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Elísio Summavielle - Entrevista Património Online, 2003


Mas estávamos em 2003: pois não só convencemos instituições poderosas e prestigiadas a juntarem-se ao nosso projecto, como chegámos à fala com variadíssimos responsáveis da época ou profissionais do sector. Foi o caso das 3 entrevistas que levámos a cabo durante a breve existência da Revista Património Online. Uma delas, a de Elísio Summavielle (ES), recuperamo-la aqui. Recuperamo-la porque, à data, ES era sub director-geral da DGEMN – uma realidade que nos parece distante agora –, tendo depois vindo a ser Presidente do IGESPAR que extinguiu a Direcção-Geral, Secretário de Estado da Cultura e, no presente, novamente responsável pelo sector do Património com novos “super-poderes” ao agregar todas as instituições do sector no seio da Direcção-Geral do Património Cultural.

Leia o Editorial de Catarina Valença Gonçalves para uma contextualização desta entrevista de Elísio Summavielle de 2003.

SLXLM

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Perfil

Elísio Summavielle, historiador de formação, 46 anos, é Subdirector Geral da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais desde 1996, tendo feito todo seu percurso profissional na área do património. Em 1982 trabalhou no então IPPC (Instituto Português do Património Cultural) até 1990, data em que foi requisitado pela Câmara Municipal de Lisboa (Pelouro da Cultura) para exercer as funções no gabinete do então Vereador da Cultura – Dr. João Soares – e, posteriormente, no Departamento do Património Cultural. Em 1993 e 1994, no âmbito da “Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura” foi administrador-delegado por parte do Município, sendo responsável pela área de Intervenção Urbana onde se destacou na qualidade de Comissário do projecto “Sétima Colina”. Docente convidado da Faculdade de Arquitectura de Lisboa (UTL), é autor de diversas publicações, colaborador esporádico da imprensa diária, e de algumas revistas temáticas.

Resumo

Classificando a linha de actuação da DGEMN como discreta (cerca de 100 intervenções por ano), naquilo que intitula de “trabalho invisível”, Summavielle considera o estado do património em Portugal na ordem do razoável com tendência para melhorar. A aposta forte deste ano e dos anos subsequentes da Direcção-Geral centra-se na ligação com os municípios através de um protocolo genérico a assinar entre a Associação Nacional de Municípios Portugueses e o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Habitação, “ponto de partida para acções pontuais a realizar com cada uma das autarquias.” Este projecto centra-se aliás na constatação da DGEMN da necessidade das intervenções e património serem acompanhadas de revitalização das comunidades envolvidas.

Afirmando ainda que, para a DGEMN, aquilo que pode e deve ser considerado património vai muito para além do classificado, sublinha a importância da Carta de Cracóvia em cuja redacção a DGEMN participou, considerando mesmo que a forma de actuar deste organismo chegou a antecipar o espírito inovador da referida Carta.

A falta de especialização das empresas que intervêm em património é, no seu entender, um problema que tem origem na falta de mão de obra qualificada, resultando no principal problema do desenvolvimento da conservação patrimonial em Portugal.

Reconhece a importância da contratualização da manutenção das intervenções levadas a cabo, bem como os benefícios de lançar obras de conjunto demarcando-se nestes dois aspectos da posição do IPPAR. No que diz respeito à relação com este organismo, nomeadamente no caso dos dois inventários em funcionamento, Summavielle considera a situação “caricata” e provocada pela má gestão dos recursos públicos. Rejeita a hipótese de fusão entre os dois organismos centrais com responsabilidade na área do património arquitectónico, defendendo antes a separação do normativo e do executivo, bem como a capitalização da experiência de quase 80 anos da DGEMN.

Já no caso da nova Lei do património 107/2001, aponta pontos positivos como aqueles que dizem respeito à protecção do património móvel, mas afiança que em matéria de património arquitectónico a ausência de regulamentação deixa as questões essenciais por resolver como já sucedia com a Lei 13/85. Defende contudo que dentro ou fora da Lei se deve parar com aquilo que intitula de “fúria classificadora” uma vez que a classificação por si só não é garantia de salvaguarda, podendo mesmo traduzir-se numa onerosidade desfasada para o monumento em causa.

Entrevista I - LINHAS DE ACTUAÇÃO FUTURAS Património: Numa altura de reduções orçamentais, qual é o lugar da DGEMN e quais são as suas prioridades para 2003, a curto e a médio prazo, em termos de património?

Elísio Summavielle: De facto, vivemos num período de restrições orçamentais. Costumo dizer que o trabalho mais importante que se faz no património é o “invisível”. O património não se inaugura: já tem séculos. E tem sido muito nessa linha de descrição que temos trabalhado. Fazemos uma média de 100 intervenções pequenas por ano em património arquitectónico, obras que andarão à volta de 15 / 20 mil contos, obras de conservação e manutenção: a chamada “medicina preventiva”. É um trabalho “invisível” que é muito importante para o estado geral do património português (que estará na ordem do “razoável” com tendência para melhorar...) Na década de 90, iniciou-se o Inventário do Património Arquitectónico (IPA), em 1998 instalámos as Fontes Documentais de Arquitectura no Forte de Sacavém, e está no terreno um sistema de informação geográfica, científica e técnica do património que se tem mostrado bastante eficaz como instrumento de trabalho. Também é o caso do nosso investimento nos levantamentos dos Conjuntos Urbanos e na Carta de Risco que fez com que se abrissem portas nas autarquias, permitindo-nos cruzar essa nossa informação, dar formação, e dar ferramentas de trabalho àqueles que cada vez mais estarão na primeira linha da salvaguarda do património. Isto pode ser feito sem muitos custos. É evidente que num tempo de restrições vamos investir muito nesta ligação com os municípios: entre a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e o nosso Ministério das Obras Públicas, Transportes e Habitação irá ser celebrado um protocolo genérico de cooperação que será um ponto de partida para a realização de acções pontuais, caso a caso, com cada uma das autarquias.

P: Com base no IPA?

ES: Exacto. No fundo, trata-se de dar aos municípios acesso a essas metodologias para que também eles as comecem a utilizar uma vez que, como disse anteriormente, estão cada vez mais na primeira linha da defesa dos valores arquitectónicos.

P: No caso das intervenções invisíveis que referiu há pouco, quais são os edifícios que consideram prioritários?

ES: A DGEMN já abandonou há alguns anos a ideia que o património classificado é “o” património. Há 4000 imóveis classificados e nós temos cerca de 14000 imóveis e conjuntos inventariados. Um dos apports positivos que nos tem trazido o facto da nossa tutela estar na Habitação é o estarmos mais próximos das questões relacionadas com os “Centros Históricos” e as zonas antigas. Classificam-se (por excelência decerto!...) conjuntos urbanos que, simultaneamente, estão a desertificar-se e em processo de lenta degradação. Ora, se apostamos e desenvolvemos metodologias de conhecimento e diagnóstico desses conjuntos, por forma a que, num período muito mais curto do que os tradicionais levantamentos em atelier, se possam definir prioridades para as intervenções a desenvolver, torna-se evidente que temos um instrumento importante para o processo de recuperação de todo esse património construído. As intervenções que são feitas e as actividades que desenvolvemos ano a ano são definidas através das Direcções Regionais (Norte, Centro, Sul e Lisboa). O corpo técnico que está nas Regionais tem autonomia suficiente para definir o plano de intervenções nos imóveis, com engenharias financeiras variáveis e dependentes da avaliação e critérios da casa. Esse plano é feito anualmente. O pouco dinheiro que vai havendo é distribuído pelas Regionais e prevalece normalmente a sua opção embora haja sempre coordenação e articulação entre os Serviços Centrais e os Regionais. Há uma ligação grande entre o Serviço de Inventário e as Regionais na permanente actualização dos dados do IPA, etc... Os “nossos” imóveis não serão as “jóias da Coroa”, mas são essenciais no seu papel, na sua implantação, e assim se vai mantendo o estado de saúde (razoável / bom) do restante património arquitectónico classificado. É o tal trabalho “invisível”. P: A DGEMN continua contudo a seguir o princípio de intervir primeiramente em património classificado e só depois em património não classificado, conforme vem definido na Lei Orgânica da DGEMN de 1993?

ES: Há uma subtileza na interpretação dessa Lei: no seu artigo 1º (“natureza e atribuições”) não utiliza a palavra “classificado”, referindo antes “património arquitectónico”, classificado ou não depreende-se... É evidente que como organismo do Estado e entidade executiva, há imóveis classificados que pertencem ao Estado e aos quais tem de ser dada prioridade. Mas nem todo o património classificado é forçosamente mais interessante do que o não classificado. E há património classificado que hoje em dia já nem existe, já caiu! Há pois que “reciclar” todo esse elenco mas não por nós, uma vez que isso cabe à entidade normativa – o IPPAR. A questão das prioridades é definida em função do interesse arquitectónico, artístico, do seu uso, etc... Há sempre uma série de componentes e de envolvimentos que é necessário analisar para intervir com alguma eficácia. E quando o dinheiro é pouco, o engenho tem que aguçar... Atente-se ao disposto na “Carta de Cracóvia” constatando-se que, de certo modo, antecipámos o seu espírito inovador.

P: As intervenções da DGEMN actualmente pautam-se, portanto, não pelo critério do classificado mas, sim, pelos mesmos critérios que justificam a inventariação do património no âmbito do IPA, isto é, valor artístico ou outro que os inventariadores especialistas consideram que aquele património tem?

ES: Exactamente. E hoje, mais ainda com essa componente actual, interessante, e de forte aplicação prática que é ir aos “centros históricos”, recuperando-os e revitalizando-os.

P: Pode dar-nos algum exemplo concreto das regiões em que vão apostar ou estão já a apostar nesse projecto de parceria municipal?

ES: Posso dar um exemplo recente: Portel. As muralhas do castelo estão afectas à Casa de Bragança. Há 3 ou 4 anos uma parte da muralha cedeu. Toda a muralha está encostada a um núcleo antigo (eu não gosto muito do termo “centro histórico”...) que está desertificado. Se não há uma vivência local e se essa zona não é revitalizada, se essas casas não são recuperadas (ao contrário daquilo que se fazia numa perspectiva monumentalista dos anos 40 em que se demoliam as casas e se deixava a muralha à imagem daquilo que se acreditava ser o castelo medieval de grande aparato), se não se providenciam sanitários, uma cozinha, água, luz, daqui a 10 anos haverá nova derrocada por falta de manutenção. São intervenções que são simples (claro que têm os seus custos) mas que vão garantir que, no futuro, aquela zona da muralha tenha uma atenção permanente. E mais ainda: que tenha vida! Também outros municípios estão já a colaborar connosco como Beja, Portalegre, Tavira, Silves, Vila Real de Santo António, Sintra, Óbidos, Tabuaço, etc..

P: Será também o caso do Monsaraz...

ES: É outro exemplo. Em termos pessoais, tenho alguma relutância no pólo de turismo dito “cultural” em que se transformou Monsaraz. Um turismo tipo “celofane” como costumo dizer... Se a população não está lá, e se as casas são para fim-de-semana, acabamos por encontrar os vizinhos da Av. de Roma ou de Telheiras!

P: Um dos problemas dos centros históricos é a inclusão e utilização de material desproporcionado à autenticidade desses locais como, por exemplo, as tão vistosas antenas de televisão...

ES: Penso que já há essa sensibilidade por parte da população local e das autarquias. A TV por cabo vai ser uma realidade daqui por 5 ou 10 anos em todo o lado. Mas, em termos da questão de fundo, para onde estamos a caminhar é para que se faça o ordenamento do território: houve demasiado planeamento e muito pouco ordenamento. Os Plano Directores criam áreas de expansão que dão mais-valias aos municípios permitindo-lhes investir para resolver problemas de infraestruturas. Há pois um ciclo vicioso, um paradoxo: sem construção nova não se pode recuperar o antigo mas, por outro lado, a aposta deve ser na recuperação e não na construção nova. Os nórdicos aplicam 70% do volume de negócios na área da construção civil em recuperação. Em França aplica-se 40%. Em Portugal estamos a caminho dos 10%, mas há que ter em conta que há dez anos estávamos em 1,5%, o que significa que estamos perante um sector de mercado em franca ascensão. Enquanto as mais-valias dos municípios provierem da obra nova, haverá as sucessivas e constantes revisões de PDMs a que temos vindo a assistir. Penso que, uma vez resolvidos os problemas das infraestruturas, é óbvio que haverá que inverter este ciclo, isto é, do planeamento temos de passar ao ordenamento. É um problema de paisagens, é um problema de identidade, é um problema de património. É um problema que cruza várias áreas. Temos de partir para uma atitude mais transversal da defesa e salvaguarda das paisagens e fazer de facto o ordenamento, algo que ainda não foi feito.

II - METODOLOGIA DE INTERVENÇÃO

P: Falámos de intervenções pontuais com carácter urgente: porque é que isso continua a ser uma linha mestra da actuação da DGEMN, não se definindo projectos mais concertados de intervenção como aquele que foi levado a cabo na Ribeira do Minho?

ES: Projectos como esse envolvem diversas entidades: é necessário abrir horizontes, fazer com que haja intervenções integradas, e não no “quintal” do Ministério x, y ou z. O exemplo que deu é o de intervenções integradas em ideias, circuitos. Nós temos diversas acções desse tipo em carteira, mas é necessário haver outras entidades a investir. O que me parece é que os municípios, não tanto agora mas a curto / médio prazo, irão reivindicar esse papel: lá iremos! Nós temos um quadro da situação do património inventariado em determinadas regiões que nos permite definir prioridades de intervenção: não vamos ali apenas porque caiu qualquer coisa. Estamos sempre no terreno.

P: O que diz é que se houver colaboração de outras entidades, nomeadamente no âmbito desse protocolo a celebrar com os municípios, a tendência é para que os projectos sejam muito mais integrados?

ES: Exactamente: são as câmaras que se estão a tornar cada vez mais reivindicativas nesse aspecto. A atitude centralista que caracterizou os anos 30, 40, 50, 60 e até 80 - “Nós somos os donos do património”, com um certo receio das pessoas do interior do País – essa barreira está a quebrar-se. Aquilo que se vai constituindo nesta casa como mais-valia também nos obriga a ter uma atitude diferente face às intervenções, ou seja, temos que acompanhar a História e não nos impormos à História. O património é um processo sempre em construção.

P: E quanto às empresas: como atraí-las para projectos integrados? Com instrumentos como a Lei do Mecenato?

ES: Existem alguns benefícios previstos na nova Lei do Património, mas temos uma Lei do Mecenato que talvez necessite de ser revista. No entanto, não é o mecenato que vai resolver o problema da conservação e da salvaguarda do património. Do meu ponto de vista, a questão é o grau de especialização das empresas que intervêm. No passado, tal como hoje, as empresas actuantes nesta área estão ao nível das PME. Pouco a pouco, apareceram alguns sinais de desenvolvimento: apareceram mais empresas a intervir, surgiu o GECoRPA – um grémio onde as empresas falam umas com as outras e definem linhas de intervenção no património com as entidades, com as universidades. Mas o problema que persiste é o da reduzida capacidade de antecipação das empresas para responder a um mercado em crescimento e cada vez mais exigente. Esse objectivo é atingido justamente através da formação dos quadros das empresas por forma a que a qualidade das intervenções não seja prejudicada pela quantidade cada vez maior das ditas intervenções. Aliás o mesmo se passa com a área do património integrado: havia um Instituto José de Figueiredo (IJF) que dava uma formação; essa formação passou agora para as universidades... mas esses recém-licenciados não são por si só a resposta ao mercado. Faltam quadros intermédios, mestres, mão de obra altamente qualificada. E sem uma resposta eficaz a tais necessidades, com as leis do Mercado Único, podemos correr o risco de não apanhar um comboio em franco desenvolvimento na Europa... Se há mercado, se há trabalho, se há profissões que são necessárias e com potencialidades de crescimento, é nesta área da conservação e do restauro, tanto na área da construção civil, como na área da conservação do património artístico. P: A ideia é ser a própria DGEMN a fornecer cada vez mais essa formação?

ES: Damos estágios e formação a quadros recém-licenciados, mas a teorização cabe às escolas e o “background” às empresas. É um mercado que deve apontar não só para formações superiores, mas também para ofícios e “mesteres” em contacto directo com a obra.

P: Mas não há o risco da perda da qualidade formativa devido a essa proliferação de entidades formadoras? A DGEMN não poderia aí desempenhar um papel essencial, um papel orientador, naquilo a que o Prof. Lamas chamava de “a Escola da DGEMN”?

ES: Temos orgulho nessa “Escola da DGEMN”! Temos quadros excelentes, de grande valia, mas estamos limitados pelas restrições da administração pública no que respeita à renovação de quadros. Com os recursos humanos de que dispomos, conseguimos encontrar os “ovos” certos e à justa para fazer as “omoletes”... Por outro lado, perante a cada vez maior evidência de que um mundo global vai fazendo emergir as diferenças, as micro-culturas, em que o “pensar global, agir local” se vai tornando cada vez mais uma realidade, haverá que transmitir esse saber a quem vai estando cada vez mais na primeira linha – as autarquias. Outro investimento nosso é na investigação aplicada: temos diversos protocolos e parcerias para desenvolver ferramentas de trabalho. Mas nem sempre lhes é dada a atenção devida. O exemplo do projecto COSISMO é evidente: teria muita utilidade aplicá-lo na prática para a salvaguarda, por exemplo, do município de Lisboa, e teria sido esse o contributo da DGEMN – o do fornecimento de ferramentas de trabalho para a salvaguarda de uma cidade antiga.

P: A DGEMN inovou de facto muitíssimo durante a década de 90 na criação dessas ferramentas de trabalho – a Carta de Risco, o IPA, etc... Mas na área da intervenção propriamente dita, as coisas parecem ter ficado mais ou menos na mesma, não se tendo registado uma alteração do modus operandi da DGEMN. Veja-se o caso da credenciação: até que ponto a DGEMN, sendo a instituição mais antiga no terreno, não poderia ter acelerado esse processo? Ou no caso da manutenção: porque é que no caderno de encargos, ao longo de todos estes anos, nunca foi incluída a obrigatoriedade da manutenção por parte da empresa responsável pela intervenção levada a cabo?

ES: A sua constatação parece-me injusta. Passámos claramente do restauro à conservação preventiva! No caso da credenciação, na área das obras públicas, isso está determinado na regulamentação dos alvarás. Na área do património integrado, o Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR) faz credenciação.

P: Ainda não faz.

ES: Mas está em vias. Sublinho que o que me parece necessário é que haja empresas de qualidade. Há que investir em formação e aí podemos dar algum contributo. Quanto à questão da manutenção, posso dizer que na nossa componente relativa a “edifícios” (cada vez mais cruzada com a componente relativa a “monumentos”) fazemos acções de conservação e recuperação para novas funções. Quando construímos, procuramos dar à entidade que pediu a obra uma espécie de “manual de procedimentos” de manutenção. Há uma mentalidade instalada que entende que ainda devemos ser nós a mudar a lâmpada que está fundida... é preciso quebrar um pouco esta herança dos anos 40 e criar uma mentalidade de auto-sustentação. Quer quando se trata de edifícios novos, quer quando se trata de manter património.

P: Mas como é que no caso de uma intervenção em património integrado, que exige um grau de especialização elevado, essa manutenção na prática pode funcionar?

ES: Estamos a elaborar, e está praticamente concluído, uma espécie de manual interno de exaustiva identificação de patologias em património arquitectónico e artístico, que muito poderá ajudar os técnicos. Este documento foi elaborado com a “prata da casa”, e consta de descritivos de trabalhos comuns a todas as questões de diagnóstico e terapia relativas ao nosso universo disciplinar. Será publicado em CD-rom, certamente útil às empresas e ao público em geral. P: Continuamos todavia ao nível da intervenção e não ao nível da manutenção que, só se houver uma obrigatoriedade ao nível do caderno de encargos, poderá estar garantida, sendo certamente muito mais barato prever essa situação à partida do que, três anos passados, ter de promover uma nova intervenção ou fazer deslocar os próprios técnicos da DGEMN – quando os há – ao local.

ES: Já há empresas em Espanha que fazem exclusivamente manutenção de intervenções em património, na área da construção. Em Portugal ainda não apareceu nada igual mas irá aparecer com certeza. Na conservação e restauro do património artístico, essa manutenção é de facto mais complexa, porque quem fez a intervenção é em princípio quem deve acautelar a manutenção. Esta não pode ser entregue a outra empresa devido aos diferentes critérios, sensibilidades, e metodologia de actuação de cada empresa.

P: Está prevista alguma iniciativa por parte da DGEMN na área da sensibilização do património, nomeadamente, para o público infantil?

ES: Desenvolvemos algumas acções muito pontuais. Penso que este protocolo com a ANMP vai permitir desenvolver esse aspecto: sugerir percursos com base no IPA, colaborar na sinalética, etc. De facto, a sinalética como está hoje no nosso País não é operacional: na auto-estrada vê-se sinalizado o Mosteiro da Batalha ou o Castelo de Pombal mas assim que saímos da via, nunca mais se vê nada! Esse trabalho de divulgação tem de ser feito. Fizemo-lo no projecto das “Aldeias Históricas”. E também estamos a desenvolver acções com crianças, com a utilização do IPA no Forte de Sacavém.

P: Esse trabalho de divulgação, bem como o trabalho de revitalização dos centros históricos, compete ao Gabinete de Salvaguarda e Revitalização do Arqtº. Vítor Mestre?

ES: Não propriamente. Em 1990 havia cerca de 600 funcionários na DGEMN, neste momento há cerca de 300. Esta redução é complicada, para mais dispondo de corpo técnico em maior número que corpo administrativo, ao contrário do que sucede na administração pública de uma forma geral. E só entrosando a casa, e mantendo o espírito de corpo que sempre nos distinguiu, é que conseguimos atingir com sucesso os objectivos a que nos propomos. A divulgação do nosso trabalho compete à nossa Direcção de Serviços de Inventário e Divulgação. O Gabinete de Salvaguarda e Revitalização tem por missão apoiar os serviços, como que um “pivot” entre as direcções regionais, levantando situações, diagnosticando na primeira linha, a fim que se possam desencadear de forma sustentada as acções de intervenção nos monumentos a cargo das direcções regionais.

P: Ainda sobre as intervenções, um outro aspecto para além da credenciação, da manutenção e do trabalhar em projecto integrado, é o das empresas em projecto: com o objectivo de facilitar a intervenção em património, porque não estabelecer parcerias com as empresas, apontando um conjunto de património com determinadas características e lançá-las em bloco a concurso?

ES: Eu acho que é necessário. E mais económico certamente. Isso já é feito pontualmente mas a ideia é que isso venha a ser mais corrente. E quanto mais empresas houver a actuar, melhor, porque aumenta a competitividade e baixa os preços. Mas sempre cumprindo os dispositivos legais em vigor. Naturalmente que para isso é necessário ter uma melhor organização e qualificação empresariais.

P: Há algum projecto para intervir em imóveis portugueses no estrangeiro?

ES: No Brasil temos tido uma intervenção muito profícua, quer na divulgação do nosso sistema de informação técnica e cientifica, quer no IPA, quer nas metodologias de intervenção. Já há a adopção do nosso sistema por parte de autarquias brasileiras. Não estamos a intervir directamente, em obra, mas estamos a intervir a montante desenvolvendo com eles essa metodologia. Fizemos um levantamento da Cidade Velha de Cabo Verde em um mês de trabalho de uma equipa deslocada (uma semana no local, três semanas em gabinete) e também nas cidades do Sobral, no Ceará, e de Santana do Parnaíba, em S. Paulo. A nossa ideia é alargar o IPA ao inventário da expressão portuguesa da arquitectura no mundo.

P: É um projecto para concretizar a curto prazo?

ES: A médio / longo prazo. Não é muito simples do ponto de vista operativo dada a complexidade dos circuitos administrativos e diplomáticos. Este ano vamos continuar com o Brasil e com Cabo Verde.

III - DGEMN vs IPPAR

P: Como está a referir-se ao Inventário (IPA), fala-se muito das divergências entre o IPPAR e a DGEMN. No caso do IPA – que a DGEMN leva a cabo desde a década de 90, tendo sido pioneira nesse aspecto – é evidente a duplicação de recursos e a sobreposição de trabalhos, uma vez que o IPPAR, nos últimos anos, lançou um inventário no terreno maioritariamente dedicado a património classificado (o que não é o caso da DGEMN), havendo forçosamente sobreposição de fichas e não sendo a metodologia do inventário idêntica. No caso do protocolo com a ANMP, uma vez que vão trabalhar com base no IPA, como é que funcionaria a padronização posterior da informação?

ES: A palavra “inventário” é muito elástica...Posso contudo afirmar seguramente que nós temos “o” inventário, como base e sistema de informação técnica e científica, imprescindível ao nosso (e a qualquer outro) trabalho de intervenção em património. Sem conhecer o objecto, a história da sua permanência no tempo, não podemos intervir correctamente na sua conservação. Registos e bases de dados há muitos, como é natural e legítimo que aconteça. A questão está em saber se funcionam ou não funcionam. E aqui posso afirmar com toda a segurança que o nosso sistema funciona muitíssimo bem, tal como foi concebido para os fins de serviço público a que se destina. A ponto de uma entidade como o ICCROM nos ter desafiado para o introduzir nos conteúdos programáticos das suas acções de formação para especialistas, em Roma, no próximo Outono.

P: Mas no caso do IPA, numa óptica de gestão de recursos, se é compreensível que organismos de âmbito local levem a cabo o seu inventário e que posteriormente sejam integrados numa padronização, ao nível de organismos centrais é mais difícil perceber como é que uma equipa da DGEMN vai a determinado edifício fazer o inventário desse imóvel e uma semana mais tarde vai uma outra equipa do IPPAR.

ES: Ou vai outra equipa copiar a nossa ficha! São situações caricatas que provêm às vezes da má gestão dos recursos disponíveis...

P: Sobretudo quando ainda não há um inventário nacional...

ES: Mas olhe que sim... pelo menos relativo ao património arquitectónico! Não por certo no sentido que lhe deu André Malraux nos anos 60, de todo inexequível e inoperativo nos dias de hoje. Repare que andamos nisto desde os anos 30, quando começámos a publicar os preciosíssimos “Boletins”, já aí em antecipação ao que se passava no exterior.

P: Em termos de eficácia, não vê qualquer interesse na fusão da DGEMN e do IPPAR?

ES: Não, não vejo porque o normativo e o executivo devem andar separados. E também por uma questão de operacionalidade: esta casa, em 72 anos, teve apenas 4 Directores-Gerais! Quando há casas que tiveram 72 Directores-Gerais em 4 anos... como é que se consolidam equipas, como é que as coisas se desenvolvem? Aparentemente, para uma pessoa que está de fora, pode parecer óbvia a fusão, mas seria uma asneira. As coisas assim estão bem e o salto que a DGEMN deu nos últimos anos deve-se muito a estar integrada num enquadramento diferente, mais operativo, mais técnico.

P: Portanto, acha que não há conflitualidade entre um organismo e outro e que neste momento é o melhor sistema para a intervenção no património português?

ES: Nós nunca estamos contentes. Gostávamos de ter acesso aos fundos comunitários, ao POC, gostávamos de ter muito mais recursos do que aqueles que temos, mas temos de trabalhar com aquilo que nos dão! Se estamos convictos que estamos a fazer um trabalho positivo, com resultados a médio / longo prazo, então, como alguém dizia, “deixem-nos trabalhar!” Era talvez importante que se estabelecessem mais laços, mais troca de informação, que não houvesse tanto autismo e sim mais bom senso. Nós existimos, temos mais-valias em determinadas áreas, técnicas essencialmente, mas o que é certo é que vamos sendo cada vez mais solicitados. E já não é só a pedirem-nos dinheiro, é a pedirem-nos apoio técnico. O património não se recupera com subsídios e está provado que o dinheiro é o seu pior inimigo. A falta de dinheiro não é determinante porque nos obriga a ir por outras vias, congregando vontades.

P: Qual é a sua opinião sobre a nova Lei do Património 107/2001?

ES: A título pessoal direi que a nova Lei do Património não adiantou muito em relação à Lei 13/85. Na ocasião da discussão, eu manifestei a minha opinião, nomeadamente num artigo no Expresso, defendendo que era melhor regulamentar a Lei 13/85 que era uma Lei muito coerente, e adaptá-la à nova realidade. A primeira proposta de nova Lei que foi apresentada no Parlamento chumbou e ainda bem. Esta nova Lei que foi aprovada parece-me ter coisas muito positivas na área dos museus, do património móvel, na área do IPM; já na área do imóvel, necessita de ser regulamentada: mantém o status quo, produz algumas noções importantes de conjunto, de hierarquização do património (mas na prática não sei como se traduzirá esta nova classificação...). Contudo, deixou por resolver as questões do grosso do património imóvel, tal como estavam por resolver com a Lei 13/85. Tem boas intenções mas falta ser regulamentada. Estamos disponíveis para esse trabalho fundamental: um Imóvel de Interesse Público que tem uma zona de protecção (ZP) de 50mts feita com compasso é um absurdo! Por vezes, até é um ónus para o próprio edifício se não for verificada a melhor aplicação efectiva dessa ZP no terreno e introduzida uma zona especial de protecção. Há muito por fazer ainda no campo normativo. Na Suécia, já não há classificado: há ordenamento. Quando se quer mexer nalguma coisa desclassifica-se, porque é tudo entendido como classificado. É esse aliás o espírito da Carta de Cracóvia 2000 e, cada vez mais, a tendência será essa: pensar em tratar e potenciar o que existe, e parar esta fúria de classificações, porque a classificação por si só não é a garantia de salvaguarda... por vezes até é perversa nesse aspecto!

P: Por último, como vê o surgimento de uma Revista como a Património online não só por ser uma revista sobre património cultural dedicada ao público generalista e especializado, mas também por ser uma revista em suporte electrónico?

ES: Eu vejo com muito optimismo e dou-vos os parabéns pela coragem e pelo empenho! Apelo para que recolham o máximo de informação no terreno, que vão à regiões, aos projectos e que deixem as lucubrações teóricas para outros... Este é apenas o princípio de uma relação entre a vossa Revista e a DGEMN e estamos sempre disponíveis para colaborar no futuro.

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