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Olhar a realidade, assumir compromissos: o papel dos museus do Sul nas mudanças do mundo rural


Alentejo. Século XXI. A construção da Barragem de Alqueva trouxe a maior revolução agrária jamais referenciada na história do Alentejo e do nosso país. A água chega a todos os recantos das planuras transtaganas e, pouco a pouco, vamos assistindo a um câmbio profundo naquelas que eram as paisagens de trigos e cevadas, girassol e melão, grão e tremoço que alternavam com um mosaico de montado, olival centenário e vinha. Aguarelas milenares marcando uma paisagem que tem as suas raízes num profundo processo de antropização cuja génese antecede a chegada das gentes de Roma.

Hoje, a Oliveira, a Nogueira, a Amendoeira em modo intensivo, substituem, de forma vitoriosa e irreversível, os campos de trigo e os cultivos de sequeiro dos Barros de Beja. Nas terras de Odemira, as estufas de plástico descaracterizam, deformam, abafam, uma das mais extraordinárias ambiências rurais do Sul da Europa. Os castanhos avermelhados das terras mineiras de Aljustrel e das parcelas do perímetro do Roxo vivem uma homogeneização espacial de duas ou três culturas intensivas que, ao mesmo tempo, não trazem qualidade à água que abastece as populações da região. Pouco a pouco, toda uma cultura histórica vê-se substituída e praticamente extinta, dando lugar a uma nova realidade económica, social e antropológica cujos resultados associados a um tremendo crime ambiental, são inimagináveis.

Há cerca de dois anos, na XXIV conferência geral do ICOM subordinada ao tema “Museus e paisagens culturais”, que se realizou entre 3 e 9 de Julho, em Milão, uma das bandeiras saídas desse encontro salientava a responsabilidade dos museus relativamente à paisagem, elemento essencial do ambiente físico, natural, social e simbólico da Humanidade. A necessidade dos museus tomarem partido numa batalha desleal em que se assiste à utilização indiscriminada de fertilizantes que contaminam solos e o ar que respiramos; à destruição de um extraordinário património arqueológico e etnográfico com testemunho material de mais de 5000 anos de antropização do território; ao desaparecimento impune de todos os elementos funcionais que serviam de apoio à sociedade rural que nos antecedeu e, como tal, ao esvaziar daqueles que eram os espaços de referência das nossas comunidades: o pego do linho, o poço da malta, a azinheira doce, as pias… tudo isso desaparece hoje de forma impune e descomprometida.

Este apelo do ICOM não é de agora, mas é um grito que parece desesperante perante a nossa insensibilidade generalizada.

Reconheço que as formas de funcionamento dos museus são na maior parte dos casos, fruto de contextos sociais e políticos em que o técnico é um mero instrumento adaptável a cada momento.

Mas se queremos que um museu seja um espaço onde as pessoas se sentem identificadas, ao mesmo tempo que se assumam como um local de curiosidade e de descoberta, como é que os nossos museus continuam a não mostrar, a não questionar, a perceber o que está à nossa volta?

Como é que uma estrutura tão importante nos processos de reconstrução, valorização e dignificação da memória, como é um Museu, não abre as suas portas à discussão e avaliação das transformações óbvias e bem visíveis das paisagens culturais e sociais de hoje, trazidas pelas “novas agriculturas e florestas” e que são determinantes para o futuro da comunidade?

Porque é que o Museu, que deveria ser uma plataforma de construção de diálogos, recusa ostensivamente um comprometimento claro e objectivo para o entendimento do presente?

Neste Sul onde o trigo e o pão, as searas douradas e as foices dos ceifeiros são só uma memória e parte telúrica da diáspora, o que maioritariamente enche plintos, expositores e painéis dos museus de carácter rural são esses objectos sem que haja uma preocupação que contextualize(m) a(s) realidade(s) que os albergaram e lhe deram funcionalidade .

Como é possível que neste mundo rural onde as especificidades que identificam a sua estrutura antropológica se alteraram tão profundamente nestes últimos 35 anos, fruto das novas realidades trazidas pelo Poder Local Democrático, essa transformação esteja completamente ausente das paredes dos nossos museus?

Num território onde a natureza social e económica das populações transformou o conceito de ruralidade numa leitura/abordagem diametralmente oposta àquela que o identificava há duas gerações atrás, porque será que dessa alteração não reconhecemos nada nas paredes dos nossos museus?

Numa região onde a estrutura política de regime, sobretudo com a dignificação do poder local no pós 25 de Abril, através da sua autonomia económica e política, se modificou de forma tão fracturante, mas onde a cultura continua a ser olhada com desdém e confundida com festividades e animaçãozinha, é nos museus que reside a possibilidade de construção de um novo discurso que faça emergir uma nova relação de dignificação e valorização dos territórios sem que isso ponha em causa a relação com os públicos, potenciais e não potenciais, do Museu.

Todos os dias desaparecem os testemunhos que nos podem trazer o discurso mais vivo e objectivo de um tempo já ausente, que foi o do mundo rural no Estado Novo e as suas estruturas de poder; as lutas pelas oito horas de trabalho, o papel da guerra colonial e a emigração como elementos estruturantes para a mecanização da nossa região. No entanto, continuamos a encher os museus rurais de cocharros, bilhas, alfaias agrícolas, foices e vestidos de chita sem questionar, sem contextualizar, sem provocar.

Uma sociedade em mudança confronta-se, mais do que qualquer outra, com a questão da heterogeneidade, diz Filomena Silvano. E gerir em simultâneo, o que resta da tradição e o que a modernidade trouxe de novo, corresponde a representar uma temporalidade complexa, por vezes aparentemente contraditória.

Mas é neste paradigma onde se conjugam a exposição do documento, a sensibilização do cidadão, a salvaguarda do património e o aprofundar do conhecimento, que entendemos e vemos o papel dos museus. E, sobretudo, o papel dos técnicos dos museus nas suas múltiplas valências técnicas e pessoais, que tanto despoletam sensibilidades como protegem e valorizam a memória da comunidade.

A construção social da memória e o processo de ressignificação dos objectos no espaço museológico é fundamental para que o turismo, enquanto fenómeno indispensável para a sobrevivência dos museus, seja entendido como referência complementar e não como referência fracturante. Mas para isso é necessário o Museu entender e assumir o seu território de acção e de intervenção. Elemento criador de processos de aprendizagem, na formação e na educação, de dignificação da memória, na sua promoção e divulgação, na transformação de olhares e potenciadora de novas visões.

 

Nota final: Tónica da comunicação “Museu: mortuarii memoriae”, realizada no 4º Encontro da Rede de Museus do Baixo Alentejo, realizado em Serpa a 22 de Março de 2019.

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