Um regresso às ilhas. Desta feita, não só à ilha-dos-museus. Uma associação particularmente feliz ao fazer de uma ilha como a de Porto Santo um centro disseminador de democracia cultural, sem fronteiras de espécie alguma (ainda que haja barreiras a ultrapassar), um território rodeado de cidadania cultural por todos os lados, "transformar a periferia insular num centro de reflexão e de irradiação de políticas culturais para a Europa".
Estou a referir-me em concreto, como já terão percebido os mais atentos, à Carta do Porto Santo. Um conjunto de princípios orientadores e de recomendações, que se espera que seja muito mais do que um manancial de intenções. Desejo que assim seja, com efeitos práticos. Que os responsáveis políticos europeus, e também todos os cidadãos naturalmente, encarem o papel do sector cultural como fundamental no aprofundamento da democracia, que não é um dado adquirido e deve ser valorizada. A via da democracia cultural é essencial para esse processo e a vertente cultural do desenvolvimento sustentável, em articulação com a social, a ambiental e a económica, não pode ficar esquecida, sob pena de o amputarmos ou o ferirmos de morte.
Sob a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, com organização do Plano Nacional das Artes (para quando uma iniciativa similar focada no Património Cultural?) em parceria com outras entidades, teve lugar na ilha de Porto Santo a conferência “Da democratização à democracia cultural: repensar instituições e práticas”, nos dias 27 e 28 de abril do corrente ano. Daqui surgiu, após um processo de pensamento colaborativo mais abrangente, o referido documento, que merece ser amplamente divulgado e assimilado pelos Estados, pelas comunidades, por todos. A Carta de Porto Santo visa ser “um farol para orientar as políticas, os discursos e as práticas culturais e educativas, contribuindo para uma Europa mais plural, inclusiva e segura.”
Distingue, e bem, democratização da cultura de democracia cultural, e que a segunda é uma evolução face a algumas falhas da primeira, nomeadamente uma hierarquização dentro do universo cultural e o tratamento dos cidadãos, basicamente, como consumidores, sendo excluídos da sua função de agentes culturais. A propósito de democracia cultural, pode ler-se “A vontade de preservação da diversidade cultural e de proteção dos direitos culturais afirma-se como uma alternativa à globalização económica e cultural. Implica a valorização de culturas e públicos distintos e reconhece o direito de emancipação e empoderamento dos cidadãos como sujeitos culturais ativos: com a possibilidade de participarem e decidirem a vida cultural das comunidades.”
Visão mais abrangente, mais partilhada, mais humanista também, que contribui para a consagração da diversidade enquanto riqueza, das complementaridades como meios inclusivos, da responsabilização, também consciencialização cívica e cultural, como fulcral para a Liberdade enquanto valor maior. Encontrará, certamente, na Convenção de Faro (relativa ao valor do Património Cultural para a sociedade) uma aliada com todo o sentido.
É preciso que as instituições sejam mais comunidade e que as comunidades sejam mais participativas, não sendo isso um exclusivo de instituições com responsabilidades específicas e, eventualmente, acrescidas. Para uma democracia cultural plena será necessário “transformar as «ins-tituições» em «ex-tituições», lugares abertos e de relação, em saída de si; e as audiências em protagonistas com voz, e não meros figurantes.”, refere com muito interesse e de maneira curiosa o documento.
A rede escolar tem um papel relevante nesse percurso, nomeadamente ao nível programático e pedagógico, toda a comunidade educativa, bem como a educação em geral (formal, não-formal, informal) deve assumir a sua missão cultural, assim como as instituições eminentemente culturais, como os museus ou os teatros por exemplo, devem encarar e encarnar o seu papel educacional, quer por via da sua programação diversa, quer através de serviços educativos e de mediação cultural actuantes. Uma intersecção essencial no caminho da democracia cultural, para a qual devem contribuir os meios digitais em expansão, acompanhados por uma aposta na capacitação mais generalizada, e consequentemente uma utilização mais profícua dessas ferramentas.
Se o sector cultural precisa, entre outras coisas, de instituições culturais fortes, a democracia cultural, na qual estas se inserem, precisa de comunidades com cidadãos participativos, que reconheçam a sua quota-parte de responsabilidade enquanto agentes culturais que todos, num certo sentido, devemos ser. Formação ao longo da vida, sentido cívico, de partilha e de pertença, desde logo enquanto habitantes de uma ilha-farol chamada Democracia Cultural.
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