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Património e Fronteiras: estamos a cumprir o nosso papel?



O ano de 2022 termina sob o signo da consolidação de ume tendência, desenhada nas últimas duas décadas, de gradual, mas profunda, recomposição das dinâmicas humanas na Europa e no planeta. São várias as expressões dessa tendência, geralmente observadas e analisadas de forma isolada, cada uma por si: o crescimento da desigualdade, a transição energética, a transição digital, o esgotamento do modelo financeiro de crescimento económico, a deslocação geoestratégica do Atlântico para o Pacífico, o enfraquecimento crescente da Europa, a aceleração do envelhecimento demográfico, a pauperização das classes médias, o aumento da violência e das guerras, a aceleração das migrações por distintas razões, a diminuição da poupança, a reabertura da discussão sobre o quadro dos direitos humanos, o fortalecimento das soluções totalitárias, o regresso dos nacionalismos…


Neste processo, a alternância entre ciclos curtos de crise e desemprego e ciclos médios de crescimento e emprego, que dominou a segunda metade do século passado, cedeu o lugar a uma sequência de processos que, se olhados um por um, são distintos (a crise financeira de 2008, a pandemia, o regresso da guerra à Europa) mas que, entendidos de forma integrada, anunciam um quadro mais próximo das grandes depressões de 1873-96 e 1929-46.


Coroando esta chuva de indicadores, o eixo do património deslocou-se da história para a memória e do tangível para o imaterial. Mas será esta mudança um sinal de futuro?


Olhada na sua origem imediata, sem dúvida que sim. A afirmação da importância da memória democratizou a relação com o passado na sua diversidade e a dignificação das expressões imateriais inscreveu-se numa outra tendência, especialmente positiva, de crescente participação social nos processos de vida em comunidade.


Porém, todos os processos têm consequências contraditórias e, passadas duas décadas destas deslocações, vale a pena refletir sobre como é que elas interagem com os demais processos sociais. Porque, mesmo quando os profissionais do património imaginam poder construir torres de marfim, eles nunca deixam de estar imersos no fluxo da sociedade.


Dando alguns passos atrás: contrariamente ao que já vi e ouvi, a afirmação do património em torno de uma noção de história humana (antropocêntrica, se se quiser), não resultou de um esforço essencialmente conservador e de domínio cultural pelos impérios (ainda que também tenha servido essa realidade), mas de uma reação contra a fragmentação nacionalista que, na modernidade da Europa das cidades setecentistas, gerava guerras sem fim. O exercício de construção de uma “história racional”, despojada de “emoções”, obviamente serviu os interesses de quem dominava, mas não deixou de ser um avanço sobre as identidades etnocêntricas mais fragmentadas que pré-existiam. Foi, sem lugar a dúvidas, um processo não apenas intelectual mas largamente político e, em muitos casos, repressivo, mas inscreveu-se não tanto na lógica das contradições sociais (entre poderosos e alienados) como na das contradições culturais. Terá sido por isso, aliás, que a generalidade dos movimentos ideológicos oitocentistas e do século XX, que eram “progressistas”, mantiveram essa matriz histórica.


Foi nesse entendimento antropocêntrico e humanista do passado que se estruturaram as grandes coleções de antiguidades do passado, primeiro como coleções para a educação das elites e, depois, numa lógica mais republicana (democrática ou não), deram lugar aos museus cívicos, ou seja, as casas de formação ampla, cultural, de todos os cidadãos.


Uma história racional (despojada de emoções), servida por museus, monumentos e sítios (despojados da sua dimensão intangível), permitia formar para uma certa noção de cidadania (obviamente moldada por quem mandava) e, através dela, assegurar que o crescimento urbano (eixo da modernidade), apesar de comportar uma crescente diversidade interna de etnicidades, reconduzia essa diversidade a uma noção de unidade original testemunhada pelas “grandes obras do passado”.


Sabemos como esse programa serviu o mundo que se estruturou na modernidade e subsiste, ainda que em crise crescente, no presente. E sabemos como ele subjugou a diversidade e, não raro, a folclorizou. Resta saber se a dupla deslocação que acima referi olha sobretudo para o futuro ou para o passado. Ao sublinhar sobretudo a diversidade do comportamento humano (que é real, mas limitada), o campo do “passado” tem enfraquecido a noção de unidade da espécie humana, o que gera dificuldades, por exemplo, face aos desafios sanitários, ambientais e sociais que são, cada vez mais, comuns a todas as sociedades do planeta. Ao acentuar sobretudo as memórias em vez da história, reduziu o interesse do estudo do passado para a ação no presente e para a configuração de novas utopias, ao mesmo tempo que fragmentou e relativizou esse passado.


É indiscutível que houve e há consequências positivas neste processo: a dignidade humana é hoje mais plenamente assumida e compreendida, porque deixou de seguir um modelo único (totalitário e muitas vezes opressor). Mas, ao enfraquecer a noção de unidade humana não conseguiu dar resposta às dinâmicas centrípetas que se exprimem nos nacionalismos e localismos xenófobos, na pós-verdade, no relativismo anticiência, etc.


Tal como o humanismo antropológico da modernidade teve consequência positivas mas serviu estruturas opressivas, também o relativismo memorialista tem consequências positivas mas serve, ou pelo menos não resiste, ao renascer das identidades etnocêntricas, que se exprimem de forma mais violenta nuns casos do que noutros, mas em todo se alimenta da dicotomia nós/eles.


Quando muitas constituições nacionais ainda afirmam o património como “da nação”, quando ainda se propõem como bens património da humanidade fortalezas “nacionais” ou tradições culturais imateriais de redução de animais a bonecos amestrados quando não torturados, é tempo de olharmos, com tranquilidade, e racionalidade, para o que estamos a fazer.


No limite, estamos a servir a construção da paz ou da guerra, do conhecimento ou da alienação?


Penso que o património e a sua gestão não podem escapar a estas questões. Os que pensam que ele e sobretudo um recurso turístico-financeiro deveriam fazer uma visita de estudo à Líbia, à Síria ou à Ucrânia, antes que seja tarde. E, já agora, aos espaços de escravatura qu esse vão instalando em Portugal, sem que ninguém pareça entender que eles nascem num quadro de transformação cultural e de valores, face aos quais o campo do património não parece estar suficientemente atento.


Bom 2023!


P.S. Também há boas notícias, mas deixo isso para o ano que vem, para além deste site: https://www.iau-hesd.net/actions/5174/launch-bridges-new-unesco-coalition-centered-around-sustainability-science


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