (valiosos instrumentos para levantamentos de património em momentos futuros); saídas campo garantindo contacto directo com os testemunhos patrimoniais e seus detentores; sessões de contos populares relacionados com o tema do projecto; e oficinas temáticas e de criatividade. Na definição da metodologia e actividades associadas procuramos ter sempre presente que as crianças aprendem melhor quando lhes é pedida uma participação activa no processo, quando o objecto de estudo lhes está próximo no tempo e no espaço e quando usam os vários sentidos na sua exploração.
A devolução dos resultados à comunidade tem estado na origem de diversas exposições temáticas e edições. Livros, jogos, cd’s interactivos, kits pedagógicos permitem ainda, em momentos futuros, o renovar das aprendizagens de forma lúdica não só pelas crianças envolvidas, como junto de um público infanto-juvenil mais alargado.
Na verdade, de forma complementar à identificação e investigação, e à valorização e interpretação, áreas de intervenção do Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela/CMVRSA, o trabalho de educação e sensibilização para o património tem-se afirmado como um eixo de intervenção imprescindível. Não apenas como forma de levar os mais novos a viajar para tempos idos, para aprenderem como se fazia, como se celebrava, o que se comia, como se construiu este ou aquele monumento. Mas essencialmente no sentido de nos questionarmos: Que lugar é este que habitamos? Como chegámos ao que somos hoje? O que nos diferencia e aproxima dos outros? E assim, partir do conhecimento do território, dos seus usos antigos, dos seus valores patrimoniais para dinâmicas de afectividade com os lugares, aprendizagem, fruição e intervenção criativa.