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Tempos de máscaras…


Luís Raposo*


Entramos em 2021 com o forte desejo de regresso “à normalidade”. E talvez nunca em nossas vidas “normalidade” tenha querido dizer tanto e tão pouco ao mesmo tempo: simplesmente viver sem máscaras, sem constrangimentos às liberdades mais básicas de circulação, de reunião, de mero convívio social.


Houve tempos em que as mesmas sensações existiram e é bom que os recordemos. Uns resultaram de crises sanitárias idênticas: a chamada “pneumónica”, ou “gripe espanhola”, por exemplo, entre 1918 e 1920, que para além das largas dezenas de milhares de mortos imediatos deixou tuberculosos muitos mais, sobretudo pobres que foram morrendo depois ou se arrastaram com a doença durante décadas, até falecerem.


Mas outros tempos de máscaras tiveram causas que poderíamos, e deveríamos, melhor prevenir e está em nossa mão evitar.


Em finais dos anos 20 do século passado, mais exactamente em 1928, o ardina do “Sempre Fixe” foi obrigado a usar sapatos, porque à Ditadura recentemente imposta, e dita “Nacional” nesse ano (deixando pudicamente de se auto-designar “Militar”), parecia mal expor a verdade dos pés-descalços. Na primeira página, este semanário humorístico criado somente duas semanas antes do Golpe do 28 de Maio de 1926 e que tinha como principal ilustrador Francisco Valença, fez caricatura mordaz, dizendo “levantai hoje de novo O esplendor dos sapateiros”.


Desde dois anos antes Valença vinha insistentemente clamando contra as máscaras impostas pela a censura. Representava-a amiúde como lápis ou tesoura, colocava rolhas na boca dos personagens, invectivava a nova Lei de Imprensa (“depois da censura, o facalhão !”) e desabafava corrosivo que “na impossibilidade de escrevermos e desenharmos no ‘Diário do Governo’, teremos de transformar o ‘Sempre Fixe’ em jornal de modas”.


Em original que pude adquirir e aqui reproduzo, Valença representa-se a si mesmo e mais três dos principais vultos do “publicismo” com máscaras, dando corpo a um suposto “Diário Livre”, que de facto evoca a série de “Figuras de barro e figurões de gesso” que ele ilustrou e os companheiros de caricatura escreveram num dos principais, mais combativos e mais radicais jornais da República, ocupado logo durante o Golpe do 28 de Maio por forças militares e fechado, para só vir depois a reabrir sob forte controlo censório. Tratava-se de “O Mundo”, fundado em 1900 por França Borges, com o apoio do comerciante Francisco Grandela e em cuja redacção chegou a pontificar Afonso Costa, jornal que depois de reaberto veio novamente a ser fechado em 1927, quando a 8 de Fevereiro fazer manchete de apoio à tentativa de golpe republicano do dia anterior, dizendo: “Republicanos: Às Armas!/ A Revolução em marcha/ Abaixo a Ditadura”. Note-se que foi por estes nefandos dias de Fevereiro de 1927 que, entre muitas outras perseguições, proibições e sevícias (encerramento da CGT, ilegalização e perseguição dos dirigentes do PCP, etc.) foram também demitidos Jaime Cortesão, Raul Proença e Aquilino Ribeiro dos seus lugares na Biblioteca Nacional. Regressou “O Mundo” apenas por um dia, um ano depois, para manter o título (gritava então: “Viva a República”, explicando que “O Mundo no cumprimento de uma obrigação que a lei impõe reaparece hoje passado um ano de silêncio, para desaparecer novamente, não se sabe por quanto tempo”), e acabou em 1929 por ser extinto pela aquisição por parte do grupo que fundou o “Diário da Manhã”.



Os outros companheiros de Valença nesta caricatura singular em defesa da causa da liberdade de expressão são José do Vale, empregado comercial preso várias vezes durante o Regime monárquico e conhecido defensor do ideal republicano e da classe operária, que teve larguíssima actividade nos jornais, chegou durante a República a ser relator da Câmara dos Deputados e aqui surge com um bastão de comando e um título de chefe de redacção. Alberto Tota, solicitador e publicista, secretário de vários ministros e governadores civis, vereador da Câmara Municipal de Sintra e com grande envolvimento na zona de Colares, antigo director dos Hospitais Civis de Lisboa, muito activo na escrita em jornais republicanos, mas de todos o único que conseguiu (ou quis…) continuar na política até muito tarde, “adaptando-se” à Ordem Nova. E Carlos Simões, publicista e funcionário público (conservador da biblioteca do Instituto Superior de Agronomia), que escreveu peças de teatro (em colaboração com André Brum), outros livros (entre eles, Saldo de Contas, com numerosas caricaturas de Francisco Valença) e publicou vasta obra sobretudo no domínio da Agronomia.


Tudo neste retrato é exemplar. O tema em si mesmo, claro. Mas também a junção destes quatro personagens, que vão do empregado comercial, combatente republicano radical (José do Vale), até ao solicitador que soube depois acomodar-se (Alberto Tota). E vão destes dois, com profissões não dependentes do Governo, até aos outros dois, funcionários públicos como garantia do seu sustento de base, e em ambos os casos com funções criativas, Simões no domínio da investigação agronómica, Valença no da ilustração arqueológica.


Brincando, brincando sempre, aqui com as funções e os tiques pessoais de cada um deles e sobretudo com a demarcação que as “Figuras de bronze”, ou seja muitos espíritos conservadores, incluindo não poucos artistas do cinzel e do pincel, faziam das “Figuras de gesso”, os humoristas dos jornais, assimilando tal disputa a uma “confusão de narizes”, Valença não deixava, como sempre, de apontar mais longe: todos com máscaras na face, mostravam-se assim impedidos de dizerem o que lhes ia na alma.


E de facto era um tempo em que máscaras pesadas se abatiam sobre todos e desde logo sobre aqueles que se expressavam através do velho aforisma latino que diz “rindo, castiga-se mais”. Sabendo disso, desenhadores ou plumitivos, quase todos tinham também profissões “sólidas” de retaguarda. Valença, com se sabe, era desde há muito (1920), funcionário público no Museu Etnológico Português, onde fez longa carreira, até se reformar aos setenta anos (1952), por ter atingido o limite de idade (viria a falecer uma década depois). João Saavedra Machado (Subsídios para a História do Museu Etnológico do Doutor Leite de Vasconcelos, p. 52-53), refere-se com algum detalhe ao currículo de ilustrador e elogia quase encomiasticamente o seu trabalho no Museu, de que resultaram “sete valiosos e volumosos álbuns (dois de Etnografia e cinco de Arqueologia)", não esquecendo de assinalar que colaborou também em muitos trabalhos de campo, sobretudo no tempo da direcção de Manuel Heleno.


Ora, pode bem imaginar-se como estes períodos no campo deveriam ser penosos para Valença, pelo tempo que lhe retiravam ao trabalho de ilustrador, que na época (entre os anos de 1930 e os de 1950) passava nomeadamente e pelas funções de director criativo do “Sempre Fixe”, onde praticamente todas as semanas assegurava a caricatura de primeira página, além de outras. Compreende-se muito bem, pois, o significado amargurado de outra caricatura de que pude adquirir o original e foi publicada naquele semanário humorístico em 30 de Junho de 1938. Intitulada por si próprio (como era costume e aqui se documenta pelo texto manuscrito de seu punho) “Nas garras do homem pré-histórico”, Valença representa-se a fugir, com medo do dito “homem pré-histórico”, que o tenta agarrar de cima de uma anta. Espavorido, deixa cair desenhos, plantas e instrumentos de trabalho. Na legenda, também por si manuscrita, o troglodita diz: “Venha cá, não fuja. Agora vai desenhar antas no Alentejo em vez de páginas no ‘S.F.’ E olhe que à falta de tesoura de aço, posso cortar-lhas com este machado de pedra.”



Era assim a vida de quem era obrigado a usar máscara e a ter duas vidas em paralelo: a da actividade criativa e o trabalho de retaguarda, que idealmente seria confinado dentro de horários e rotinas monótonas. Era e sempre foi assim até 1974 (veja-se, na fase final do Regime, o caso de Carlos Paredes, apenas para citar um). Vida algo contraditória e pacata ao mesmo tempo. Existe algo de ambivalente no afobamento do desenhador e na admoestação do homem pré-histórico, em quem poderíamos vislumbrar, por detrás, a figura certamente austera do director do museu na altura, Manuel Heleno. Noutras caricaturas mais conhecidas, Valença representava Heleno com traços quase panegíricos e em privado enviava-lhes extremosos cartões de Boas Festas. Os que nunca realmente viveram a vida em ambientes de chumbo, sendo imberbes mesmo em estado etariamente adulto, dirão que temos aqui um caso típico de subserviência, de uma cordialidade viscosa que se diz caracterizar o modo de vida português, sobretudo em ambiente burguês urbano. Quem assim pensa, ofende o ofício de historiador, porque não consegue ver mais do que as suas lentes fumadas permitem alcançar. O que se passava era que os valenças e helenos da vida sob ditadura não somente se toleravam, como podiam facilmente admirar-se até proteger-se mutuamente. E o caso em concreto é especialmente elucidativo disso mesmo.


Manuel Heleno, admirador de Salazar, aceitava e até tirava partido da postura de criador livre de Valença, dos seus gritos contra a censura – e dava-lhe trabalho estável que o protegia até certo ponto dos esbirros do Regime. Valença, acolhia-se naquele regaço protector, sabendo que isso lhe permitia ter uma “segunda vida”. Na intersecção destes amparos, ambos desenvolviam cumplicidades que estavam para além da agitação das vagas da política e dos seus agentes, mesmo dos mais poderosos. Heleno prova-o eloquentemente: ele era acima de tudo o professor universitário e sucessor de Leite de Vasconcelos no Museu de Belém – e não hesitava em enfrentar quem quer que fosse em defesa de ambos, Universidade e Museu. Declinou por duas vezes convite do ditador para ser ministro da Educação (afirmando em família que o admirava, mas dele não queria ser criado) e ainda em 1958 recusou descer até ao passeio, à saída do carro de Américo Thomás (que aí foi cumprimentado por D. Fernando de Almeida), esperando o recém-“eleito” Chefe de Estado (nunca umas aspas poderiam serão tão bem aplicadas, porque falamos das “eleições” em que quem realmente ganhou foi Humberto Delgado) no alto da escadaria (o seu próprio território e munus), quando o mesmo foi presidir à abertura do 1º Congresso Nacional de Arqueologia, o primeiro congresso que teve lugar na nova, e actual, Faculdade de Letras de Lisboa.


Francisco Valença, pelo seu lado, era oposicionista, sim, mas do tipo “português suave”, como afinal a generalidade da pequena burguesia urbana não afecta ao Regime. Expunha-se até aos limites, denunciava, vivia frequentemente a contar os tostões, enfrentava dissabores como os de ver censuradas as suas caricaturas ou até o encerramento de jornais em que colaborava… mas fazia tudo isto dentro dos limites que lhe permitiam ter vida social fora das grades. E, se necessário, como sucedeu a partir de finais dos anos de 1920, com a maior repressão do Regime, sabia “moderar-se”, ou mesmo deixar cair temas mais incómodos (desde logo o da denúncia veemente da censura), optando mais por tratar aspectos da vida quotidiana, da sociedade e da cultura, investindo-se da condição de “comentador dos factos que os seus olhos presenciavam”, como se diz no catálogo de exposição em sua homenagem que a Câmara Municipal de Lisboa promoveu menos de um anos antes do seu falecimento.


Fazendo isto, Valença mantinha todavia em si a chama da denúncia dos males sociais. E quando percebia existir terreno sólido, aí estava ele na crítica a personalidades ou projectos do Estado Novo. Inclui-se neste quadro a resposta entusiasta que deu aos reptos que “secretamente” lhe lançava o tal austero e exigente director para que no “Sempre Fixe” não deixasse de defender o Museu, como quando, já reformado há mais de três anos, colocou em primeira página as mais emblemáticas peças a dizerem que não queriam sair de Belém, para dar lugar ao projecto do Estado Novo de dedicar todo o espaço a Museu de Marinha, com a narrativa epopeica dos Descobrimentos.


E foi assim a sua “vida dupla”. Com a idade a pesar e crescentemente sitiado pelo afunilamento dos temas que podia tratar, expressou poucos anos antes de se reformar do Museu o estado de cansaço em que se encontrava. Em caricatura de que pude também adquirir original e foi publicada no “Sempre Fixe” em 1 de Setembro de 1949, sob o título “Os grandes inventos”, ele representa-se à secretária, em ambiente onde não falta o busto de si mesmo, com que se fazia fotografar em pose mais solene (cf. catálogo da exposição das CML acima referido), com ar cansado, em diálogo com o “sempre fixe” (o arquétipo de miúdo ardina que dava nome ao jornal), que lhe pergunta: “O seu caricaturista, já tem assunto para a página?” Ao que Valença responde: “Deixa-me cá. Estou a ver se o descubro.” À angústia da falta de assunto soma-se a do futuro, tanto na resposta do miúdo (“Quando houver a máquina de pensar, não terá muitas arrelias. As páginas saem, ali, garantidas, com legenda e tudo.”) como na sua réplica, que expõe o que tanto o atormentava em já duas décadas passadas. Diz Valença: “Qual história! Quando houver a máquina de pensar, inventarão logo a máquina de censurar.”



Depois de reformado, nos dez anos que ainda teve de vida, continuou a sua actividade de caricaturista da antiga escola bordaliana algo que lhe constituiu simultaneamente força e fraqueza, porque as correntes mais modernistas da época dela se tinham definitivamente afastado e olhavam de soslaio os seus continuadores, ainda que excepcionando o caso de Valença que pela sua intensa produção e pela sua entrega associativa (estava em todos os movimentos de federação e representação comuns) por todos era respeitado.


Nesta fase, Francisco Valença regressou por diversas vezes aos temas do Museu onde trabalhara e dos museus em geral (em certa caricatura colocava os directores dos museus de Arte Antiga e Arte Contemporânea queixando-se da falta de visitantes e sugerindo “só há um meio para aumentar as entradas em muitas centenas: futebolizar as obras expostas”… e mal ela sabia como o tempo lhe viria a dar razão). E manteve sempre o olhar crítico, mordaz mesmo, sobre a vida em seu redor. Fazia-o, como se disse, dentro de limites que lhe permitiam fazer sair o “Sempre Fixe”. Mas nem sequer se deixava seduzir por possíveis sinais de “aligeiramento” da Ditadura a que outros que mais facilmente sucumbiam. O modo como ironizou em relação a Marcello Caetano, que depois do chamado “discurso de Coimbra” abriu espaço à chamada “ala moderada” do Regime (com acerba critica dos ultramontanos, que só mesmo Salazar dirimiu), é disso exemplo. A pouco mais de um mês de se reformar, em 31 de Outubro de 1952, publica no “Sempre Fixe”, sob o título “Os males do coração”, caricatura de que também pude obter o original, na qual um Zé Povinho resignado, marcadamente bordaliano, com pão e vinho na mesa, mexe uma caldo esparso, dizendo em legenda (sob mote de afirmação de um tal Dr. Charles Chassé, que tinha afirmado no “Diário de Lisboa” que “quanto mais elevado é o nível de vida, mais pesado é o tributo que se paga às doenças do coração”): “ – O que vale é o Sr. Prof. Marcello Caetano ter dito que ‘há-de ainda levar muito tempo até se poder cantar vitória na luta pela melhoria do nível de vida’. Ainda bem que de mim estou garantido; até lá não morrerei de fartezas cardíacas.”



Hoje estamos muito longe desses tempos em que a caricatura, para ser publicada, usava de mil máscaras. Depois de 1974 pudemos deixar cair as máscaras mais evidentes, mais opressivas. Mas nunca elas desaparecem por completo, em qualquer sociedade. Na nossa, fomo-las incorporando subtilmente nos limites que nos impomos a nós próprios (bem mais adocicados nos costumes e no trato do que desde finais a Monarquia Liberal até à Ditadura) e aprisionámo-nos em comportamentos “politicamente correctos”, mesmo quando aparentemente os declaramos de ruptura. Até na linguagem isso se vê: abandonamos amiúde as palavras de carga simbólica mais pesada, “revolução”, “povo”, “militante”, “trabalhador”… substituindo-as por outras aparentemente inócuas, “disrupção”, “comunidade”, “activista”, “colaborador”… E, sim, tendemos a viver cada vez mais anestesiados, dentro de “bolhas” de individualismo, de tribalismo ou de “vã glória de mandar”.


Assim vamos agora vivendo, às vezes deitando pedras aos que antes de nós arrogantemente dizemos que desenvolviam atitudes complacentes, senão cúmplices, ditas “cordiais. Tudo na paz de um deus consumista e de mercado que nos promete a felicidade em embrulhos de celofane.


Até que… até que, de repente, o céu nos caiu em cima e todos fomos obrigados e recolar máscaras e cumprir distanciamento social. Bom, chegados aqui, sem capacidade de prever o futuro, e se tal pode ser lícito ao historiador, pois que fique somente o voto de neste dealbar de 2021 possam as máscaras opressivas reais que usámos no ano finado, e ainda usamos e usaremos por mais meses apenas (assim esperamos), máscaras que aceitámos serem acompanhadas de limitações às nossas liberdades mais básicas, tudo suportando resignadamente (à maneira dos valenças funcionários públicos, obrigados até a assinar declaração abjecta de repúdio do comunismo), possam estes últimos tempos de máscaras despertar novamente em nós esse sentimento de desconforto vigilante em que sempre devemos estar quando se trata de pensarmos o que fazemos na vida. E de como a beleza desta se encontra umbilicalmente ligada ao exercício tanto da Liberdade em abstracto, como de todas as liberdades concretas, das do direito à fala até às do direito ao trabalho, aquelas que afinal sentimos no dia-a-dia.


* Luís Raposo é colunista patrimonio.pt.


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