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Oportunidades e contingências do património em Portugal


Oportunidades e contingências do património em Portugal(*)

Reforçando a dimensão humanística do património cultural e natural, reforçaremos a dimensão económica deste bem.

Existem duas abordagens possíveis ao potencial do património cultural: uma, mais humanística, relacionada com a valorização cultural deste recurso e o seu contributo para uma democracia mais sólida; outra, mais métrica, decorrente da leitura do número de visitantes e do income directo e indirecto gerado.

Estes dois olhares são complementares e fundamentais para a definição de uma Política do Património Cultural com um horizonte longo – o período de dois quadros comunitários de apoio, por exemplo – à semelhança do que sucede em Espanha, Inglaterra ou França. Vejamos então as oportunidades deste conjunto imenso de infra-estruturas existente em Portugal: em 2013, cerca de 10 milhões de pessoas visitaram monumentos, museus e palácios com entrada controlada, gerando receitas directas de cerca de 42 milhões de euros. O grosso desta facturação está ancorado em equipamentos com escala ou agregados em redes, mesmo que de diferente natureza: Parques de Sintra, EGEAC, Serralves, Gulbenkian, DGPC ou Direcções Regionais de Cultura.

Podem retirar-se importantes ilações destes factos: para haver retorno sócio-económico é crucial a existência de massa crítica de oferta e uma organização enquanto produto/serviço concreto; a natureza de “rede” permite uma facturação dispersa pela totalidade da região abrangida, contornando os dilemas de territórios ditos de periferia ou de património de menor escala; é necessário considerar ainda o impacto económico que a disponibilização enquanto produto/serviço destes recursos gera no território envolvente (consulte-se, por exemplo, o Estudo de Impacto Económico de Guimarães Capital Europeia da Cultura, evento que contribuiu com 85 milhões de euros para o PIB, 30,8 milhões de euros em receitas fiscais e 2100 empregos directos, pelo menos durante um ano).

Mas continuemos nos números: destes cerca de 10 milhões de visitantes de 2013, 85% eram estrangeiros, num ano em que Portugal contabilizou cerca de 14 milhões de turistas e 8,4 milhões não sendo portugueses. Significa assim que 100% dos estrangeiros que visitaram Portugal consumiram recursos patrimoniais: esta é a dimensão do contributo directo do património para a internacionalização da economia portuguesa – aqui no formato do Turismo. Mas estaremos a aproveitar todas as oportunidades deste imenso e irrepetível recurso endógeno?

Estando o recurso/infra-estrutura já disponível (existem 23 mil monumentos e cerca de um milhar de equipamentos em Portugal), o investimento a levar a cabo é essencialmente o da activação do seu potencial económico, procedendo de forma estratégica, capacitando o país de know-how, de agentes competentes e de serviços e produtos com atractividade. Para atingir este objectivo, é inevitável congregar as vontades do sector público e privado. Comecemos pelos privados: a fileira do património é composta por players diversificados – empresas de animação turística, de mediação e consultoria cultural, de reabilitação ou de conservação e restauro, ateliers de arquitectura e de design, empresas de novas tecnologias e, claro, universidades produtoras de I&D.

Contudo, a gestão dos recursos patrimoniais permanece, na sua larguíssima maioria, um monopólio estatal e duplamente centralizado: no sector público por um lado, com muito poucos casos de parcerias de gestão com o sector privado; no organismo cúpula, por outro – o caso da DGPC, sobretudo –, com reduzida autonomia financeira em matéria de equipamentos individualizados (exemplificando, a loja, a bilhética e o sponsoring do principal museu nacional – o Museu Nacional de Arte Antiga – são geridos pelos serviços centrais do Palácio da Ajuda). Os números de 2013 ilustram muitíssimo bem esta realidade: a DGPC, detentora da maior rede de recursos com entrada controlada (23 recursos), 5 deles tendo o selo exclusivo da UNESCO, contribuiu com cerca de 20% da receita total e aproximadamente 30% do número total de visitantes registado em recursos patrimoniais.

Contabilize-se assim o custo de oportunidade pela inexistência de um universo de empresas de gestão de equipamentos, com know-how especializado na área da bilhética, da programação, da associação a marcas, do merchandising que permanece por desenvolver em Portugal, quando já em franca implantação nos restantes países europeus de referência nesta matéria.

Acresce por fim que, sendo as universidades de referência no campo das Humanidades eminentemente públicas, muitas vezes os professores acumulando ou alternando com cargos de responsáveis dos organismos da tutela da Cultura, a visão acima descrita acaba por estender-se, e com efeitos a longo prazo, à formação dos futuros profissionais. Esta visão solipsista é efectivamente a maior contingência à utilização do património cultural e natural como instrumento de desenvolvimento do país.

Ora, como os números indicam e a análise inteligente de autores como Gilles Lipovetsky e Jean Serroy elucida, o recurso patrimonial é muitíssimo atractivo per si. Para que os serviços associados a este recurso sejam mais cativantes – porque trata-se, incontornavelmente, de um recurso que precisa de mediação – é necessário desenvolver conteúdos: de diferentes formatos, para diferentes públicos, diferentes capacidades de percepção mas – de forma assumidamente inquestionável – para todos (aquilo que o National Trust, com os seus 3,5 milhões de associados, chama de estratégia “dumming down”).

Temos assim de formar, no campo das Humanidades, para o desenvolvimento de competências que permitam aos futuros profissionais conquistar o cidadão com um outro nível de conhecimentos e disponibilidade limitada de apreensão de novos dados.

Porque voltemos aos números: 85% dos 10 milhões de visitantes de monumentos, museus e palácios são estrangeiros. Significa que este imenso recurso – que é, antes de mais, dos cidadãos de Portugal –, não é reconhecido na sua importância por aqueles que são os seus primeiros proprietários.

Numa Política de Património Cultural sólida, o “chegar ao próximo”, a partilha de uma história inevitavelmente comum é a matriz de actuação, e a isso se dá o nome de Educação Patrimonial. Para cumprirmos esse desígnio, temos de partir do lugar onde quem queremos conquistar está, aplicando o mesmo raciocínio dos brilhantes serviços educativos amplamente desenvolvidos na última década em Portugal. Se nos dispomos a conquistar as crianças, porque não nos dispomos a conquistar os adultos?

Uma Política de Património Cultural integra assim a Educação Patrimonial como trave mestra da sua estratégia, ou seja, o outro, o próximo, o semelhante; e estende esta filosofia à dimensão comercial promovendo serviços e produtos impulsionados por experts em conteúdos (Humanidades) e profissionais de outras formações, criando rotas, jogos interactivos, aplicações, programação específica aliciante, programas televisivos/radiofónicos, publicações periódicas cativantes, edições de fundo, passatempos e concursos, eventos, acreditando convictamente que a matéria patrimonial deve chegar a todos; incentiva a relação umbilical entre os agentes fixados no território e os pólos universitários regionais por forma a criar uma ponte fluída entre formação/necessidade do mercado/empregabilidade e desenvolvimento regional harmonioso; uma Política, por fim, que vê nos outros três continentes onde Portugal deixou presença física (mais de 2300 monumentos e cerca de 500 sítios de origem portuguesa) uma segunda e significativa porta de exportação para o sector.

Reforçando assim a dimensão humanística do património cultural e natural, reforçaremos a dimensão económica deste bem.

Há pois um conjunto sigificativo de oportunidades para o maior e mais completo desenvolvimento deste recurso e do seu directo contributo para a consolidação económica e social do país; assim como há contigências, essencialmente de natureza humana que, com vontade e exemplos elucidativos, se ultrapassam sem grande dificuldade. Assim se queira.

(*) Artigo originalmente publicado no jornal Público a 7.10.2014.

Catarina Valença Gonçalves

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