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O diamante para além da joalharia


A abertura da rota das Índias nos alvores de Seiscentos proporcionou a chegada a Portugal, e para todos os efeitos à Europa, de quantidades inauditas de pedras preciosas que, até então, cá chegavam em modestas quantidades vindas por rota terrestre com destino primeiro a Veneza. Vários autores coevos descrevem esta nova realidade de forma muito inequívoca e, como exemplos concretos desta abundância e riqueza, ficaram-nos algumas peças de joalharia onde diamantes, rubis, safiras, pérolas e espinelas vermelhas (então designadas “balas”), juntamente com as esmeraldas vindas do Novo Mundo espanhol, lhes dão cor e valor, não raras vezes acompanhadas pelos esmaltes policromos.

O relicário do Santo Espinho (e Santo Lenho) da rainha D. Leonor (ca. 1515-1525), é disso um dos mais interessantes e ricos testemunhos, contendo, por exemplo, esmeraldas, rubis e uma pérola barroca, além de um raro diamante em talhe em ponta, lapidação de forma octaédrica muito comum e em voga na época e com a qual se identificava o próprio diamante. Esta lapidação rudimentar desenvolvida no séc. XV seguia, em contornos gerais, a forma bruta, original, da maioria dos cristais do mineral, dai porventura a escolha desta forma como sua representação.

Azulejos de padrão em ponta de diamante (1593), Igreja de São Roque, Lisboa (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa)

Sendo certo que o impacto das mudanças na disponibilidade de materiais gemológicos, em particular do diamante, se fazer sentir fundamentalmente na joalharia, facto que é facilmente demonstrado pela evolução da produção artística nesta arte decorativa, certo é que, por circunstâncias várias, também se pode admitir influência desta realidade noutras formas de expressão como aqui se tentará colocar à consideração. A utilização de representações do diamante como elemento decorativo nas artes em geral já era conhecida algum tempo antes da já referida abundância proporcionada pela abertura do caminho marítimo para a Índia. Em Lisboa, dois interessantes e raros casos, um na arquitectura e outro na ourivesaria da prata, assim o exemplificam: a Casa dos Bicos, mandada construir na década de 1520 por D. Brás de Albuquerque, onde os “bicos” que decoram a fachada não são mais do que as já aludidas pontas de diamante, tendo a casa sido inspirada no Palazzo dei Diamanti de Ferrara (Itália) projectada no séc. XV; também de finais de Quatrocentos, encontra-se no Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito-Santo Silva uma salva de pé em prata com o interior decorado com “pontas de diamante”.

Relicário do Santo Espinho (e Santo Lenho) da rainha D. Leonor (ca. 1515-1525) da autoria do Mestre João onde se encontra um raro exemplar de diamante em talhe ponta, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Foto João Pessoa © Direcção Geral do Património Cultural / Divisão de Documentação, Comunicação e Informática

Repetindo o que foi referido supra, a abundância e visibilidade destas raras e valiosas pedras a partir de Quinhentos terá sido tal que, porventura também por isso mesmo, criativos de áreas das artes também as integraram como elementos estéticos, decorativos e de comunicação nas suas obras. Um pendente devocional do séc. XVI em forma de cruz, das colecções do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, é demonstrativo disso mesmo, estando o cristal-de-rocha esculpido e polido com estes elementos decorativos diamantados. Foi, no entanto, na azulejaria que o diamante encontrou um dos mais recorrentes e repetidos palcos de expressão, sendo o revestimento interior da Igreja de São Roque um dos mais notáveis testemunhos. Datados de 1593, estes procederam, curiosamente, de Sevilha, tendo-se popularizado na produção em Portugal durante o primeiro quartel da centúria seguinte. Nestes azulejos são bem evidentes as pontas do cristal octaédrico do diamante que convivem com outros motivos maneiristas e, permitindo-se uma interpretação, com outra forma de lapidar o diamante, o talhe em mesa, que foi bastante popular na joalharia de Quinhentos e Seiscentos. Esta forma parece estar aqui representada por um quadrado rodeado com uma moldura de losangos, sugerindo a geometria da coroa (porção superior) da pedra lapidada. Atendendo ao período de atribuição destes azulejos, contemporâneo do talhe em mesa, é razoável assumir esta relação.

Casa dos Bicos, Lisboa (ca. 1523)

Um olhar mais atento e focalizado sobre as artes decorativas em geral poderá revelar outras situações onde os diamantes, e as gemas em geral, se encontram como elementos decorativos e simbólicos o que poderá constituir um bom tema de investigação para o futuro.

Cruz pendente em cristal-de-rocha, decorado na sua superfície com “pontas de diamante”, Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra. Foto João Pessoa © Direcção Geral do Património Cultural / Divisão de Documentação, Comunicação e Informática

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