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Jusqu'ici tout va bien


No ano de 1805, o embaixador francês em Lisboa movia-se ufano entre a aristocracia, a corte e a ópera, cortejando com sucesso as mulheres dos seus anfitriões e, com discreto garbo e sagacidade, tomando pulso à filigrana dos tesouros e misérias da elite militar diplomática e política portuguesa. De sua graça Andoche Junot, O Tempestade como Napoleão o alcunhou, regressou dois anos volvidos na qualidade de invasor ficando a contemplar os cerca de 70 navios que deslocavam o centro de poder do Reino de Portugal de Lisboa para o outro lado do Atlântico. Tinha 36 anos de idade e uma profícua história de vida nas campanhas militares da Europa e do Próximo Oriente.

Todavia, era este um atraso desconfortável e com repercussões determinantes para o futuro de Portugal e para o fracasso da França até ao desbaratar da 3ª Invasão. Temerário, calculista e fogoso, Andoche continuou a cortejar as aristocratas da ópera, mas desta feita mais propenso às dos seus correligionários de caserna – questões de gosto.

Uma elipse narrativa: em 1812, Junot demonstra hesitações estratégicas na Batalha de Valoutina e é destituído do comando do 2º Corpo do Grande Exército de Invasão da Rússia. Como é useiro fazer-se em países, sistemas e organizações que protegem os seus domesticados porcos do mato, foi promovido de castigo: no ano seguinte é Governador de Veneza e responsável interino das Províncias Ilíricas. E é precisamente neste cenário lampedusiano que Junot faz a mais triunfal e operática das suas aparições públicas: apresenta-se num baile completamente nu.

Louco e sem préstimo para as suas funções de Estado, é recolhido em França na casa paterna. Defenestra-se e tomba nos pátios do pai. Não morre imediatamente. Morre ao sabor do ritmo letal das repercussões dos ferimentos provocados pela queda. Tinha 41 anos, Andoche Junot, O Tempestade.

Confesso uma certa nostalgia por estes tempos do século de Garrett, Herculano e Antero. As questões de Estado Honra e Tragédia resolviam-se amiúde em duelo, guerra aberta ou suicídio. Por vezes a tríade de uma assentada. É certo que também naquele tempo havia lideranças pusilânimes, porcos em camarotes aveludados e medo do cacete. Mas pelo menos o sangue corria limpo nas ruas à vista de todos.

Obviamente que esta metáfora do estado da política cultural privada e pública da República Portuguesa eiva de um pessimismo que talvez seja só meu. Só meu? Não: «De sorte que Alexandro em vós se veja, Sem à dita de Aquiles ter enveja.» São os últimos versos dos Lusíadas e a sua derradeira palavra: inveja.

Pergunto de mim para comigo, sem nenhuma inveja nem alegria: quem se apresentará nu no próximo baile?

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