LUÍS RAPOSO
Corre por estes dias a frase “eu estava lá, quando a definição de museu foi discutida em Quioto”. E os jornais de todo o mundo retomam o tema, dizendo que esse “lá”, a assembleia geral do ICOM, constituiu um debate intenso, “profundo e saudável” – ou “uma estranha e opaca descida ao caos”, na avaliação da presidente do grupo de trabalho que esteve na origem da proposta de nova definição de museu.
Todavia, adjectivações à parte, o que ficou foi o adiamento de qualquer decisão, tomado por cerca de 70% dos votantes, sendo certo que se essa nova proposta fosse mesmo a votos teria certamente mais de 80% contra, porque vários comités se manifestaram contra o adiamento, sim, mas por quererem rejeitá-la logo ali.
O que esteve em causa em Quioto, e que tanto fez agitar os museus em todo o mundo? Bom, no essencial, uma oposição, que estou certo se irá acentuar no futuro, entre uma visão puramente instrumental e aspiracional dos museus, que no fundo os diminui pela sua assimilação a qualquer outra instituição ou projecto cultural animado por motivações e princípios de democracia social, e uma outra que, sem rejeitar tais princípios, procura fixar-se naquilo que distingue os museus, os torna únicos e por isso os engrandece na sua irredutível originalidade. A primeira perspectiva é mais própria de “activistas de todas as causas justas”; a segunda, de profissionais de museus, sendo o ICOM precisamente uma ONG dos mesmos (mais de 44 mil em todo o mundo), concebida “da base para o topo”, ou seja, detida por mais de uma centena de comissões nacionais eleitas por voto secreto, por mais de três de dezenas de comités internacionais ou de especialidade e por oito alianças regionais, entre as quais a mais representativa (48 países aderentes e mais de 80% dos membros da organização), a do ICOM Europa.
A proposta colocada à consideração da assembleia geral do ICOM resultou da acção desenvolvida nos últimos três anos por um grupo de trabalho criado e composto discricionariamente pela presidente do ICOM. Neste período, o referido grupo promoveu largas dezenas de debates em todo o mundo, com participação muito variável, tanto em termos quantitativos (dezenas ou centenas de participantes), como em termos qualitativos (amálgama entre meros “amantes” de museus e estudiosos ou profissionais dos mesmos). Pude pessoalmente participar em vários, tanto na América Latina como na Europa, e sei bem o que foram: assembleias simpáticas e vivas, no melhor dos casos, mas sem quaisquer condições para pensar seriamente o que são ou deverão ser os museus.
Recolheu também o referido grupo de trabalho 269 propostas de nova definição de museu (número que pode impressionar, mas se revela afinal modesto, tendo em conta que o universo inquirido era, potencialmente, constituído por todos os habitantes do planeta). Alinhadas anonimamente (apenas com indicação do país de origem do proponente, o que curiosamente permite perceber que na sua maioria eram europeias ou norte americanas), verificou-se que a maior parte destas propostas de definição não passava de “hinos poéticos” (uma delas, italiana, propunha simplesmente que os museus fossem descritos como “locais para destilar visões”, ponto final), atingindo em alguns casos o nível de manifestos.
Acontece que nem mesmo esta colecção bizarra foi retida na proposta de definição apresentada. O ICOM França demonstrou-o com clareza: a definição proposta reteve termos que não chegam a ser referidos sequer por 1% dos respondentes (“polifónico”, “conflitos”, “dignidade social” ou “bem-estar planetário”) e outros por menos de 5% (“desafios”, “direitos iguais”, “dignidade humana” ou “equidade global”). Ou seja, um conjunto de afirmações que vagueiam entre o meritório (quem se pode opor à defesa da “dignidade social”?) e o indecifrável (não será “equidade global” um pleonasmo em si mesmo?), quase à maneira de discurso de “miss universo”, mas sem realmente cumprir aquilo que se exige de uma definição operacional de museu.
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