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Um dos grandes desafios da atualidade é ouvir o silêncio…


Mas, nós, quantos silêncios temos para ouvir?

Reparem que uma grande obra musical interpretada por uma grande orquestra ouve-se em silêncio.

Um grande discurso ouve-se em silêncio.

Um noticiário na rádio ouve-se em silêncio.

Em contrapartida, numa cerimónia religiosa o silêncio está organizado em momentos em que o devemos ouvir e momentos em que devemos participar, quebrando o silêncio coletivo, provocando som tão harmonioso quanto o possível.

Mas ouso afirmar que nos dias que correm ouve-se menos o silêncio. Talvez porque o silêncio tornou-se muito caro, quase vendido como produto turístico.

É o caso exemplar do Lago Bled, na Eslovénia, onde o uso do barco a remos é exclusivo, para que se ouça o silêncio do sítio. O silêncio, ali faz parte da paisagem cultural.

Aqui está um desafio!

De facto, uma paisagem humana apreende-se em silêncio. Saibamos construí-lo…

“Cada sociedade produz o seu silêncio”, como escreveu Carlos Alberto Silva num livro “Sons e silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa”, editado em 2014 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e vendido, também, nos escaparates dos supermercados em Portugal.

Cada sociedade produz o seu silêncio e eu acrescento, cada sociedade valoriza os seus silêncios.

É necessário ir de encontro ao tempo, percorrer o caminho e procurar com paciência, reconhece-lo, fragmento por fragmento, através de sinais, visíveis e invisíveis, de forma a dar contorno resistente ao que pela sua natureza está destinado a dissolver-se. O nosso olhar, assim, reabita emocionalmente e culturalmente as razões para o aparecimento das coisas, investe e completa a realidade das vivências: a metamorfose completa-se e tudo se renova de forma surpreendente.

Nunca se pode reduzir a paisagem à sua mera realidade física descrita por geógrafos, ecologistas e naturalistas.

A transformação de um país ou de uma região em paisagem por decisão da UNESCO pressupõe sempre uma metamorfose, uma interpretação de uma reinvenção, uma metafísica da realidade.

Uma paisagem é cultura antes que natureza: essa é construída pela imaginação que projeta sobre florestas, água, pedras, as próprias mitologias, aspirações, desejos e formas de lembrança.

Entre nós, especialmente neste noroeste da Península Ibérica, na nossa paisagem cultural, um dos sinais mais evidentes da importância do silêncio são os sinos das nossas igrejas.

Sino, do latim signum, é sinal de uma terra habitada. Sinal que marcava o tempo. As populações que viviam sob o ritmo do sino.

De origem oriental, usado na Índia e na China, como sinal, foi adotado pelo cristianismo. O sino é transmissor de mensagem.

Era vulgar ouvir dizer que o sino da minha aldeia define o espaço da minha terra. Quando se deixa de ouvir o sino da nossa terra, é sinal de que entramos no território dos outros”. Mesmo na cidade esta afirmação era muito usada, associando a identidade do som do sino ao território.

Era o número de toques no sino que indicava aos bombeiros em que zona da cidade era o incendio. Era o toque do sino que assinalava a festa ou o funeral.

Repare-se que a célebre obra musical de Tchaikovsky, a “abertura solene – 1812” está recheada de toques de sinos das igrejas de Moscovo.

Esta peça musical representa a exultação da alegria do povo pela libertação, neste caso a alegria da população de Moscovo quando derrotou Napoleão. A expressão da festa é salientada pelo toque dos sinos das igrejas e pelo disparar de tiros de salva de artilharia, como símbolo harmonioso da explosão de alegria.

Esta é a dimensão do toque do sino que perdendo o caráter do sagrado se afirma como elemento de comunicação. Esta é outra dimensão que nos exige outra reflexão. Por favor, reflitam sobre o que andam a fazer a alguns sinos quando os substituem por equipamentos eletrónicos. Por favor, reflitam sobre a importância de sabermos ouvir o silêncio. Por favor, reflitam…para bem do património cultural.

*Este artigo foi escrito de acordo com o Novo Acordo Ortográfico.

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