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Navegar à deriva



Entre os dias 14 e 16 de março de 2024, decorreu o I Encontro Nacional de Arqueologia Marítima e Subaquática, em Lisboa, organizado pelo Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, pelo Museu da Marinha e pela Associação dos Arqueólogos Portugueses. O programa foi diversificado nas abordagens, detalhando experiências em contextos de interface, fluviais e marítimos, geograficamente representativos da plataforma continental e insularidades, apresentando metodologias inovadoras, com alguns apontamentos até para além do território marítimo português. Lá estiveram representados alguns dos projetos mais emblemáticos, pela positiva, do que se tem feito no país, ao longo da última década, num encontro muito participado por profissionais cada vez mais abundantes; mas, ao observador atento, algumas ausências existiram, que, pese embora pouco numerosas, se fizeram sentir e foram particularmente significativas. A proporcionalidade nas apresentações, relativamente aos respetivos pesos regionais reais nesta atividade, também não se crê terem sido refletidos. Porém, dado o calendário existente e os tempos vigentes, não podemos deixar de elogiar os organizadores, pelo evidente cabedal de esforço que investiram na iniciativa. 


E duplamente de parabéns estão, pois que, somente em 2024, se realizou este I Encontro Nacional de Arqueologia Marítima e Subaquática, num país que se julga marítimo e se jura de sangue salgado. É caso para dizer, demorou, mas fez-se – finalmente levou-se a “Carta a Garcia”. Nunca é tarde demais para fazer o que se impõe. E é neste país ibérico e litorâneo, marítimo ao invés de quixotesco, que pode funcionar o congregar-se intergeracionalmente a comunidade diversificada em torno da ideia de uma renovada narrativa do mar cultural português, fazendo-a centro das causas políticas que galvanizam a sociedade, porquanto a dimensão do espaço marítimo nacional (que é aproximadamente de 4 milhões de km2), é a única que nos permite fugir da claustrofobia da nossa pequenez, no país dito dos navegadores. 


Porém, em pleno século XXI, verifica-se que em alguns dos cientistas da vanguarda do património cultural subaquático português, campeiam ainda ideias bafientas de antanho, que provêm de uma ordem imaginada, que criaram uma categorização hierárquica artificial, legitimando desigualdade que é jurada como natural, inevitável porque se decidiu dizê-la inata. Estabelecida a discriminação, dá-se a uns sobre outros, que do vil metal não escapamos. E, na verdade, é absurdo, crer que uma matéria-prima comum específica, ou uma época histórica particular, por si só, refletem maior valor de conhecimento para os seres humanos. 


 Como é, assim, ainda possível gastar tempo a discutir bizantinices, como se um navio de madeira valerá mais do que um de metal? Ou se caberá ao Estado ter o controle secreto do património cultural, ao invés de facultar toda a informação que possui aos cidadãos? Se é legítimo grupos de cidadãos interessados investigarem histórias através do património cultural que valorizam? Estes preconceitos, dignos de outros pretéritos contextos, deseja-se serem corridos no carro-vassoura da história. A memória coletiva é de todos, não pode ser de fação. Cinquenta anos volvidos do 25 de Abril, ainda urge democratizar o património cultural português. Aliás, que autoridade o Estado tem, após os exemplos dados nos casos dos naufrágios do Algarve (Nuestra Señora de las Mercedes), da Namíbia (Bom Jesus) e de Omã (Esmeralda), que revelaram publicamente a sua total incapacidade, chocando e envergonhando a opinião pública nacional e internacional? Esse Estado já não tem o direito ao silêncio complacente, ao sorriso conveniente, à desculpa da circunstância face à virtude que se impunha. Também a administração pública, é o que faz. 


Fomentar esse andar naquela narrativa de estar contra tudo, exceto contra nós próprios, é um solitário monólogo destinado a fazer-nos sentir que temos a nossa razão, que resulta invariavelmente num vazio. É assim, as pessoas, geralmente, preocupam-se mais em fazer tentar valer a sua razão, do que em tentar ter futuro. Sabemos que, na modernidade em que nos cabe estar vivos, desagregaram-se todas as formas de filiação, ou pertença, na sociedade. O livre-arbítrio é hegemónico nesta nossa modernidade líquida. Quem ouse opor-se, arrisca-se, hoje, a não ser mais ouvido e respeitado, ao serviço de interesses que não são verdadeiramente seus. Quem arrisque, na civilização ocidental, proclamar que a contemporaneidade é uma ficção, que a homossexualidade é crime, que o casamento inter-racial abastarda a família e a comunidade, que a mulher serve para tratar da casa e do homem, que a religião deve conduzir a sociedade, que a nação é um valor em si mesmo, que o mar português é uma questão de inquestionável Soberania Nacional, é catalogado como troglodita. O género, as preferências sexuais, a fisionomia, a relação com o passado, com a religião, com a língua materna, com os elementos são, hoje, maleáveis, neste longo processo de emancipação rumo à individualização. 


As identidades próprias são singulares e refletem as pertenças escolhidas por cada um ao longo de biografias irrepetíveis. A governança partilhada na gestão do património cultural subaquático com aqueles que são os que o conhecem e a ele acedem, já não é uma preferência – é o seu destino. O Mar é indomável a partir da secretária de um manga de alpaca.  


No entanto, tal não desculpa o Estado de ter de assegurar as suas competências fundamentais, dotando as instituições com os recursos suficientes, ao nível infraestrutural, humano e financeiro, para que se possa assegurar minimamente as suas funções, previstas na Constituição Portuguesa, nos tratados internacionais ratificados pela República e demais diplomas legais em vigor. E o que se assiste é que Portugal, nas suas políticas de património cultural, pese embora tenha ratificado a Convenção para a proteção do património cultural subaquático, da UNESCO, em 2006, pouco tem feito, desde então, em prol desse máximo desígnio coletivo, o da Economia Azul, ou Blue Growth, eixo político e, subsequentemente financeiro, fundamental aos olhos da União Europeia. 


O Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, criado no século passado, está há demasiadas décadas em funcionamento fantasma. Anos depois, conforme havia vaticinado, o anunciado projeto Water World: Capacitação e competências para a conservação e gestão do Património Cultural Subaquático, financiado pelo EEA Grants, não foi além de penso rápido e serviu, fundamentalmente, para nos venderem bacalhau. Chamamos-lhe ainda atualmente CNANS, por respeito ao que foi e a quem o fundou. Mas até quando pode durar o poder da memória do seu fundador, face à erosão do tempo na história da arqueologia portuguesa? O motor norueguês foi-se. Navegar à vela, sem mastros, nem remos, é necessariamente ir à deriva, o que significa ficar à mercê da maré. Reivindicar junto dos novos decisores, resultantes dos resultados das eleições (de  24 setembro de 2023, de 4 de fevereiro de 2024 e de 10 de março), que, de imediato, se outorgue capacidade de infraestrutura, bem como de recursos humanos e financeiros mínimos, é, portanto, evidente. 


Contudo, para espanto de alguns dos presentes, a gestão do património cultural subaquático português, não se executa somente a partir de Lisboa. Sim, desde a publicação da Lei n.º 19/2000, de 10 de agosto, as regiões autónomas têm autonomia na gestão do património cultural, nomeadamente o arqueológico e, consequentemente, do património cultural subaquático. Era reivindicação açoriana antiga, que vinha da década de 60 do século passado. E pese embora os distintos resultados que cada uma das regiões autónomas apresentam, o que é verificável é que, no que respeita à gestão do património cultural subaquático, o centro dinamizador do país não é Lisboa, mas sim Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, Açores. Alguns dos profissionais da área discordam desta perspetiva, o que se compreende pelo que de chocante implica num país macrocéfalo, mas, os factos estão aí e são conhecidos. 


Foi nos Açores que, provavelmente, ocorreu a primeira intervenção de arqueologia subaquática no país (talvez que Angra, talvez que Troia, no início da década de 60), foi onde garantidamente se realizou a primeira campanha internacional de arqueologia subaquática (1972), sendo criada a primeira reserva arqueológica subaquática (1973). Fez-se a primeira legislação de arqueologia inspirada na convenção da UNESCO (2004), criou-se o primeiro parque arqueológico (2005) e os demais existentes (2012, 2014, 2015 e 2015), desenhou-se o primeiro roteiro do património cultural subaquático do país (2017). Os Açores tornaram-se não no primeiro sítio, mas sim na primeira região integral do mundo, a receber o Best Pratices for Underwater Cultural Heritage, da UNESCO (2019), foram o primeiro sítio de toda a Europa, no âmbito da arqueologia subaquática, a ser premiado com o European Heritage Label, da União Europeia (2020), viram ser o projeto Margullar, que integram e impulsionam, considerado a melhor Cooperação Turística Internacional, pela ASICOTUR (2022), criaram os primeiros centros interpretativos de naufrágios do país (2023), editaram a primeira coleção de arqueologia subaquática portuguesa (2023) e lançaram a primeira a rota turística marítima para o grande público (2024). 


Não há, em qualquer outra região do país, um conhecimento tão profundo acerca do mar cultural e, em boa verdade, do mar como um todo. Não foi por acaso que a Lei n.º 1/2021, de 11 de janeiro (revisão da Lei de Bases da Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional), propunha uma gestão partilhada do mar com as regiões autónomas, algo que os Açores há muito ambicionam e defendem. Porém, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 484/2022, decidiu-se pela “inconstitucionalidade indireta”, em prol da “integridade e soberania do Estado”, fazendo uso do princípio jurídico “ius potestatis in mare clausum”, e “a fortiori”, opondo-se ao princípio jurídico do uso da servidão, resultando na prática numa evicção (perda da propriedade, posse ou uso de um bem que é atribuído a terceiro por força de sentença judicial), face ao direito efetivo daqueles que o conhecem e usam quotidianamente. Faz ainda algum sentido obrigar a gerir os mares dos Açores aquele que não possui essa capacidade e proximidade, deixando quem tem essa capacidade sem poder gerir o que é seu por direito de contiguidade natural? 


Como se depreende do exposto, o património cultural português navega por mares revoltos – para lá das costumeiras idiossincrasias pessoais e de algumas decisões singulares discutíveis – pelo que, deste Encontro, o ter resultado um documento final, consensualizado, assume inquestionável valor, com recomendações comuns destinadas a todas as autoridades da administração pública, com vista à dignificação do mar cultural. Porque, como disse certa vez a enorme Agustina Bessa-Luís: “A cultura é o que identifica um povo com a sua finalidade.”.   


________________________________________________________________________________ O autor utiliza o novo acordo ortográfico.


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