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O património está em mudança: que consequências para a gestão do património?



Nas suas teses sobre o conceito de História, Walter Benjamin opõe a noção de que a aproximação ao passado, que é servida pela História, se apoia em imagens mentais (sínteses, mais ou menos globais) e não em narrativas ancoradas em memórias. Benjamin escrevia em 1940, com os tanques nazis a invadirem diversas partes da Europa e após duas décadas que assistiram à viragem das sociedades de um leque de valores orientado para a diversidade (sobretudo nos anos 20 e sobretudo nos países e estratos sociais superiores, como na Alemanha) para valores totalitários, retrógrados e repressivos (não apenas nos países com governos do eixo).


A atualidade do debate, concorde-se ou não com Benjamin, é assustadora: muito do que são os debates atuais, sobre o que é o património, qual a função das estruturas culturais e como encarar e proteger a diversidade, foram já travados no passado, em contextos …pouco recomendáveis.


Benjamin chegou a essa noção do passado enquanto imagem através de uma série de reflexões paralelas: a noção de que o presente não "inveja" nem o passado (porque se encara a si mesmo como o cumprimento de expectativas passadas) nem o futuro (que é a redenção do presente, ou seja, o desejo presente); de que a redenção no presente é, afinal, assumir todo o passado, em todos os seus pormenores e contradições (ideia que converge com a utopia da Unesco de um "Património Mundial" ou com a noção de "inscrição do passado" proposta por José Gil); de que o presente (isto é, o futuro do passado) não é a redenção do passado por corresponder a uma utopia forjada no passado, mas porque inscreve as materialidades passadas num quadro explicativo que permite entendê-las como geradoras do presente.


O resultado deste entendimento proposto por Benjamin é o de que o passado não é uma narrativa de eventos, mas uma imagem sincrética que envolve todos esses eventos. Neste sentido, a história dissolve as "surpresas inesperadas", enquadrando-as dentro de uma avaliação de longo prazo do passado que se constrói a partir do presente, da mesma forma que a compreensão da causalidade se constrói a partir das consequências (quando tentamos perceber as causas dos fenómenos) e não o contrário. E, por essa razão, o presente cumpre-se fundamentalmente quando avança para o futuro sem qualquer agenda clara (o futuro nunca será o que se imagina no presente), mas animado por uma imagem abrangente do passado.


No último quartel do século XX, no campo das Humanidades, a palavra-chave era “História”. Existiam, é certo, diversos entendimentos sobre como construir a História, mas era ela a base da reflexão sobre um passado, estruturada a partir de uma noção convergente, ou de uma imagem: a de que existia um passado comum da espécie humana, que podia ser plasmado na estratégia de construir uma história da Humanidade com base numa metodologia comum academicamente validada (que a UNESCO editaria em 1969, cumprindo um mandato que remontou à sua fundação, em 1947) e de identificar um conjunto de obras como sendo Património dessa Humanidade (que a UNESCO plasmaria na Convenção do Património Mundial, em 1972).


Muito mudou desde então, sobretudo a partir da última década do século passado, sobretudo em duas dimensões: o entendimento de que as Histórias da Humanidade (e em particular a que fora editada pela UNESCO) eram eurocêntricas e não representativas da pluralidade cultural e de perspetivas no planeta, considerando que o passado exprime sobretudo a diversidade do comportamento humano; a consideração progressivamente crescente da dimensão intangível do património, primeiro valorizando-a na apreciação do património e, mais tarde, autonomizando-a (a partir da Convenção de 2003). Esta mudança traduziu-se, no campo da reflexão social e gestão cultural pela progressiva substituição do eixo do património, de uma referência histórica global (antropocêntrica) para uma rede de narrativas complementares, quando não alternativas. A História, neste processo, foi substituída pelas Memórias, tal como a Educação foi substituída pelas Competências e pelas Experiências.


Esta reorientação trouxe contributos que são genericamente reconhecidos de forma positiva, quer na dimensão cultural (afirmando a complexidade presente das expressões culturais e dos seus direitos), quer na dimensão didática (abrindo a educação patrimonial a uma lógica interdisciplinar e multissensorial). Afirmaram-se, ao mesmo tempo e de forma correlata, novas e profundas tendências na relação das sociedades com o passado e o futuro: o enfraquecimento da noção de Humanidade (substituída pela de identidade etno-centrada); o enfraquecimento na noção de metodologia racional (substituída pela de narrativa de base identitária); o enfraquecimento da ideia (ou imagem) de um passado comum aspirando a um futuro comum, mesmo com contradições (substituído pela imagem de passados diversos e assimétricos, aspirando à compensação dessas assimetrias).


O século XXI, que vai chegando ao final do seu primeiro quartel, apresenta-se mais divorciado de uma imagem de passado e de conhecimentos comuns, ou mais orientado para o relativismo na apreciação dos temas em debate na sociedade. De certa forma, tal como nas décadas de 1920 e (parte de) 1930. A tensão entre História e Memória, ou entre Humanidade e Segmentos, que atravessou por exemplo o debate no ICOM sobre “o que é um museu?”, permanece. Não é uma discussão entre “bons” e “maus”, mas uma relação dialética que tarda em encontrar a sua síntese e, inclusivamente, permite questionar se essa síntese (tão ao gosto greco-romano-judaico-cristão) ocorrerá ou se, numa dialética antitética, uma nova destruição pelas mãos da deusa Kali irá mais uma vez arrasar tudo à nossa volta.


A gestão do património é confrontada, hoje, com este debate, ou dilema: que caminho, ou tendência, percorrer e valorizar? A noção cultural de património mundial, tal como pensada há umas décadas como instrumento para a paz, não parece poder sobreviver a uma matriz explicativa que valoriza sobretudo as narrativas locais, e talvez por isso se vá rendendo apenas à lógica comercial que o reduz a uma comodity (ao lado de outras incorporações brutais no mercado, das universidades mediocrizadas às peregrinações religiosas turistificadas). As reações que surgem face a este risco são totalitárias, quando não fortemente retrógradas e repressivas (às vezes ridículas e frágeis demais para merecerem o epíteto de revanchistas, como no caso dos brasões na Praça do Império).


A questão que se coloca hoje a quem gere o património é se aceita gerir este estado de coisas, cada vez mais comercial e focado na espuma dos dias, ou se aceita um debate mais profundo sobre as missões que as instituições do património devem assumir, nos museus (para além do espetáculo), nos arquivos e bibliotecas (para além da digitalização), na proteção e co-construção das paisagens (para além dos sítios e monumentos), no ensino (para além das competências).


De facto, na tensão entre a história (o passado universal enraizado em metodologias replicáveis, acordadas para um arquétipo humano, necessário à paz) e a memória (o passado ego e sociocêntrico enraizado em experiências individuais, que são necessárias à liberdade), as memórias projetam narrativas e tentam encaixar evidências nelas, enquanto o passado histórico é constantemente reconstruído através do foco em detalhes que geram novas imagens de um passado comum e utopias de um futuro convergente. Numas florescem as guerras e no outro germina o império. É por isso que o conceito de história de Benjamin desafia diretamente as histórias relativistas e memorialistas pós-modernas, e é por isso que esta não é uma discussão que se possa resolver de forma simplista.



Luiz Oosterbeek

Instituto Politécnico de Tomar e Centro de Geociências da Universidade de Coimbra


O autor utiliza o novo acordo ortográfico.



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