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Mudou mas não ficou melhor



No início do mês de setembro, foram publicadas as versões finais dos diplomas que procederam à criação dos dois novos organismos no sector do Património Cultural, e que vieram substituir a Direção-geral do Património Cultural (DGPC). Não sendo os mesmos uma completa novidade para mim, uma vez que havia participado no período de auscultação das versões preliminares, enquanto membro da direção da Associação Profissional de Conservadores-restauradores (ARP), tinha, ainda assim, expetativas para perceber se as várias alterações propostas pela ARP e por várias outras associações na área do património cultural (no seio da Secção dos museus, da conservação e restauro e do património imaterial), tinham tido acolhimento por parte do Ministério da Cultura.         


Se algumas das propostas acabaram por ser integradas nas versões finais, muitos outros aspetos permaneceram por concretizar, ficando os decretos-lei muito aquém do desejável em várias áreas. A conservação e restauro é um desses exemplos, com uma análise mais atenta aos diplomas a revelar um contexto claramente disfuncional e, em alguns casos, com situações que colocam mesmo em causa a salvaguarda e integridade do património cultural.


Antes de entrar nos aspetos concretos que resultam das mudanças introduzidas, não queria, ainda assim, deixar de fazer uma nota sobre a extinta Direcção-Geral do Património Cultural. Apesar do novo enquadramento não ser bom para a conservação e restauro, a crítica aos novos diplomas não significa um elogio ao modelo anterior. Tive oportunidade de referir em algumas intervenções públicas, a minha discordância com um modelo altamente centralizador, burocratizado e onde a conservação e restauro surgia reduzida à condição de divisão – com o Laboratório José de Figueiredo (LJF) num estado agónico, devido à carência de recursos humanos, e esvaziado de competências. Um organismo com uma ação de fiscalização muitas vezes deficitária ou mesmo inexistente (ainda que aí com parte das responsabilidades, apenas), e que muito contribuiu para a instituição da lógica “preço mais baixo” associada às intervenções no património cultural, pelos muitos procedimentos promovidos ao longo da última década, nesses moldes.


Havia, sem dúvida, que repensar o que existia, constatada a ineficácia do modelo e decorridos 11 anos desde a sua criação. A resposta é que, infelizmente, me parece ser mais uma oportunidade perdida para a Conservação e Restauro, com a agravante de conter vários sinais que fazem supor um cenário ainda mais preocupante para a área, no futuro.


A mudança mais inquietante que resulta do novo ordenamento, prende-se com a ausência de qualquer articulação entre os organismos agora criados com responsabilidades na área da salvaguarda do património, passando estes a funcionar de uma forma segmentada, afetos a diferentes tutelas, e sem qualquer possibilidade de implementar uma política coerente nesse âmbito.


Contextualizando: à data, e com responsabilidades atribuídas na conservação e restauro do património, passámos a ter a Património Cultural IP (orientado para o património cultural imóvel e património imaterial), a Museus e Monumentos de Portugal EPE (com a responsabilidade do património cultural móvel e uma lista restrita de monumentos e palácios nacionais), e as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (que têm responsabilidades no acompanhamento de ações relacionadas com o património arqueológico; e na emissão de pareceres sobre os planos, projetos, trabalhos e intervenções nas zonas de proteção dos imóveis classificados ou em vias de classificação, e respetivo acompanhamento e fiscalização (exceto nas zonas de proteção dos imóveis afetos à DGPC)).


Nos diferentes diplomas, para cada um destes, surgem definidas responsabilidades na área da conservação e restauro, é referido, no caso dos dois primeiros, a definição e aplicação de normativos, mas, em momento algum se estabelece a necessidade de articulação entre eles para que daí resulte uma abordagem integrada, e que permita responder à complementaridade que património móvel e imóvel estabelecem, tantas vezes. Acresce a este aspeto, o facto de todas estas entidades passarem a estar distribuídas por dois ministérios distintos (o Ministério da Cultura e o Ministério da Coesão Territorial), o que apenas irá contribuir para aprofundar, ainda mais, esse sentido fragmentário, constituindo um cenário que não pode deixar de ser visto como um claro retrocesso para o sector do património cultural – seja pela dispersão, seja por termos um ministério sem quaisquer competências para decidir sobre património cultural, a exercer funções de tutela nesse âmbito.


Mas se dúvidas houvesse que o novo quadro legal para a conservação e restauro não resultou de um qualquer pensamento estratégico e integrador para a área, há um outro aspeto nestes diplomas, que é disso revelador. Na alínea d) do artigo 3º, do anexo I, presente no diploma que procede à criação da Museus e Monumentos de Portugal EPE (MMP), refere-se que compete ao LJF e aos Museus, Monumentos e Palácios Nacionais a execução da política nacional de conservação e restauro do património móvel. Apesar desta responsabilidade surgir atribuída ao primeiro, verificamos, contudo, que o Laboratório se encontra excluído das reuniões que os diretores dos Museus, Monumentos e Palácios Nacionais estão obrigados a fazer para discussão dos interesses comuns (não há como a conservação não entrar nesse grupo!), ou não foi prevista qualquer articulação entre este, com o curador da coleção de arte contemporânea, que tem como missão, entre outros, desenvolver uma política de preservação e conservação para a arte contemporânea.


Para além destes aspetos, e referindo o diploma a execução de uma política nacional de conservação e restauro para o património cultural móvel, imediatamente surge a questão: e o património imóvel? Quem define e executa a política nessa área? A resposta natural seria a Património Cultural IP (PC), mas olhando para o diploma, em momento algum surge referido que caberá a este Instituto tal atribuição, ou que deva existir tal coisa para esta tipologia de património.


Em resumo: a entidade com mais competências no Estado no âmbito da conservação e restauro, está completamente desligada do que se passa nos museus, monumentos, palácios nacionais e coleção de arte contemporânea, no que diz respeito à definição de normativos e orientações, e na eventualidade de vir mesmo a ser definida uma política nacional de conservação e restauro para o património cultural móvel, o património imóvel existirá como uma realidade à parte, sem política de conservação ou, existindo uma, estruturada sem qualquer relação e participação do LJF na mesma. Alguém acredita, por isso, que nestes moldes, será possível implementar a dita política nacional de conservação e restauro, ou que é para ser levada a sério a sua referência no diploma?


Mas as incoerências não se ficam por aqui. Atente-se à alínea cc) do artigo 4º, do diploma que procede à criação da Património Cultural IP, e que estabelece as atribuições deste. Surge referido que compete à Património Cultural IP certificar a qualificação de entidades públicas ou privadas, coletivas ou individuais, que exerçam atividades na área do património cultural imóvel. Na extinta DGPC (e assumindo que os pressupostos se mantêm no atual contexto) o LJF assumia as mesmas competências, mas para o património cultural móvel e integrado. Quer isto dizer que, de acordo com a nova orgânica, passamos a ter duas entidades a certificar empresas e trabalhadores independentes que intervenham em Património Cultural. Pergunto: não faria mais sentido termos uma única entidade responsável por este processo – como acontece em outros sectores? Num mercado onde um número muitíssimo significativo de empresas atuam nas duas realidades, não teria sido desejável desonerarmos estes agentes económicos de dois processos autónomos, numa atividade caracterizada quase exclusivamente por pequenas empresas, empresários em nome individual e trabalhadores independentes? E coloca-se a mesma questão que anteriormente: e a coerência dos critérios? Como garantir que as duas entidades estabelecem uma avaliação conexa, valorizando os mesmos pressupostos e seguindo os mesmos referenciais normativos, quando, também aqui, não está prevista qualquer articulação entre elas?


Deixo para o fim uma novidade introduzida por um dos diplomas, mais concretamente pelo diploma referente à Património Cultural IP, e que muito contribuiu para acentuar o meu pessimismo e os meus receios relativamente ao futuro da preservação do património cultural. Prende-se com uma das competências atribuídas ao Conselho Diretivo do Instituto, mais concretamente com a que surge na alínea e) do artigo 7º, e que provavelmente terá passado despercebida a muita gente. Confere esta ao Conselho Diretivo a possibilidade de concessão ou delegação de tarefas inerentes ao funcionamento da instituição, a outras instituições públicas ou privadas, desde que não envolvam habilitação para a prática de atos administrativos de classificação ou de inventariação.


Com as tarefas relacionadas com a conservação e restauro fora das exceções previstas (contrariamente ao que defendeu a ARP), para além desta novidade marcar um claro passo em frente, em direção à lógica de liberalização do sector do património (e um claro afastamento dos princípios estabelecidos na Constituição Portuguesa), dado o atual contexto da área poderá vir a ter consequências catastróficas para o património cultural. Não estando ainda inscrito na lei quais as qualificações e experiência que os profissionais responsáveis pela execução de intervenções de conservação e restauro devem observar (não sendo por isso possível avançar com qualquer processo de certificação), não existe forma de assegurar ou garantir que ações de fiscalização, acompanhamento técnico, ou emissões de pareceres, venham a ser asseguradas por profissionais/ empresas com idoneidade e experiência para o desempenho dessas tarefas, nem de garantir a qualidade das intervenções, pelo cumprimento dos princípios estabelecidos pelas convenções subscritas pelo Estado português, documentos normativos ou princípios éticos definidos pela Confederação Europeia de Associações Profissionais de Conservadores-restauradores. Não só não estamos preparados para este cenário na conservação e restauro e no sector do património cultural, como antes sequer de ter sido considerado, o enfoque deveria ter sido responder primeiro à necessidade de regulação das intervenções, bem como a todo um conjunto de questões estruturantes da profissão e instituições com responsabilidades neste âmbito, que estão muito longe de estar solucionadas – e que os concursos recentes para o LJF e alguns Museus Nacionais e Monumentos, apenas respondem parcialmente.


Gostava de poder alinhar com muitas das vozes que se mostraram entusiasmadas com as mudanças que o novo modelo propõe, mas, infelizmente, apenas consigo ver mais um capítulo de um processo longo, iniciado em 2007 com a extinção do então Instituto Português da Conservação e Restauro, e que tem vindo a reduzir, cada vez mais, a conservação e restauro a um lugar acessório, muito longe da posição de centralidade que deveria assumir nas políticas patrimoniais e instituições do sector.














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