Que caminhos para a produção tradicional?
Alguidares de barro para amassar o pão, panelas para cozinhar no lume de chão, cântaros para a água, alcofas de empreita para acondicionar figos secos, cestas de cana para a azeitona, alforges de linho… O que fazer hoje com estes objectos, quando os contextos sociais que os justificavam se alteraram irreversivelmente? O que fazer com as técnicas de transformação do barro, da empreita, da cana, do vime, da lã ou do linho, e com os seus detentores? Que destinatários, que contextos para o seu usufruto?
Das técnicas ancestrais às soluções actuais. Uma experiência no interior algarvio
No Algarve, o TASA - Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais – um projecto integrado da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, elaborado e executado, entre Agosto de 2010 e Agosto de 2011, por The Home Project GbR – procurou respostas para algumas destas questões. Nas palavras dos designers que deram vida ao projecto – Álbio Nascimento e Kathi Stertzig – começou-se por colocar questões simples: “Quais os problemas da produção artesanal regional? Como potenciar o mercado local através destas actividades? Como podem as artes tradicionais responder directamente à procura actual? De que forma se podem assumir como alternativa ao produto artesanal massificado? Se há inovação neste projecto, encontra-se exactamente no partir de situações simples e problemáticas da realidade local – identificadas no terreno – para através dos meios disponíveis, dar respostas concretas e diferenciadas sob a forma de actividades, produtos e serviços.” (1)
Todo o processo se desenvolveu a partir de “uma acção conjunta e articulada entre artesãos, investigadores, entidades locais, procura e oferta, concepção e comunicação – não há inovação sem colaboração.” (2) Os dois designers percorreram os caminhos do interior Algarvio, estabelecendo contacto e relação com mais de uma dezena de artesãos na procura de novas direcções para sustentabilidade e inovação da actividade artesanal na região. Foram parceiros na investigação o Museu do Trajo de São Brás de Alportel, Museu Municipal de Tavira, Centro de Estudos do Património e História do Algarve (CEPHA) e o Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela (CIIPC/CMVRSA). Juntaram-se ao projecto no sentido de conferir profundidade histórica, memória e de reflectir sobre os contextos sociais de produção e uso dos bens artesanais.
Vem este artigo a propósito da recente publicação do catálogo do projecto onde, para além da apresentação dos produtos que resultaram do intenso trabalho entre artesãos e designers, se reúnem textos das entidades envolvidas, designers, documentarista, biografias dos artesãos e ensaios dos investigadores sobre a cortiça; tradição oleira; objectos a partir de materiais vegetais, empreita e cestaria; licores e aguardentes; linho, lã e algodão; materiais cerâmicos para a construção; e objectos lúdicos em cana, numa aproximação à cultura material do Algarve, suas características e desafios para o futuro.
© Vasco Célio / Stills
Uma cultura material profundamente ligada ao território, ao aproveitamento e transformação dos recursos naturais, e ao conhecimento dos ciclos que regulam os tempos para serem colhidos/extraídos, conservados e trabalhados. O objecto surgia da necessidade e do engenho a partir das matérias disponíveis na envolvente próxima.
Entre a memória e a inovação. Algumas reflexões a partir das artes da empreita e cestaria
No Algarve, a empreita, um entrançado de palma enrolado em diversos feitios, tradicionalmente feito por mulheres, e a cestaria, resultante do entretecer da cana e da verga (de vime ou salgueiro), executada quase exclusivamente por homens, são duas das actividades artesanais mais representativas. Continuam ambas saberes-fazeres antiquíssimos e são por isso úteis para reflectirmos sobre as questões inicialmente enunciadas e que nortearam este projecto.
A empreita especialmente, por fazer uso da palmeira anã, planta autóctone, característica do Barrocal e Serra, é seguramente um dos elementos identificadores da “cultura material algarvia”. Nos diversos discursos sobre a região – memórias, descrições, corografias, monografias – do séc. XVI em diante são recorrentes referências àquela que era já no Algarve quinhentista uma indústria próspera. Em 1927, no 2º volume do Guia de Portugal, a empreita era descrita como uma interessante indústria de carácter popular, reveladora de influências mouriscas, em que se empregavam sobretudo as mulheres: “Sentadas nas esteiras sobre os calcanhares, nas casas forradas de junco ou de palma, fabricam as alcofas, a golpelha em que se transporta a alfarroba e o figo, e as alcofinhas mais pequenas, chamadas alcoviteiras” – escreve Raul Brandão. No séc. XX, quando por via dos discursos do turismo se começa a consolidar a ideia de um “Algarve típico”, da iconografia da região fazem parte mulheres entrançando longas tiras de palma. Encontramo-las em postais, registos fotográficos da vida rural ou álbuns turísticos.
A cestaria é na região uma actividade mais característica das zonas ribeirinhas da Serra de Monchique e do Vale do Guadiana, onde crescem o vime, o salgueiro e a cana. Nesta técnica, o entrançar destas matérias vegetais permite fazer os mais variados cestos, que ganham características diversas conforme a zona. É em geral um trabalho masculino, revelando o mestre o perfeito conhecimento dos materiais que usa, do momento exacto em que devem ser colhidos e dos tempos necessários para a secagem.
© The Home Project GbR
Os usos ligavam-se essencialmente aos trabalhos do campo, à pesca e à casa. Noutros tempos era comum encontrar cestos, canastras, alcofas e outras obras de palma à venda nos mercados locais e nas principais feiras da região, a que as populações acorriam para os comprar, porque deles necessitavam no seu quotidiano. Hoje a venda destes objectos é feita essencialmente em lojas ou feiras de artesanato. Como dizia José amendoeira, cesteiro, ciente das alterações no consumo e nos usos dos seus cestos “As coisas todas tinham utilidade. Agora é mais para recordação…”.
A verdade é que novos materiais, como o plástico, vieram destruir as indústrias da cestaria e da empreita. A partir dos anos 60 do séc. XX os cesteiros foram deixando de ter trabalho. Mantendo-se hoje alguns artesãos a trabalhar nestas artes, é porém questionável se podemos continuar a falar de artes e ofícios tradicionais. Na verdade, mudaram as motivações da produção e do consumo, os lugares sociais de produtores e consumidores e a relação entre ambos. Os velhos ofícios tem visto assim substituir-se, à sua antiga dimensão produtiva, novos papéis simbólicos. Estas artes procuram hoje novos consumidores, frequentemente exteriores à comunidade produtora, para quem funcionam como repositórios e sinais de “tradição” e “localidade.” (3)
Neste processo de reformulação, reinvenção, procura de novos usos, continua determinante o engenho, a criatividade e a capacidade de adaptação às necessidades, que os detentores destes saberes-fazeres já antes revelavam. Em alguns processos, como no TASA, intervêm elementos externos à comunidade – artistas plásticos, designers – propondo novas formas, como em fruteiras de verga; novas utilizações da cor, como em bolsas ou tapetes de empreita tingidas depois de terminada a peça; ou ligações entre materiais, aliás já comuns em alguns dos mesteres antigos, como agora entre a olaria e a palma. Noutros, é a criatividade popular, mantendo a técnica (empreita ou entrançados), que explora e incorpora novos materiais, como o Tetra Pak, papel de jornal ou revista, numa lógica já antiga de reaproveitamento do que está à mão.
© Vasco Célio / Stills
© The Home Project GbR
Antes ligados às necessidades partilhadas pela colectividade, saberes e técnicas orientam-se hoje para o futuro na procura de outros usos, indo ao encontro de novos desejos e explorando dimensões estécticas, de inovação e criatividade.
Na verdade, o melhor ponto de partida para o estudo dos objectos, como sugere Kubler, não será o uso mas o desejo. (4) Valioso contributo para pensarmos sobre o que produzimos e consumimos porque desejamos, e para nos libertarmos da ideia que o homem só produz aquilo de que necessita em contextos de trabalho ou domésticos, reconhecendo também, desta forma, a dimensão estruturante do simbólico, do lúdico e do lazer, nas nossas vidas.
A cana, por exemplo, ao longo de séculos transformada por pastores, trabalhadores rurais, mestres construtores, cesteiros, em objectos do universo do trabalho, mas também do lúdico (flautas, gaiolas de grilo, reco-recos…), abre-se hoje a experiências artesanais – apitos, clips de cana, caixas para guardar memórias ou bordões para caminhadas – explorando novos contextos de uso na área do lúdico e do lazer.
© Vasco Célio / Stills
Cestos, alcofas, capachos, potes, apitos… Falam-nos sobre as pessoas que os conceberam, construíram e utilizaram e sobre o meio, a paisagem onde nasceram. Essa dimensão representativa, pelas memórias, saberes e matérias que encerram, é hoje fundamental na sua procura e usufruto. São “artefactos com descendência e origem”. Mas encerram também uma dimensão criativa e a capacidade de se reinventarem, que os torna desejáveis. Objectos para usar, são hoje também para recordar, para fazer pensar, para estimular os sentidos.
Para saber mais:
TASA, Técnicas Ancestrais, Soluções Atuais, CCDR Algarve, 2012.
www.projectotasa.com
1 TASA, Técnicas Ancestrais, Soluções Atuais, CCDR Algarve, 2012, p.11. 2 IDEM, p.11. 3 vide MARQUES, Emília Margarida (1996) – “Artes e Ofícios: o gesto e a memória” in História, ano XVIII (nova série), nº 22, Julho, pp.50-57. 4 vide KUBLER, G., A Forma do Tempo, Lisboa, Vega, 1990.
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