No dia 24 de novembro do ano 2000, numa tarde particularmente chuvosa e tempestuosa, a Raquel Henriques da Silva, à época diretora do Instituto Português de Museus, a Joana Monteiro, a Cláudia Freire e eu, da recente Estrutura de Projeto da Rede Portuguesa de Museus1, chegámos à cidade do Porto para a primeira reunião de base territorial, de um conjunto de cinco programadas para todo o país, com o objetivo de discutir as linhas programáticas da RPM2. Tínhamos preparado, entre agosto e outubro desse ano, um documento para colocar à consideração do setor museológico português numa metodologia participativa inédita no Ministério da Cultura. Dávamos, talvez sem grande autoconsciência, um salto para o desconhecido.
A apresentação estava marcada para a Casa Guerra Junqueiro e, à medida que nos aproximávamos no meio do temporal, crescia em nós a convicção de que iríamos encontrar meia dúzia de colegas que tivessem interesse neste novo projeto. Ao chegarmos, já em cima da hora, à Casa-Museu, fomos surpreendidas pelas cerca de 80 pessoas que nos aguardavam, vindas dos mais distantes ou próximos museus municipais, museus da administração central, universidades, fundações, empresas, associações e, com destaque na primeira fila, os senhores padres e cónegos do Cabido de Braga. A reunião foi animada, participada, calorosa e muito questionante, com trocas de opiniões e esclarecimentos sobre o que poderia ser a rede de museus que se pretendia implementar em Portugal.
Retrospetivamente, acredito que foi no final dessa reunião que tivemos a certeza de que o projeto tinha pernas para andar, ia ao encontro das principais necessidades dos museus portugueses e só podia ser desenvolvido num ambiente colaborativo e com o envolvimento de todos: tutelas, lideranças e profissionais. Creio que foi nesse momento que a Rede Portuguesa de Museus saiu dos diplomas legislativos e entrou no terreno. A RPM tinha sido criada, a exemplo de outras redes e sistemas europeus, num contexto de rápido crescimento do número de museus, como um modelo de “resposta ao caos”, para usar a expressão de Maggi e Dondona, mediante o estabelecimento de regras, modos de cooperação e partilha de recursos, através da utópica figura da rede. A RPM era afinal um fruto simbólico da década de 1990 que assistiu à institucionalização da área da Museologia, alicerçada num organismo próprio, o Instituto Português de Museus.
Daí para cá, a história da Rede Portuguesa de Museus é conhecida, seja por aqueles que a têm vivenciado diretamente, seja pelos que dela tomaram conhecimento através de artigos, entrevistas, estudos, dissertações de mestrado e teses de doutoramento. Cada um fará o seu juízo e não é de balanços que trata esta crónica, mas de algumas notas para pensar o futuro, espoletadas por um recente encontro em torno do futuro da Rede Portuguesa de Museus1, promovido pela Secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, no passado dia 21 de novembro.
Esta reflexão situa-se numa contínua travessia em que os olhares retrospetivos ajudam a construir o que há de vir e em que a análise dos sucessos ganha em ser complementada pela revisão dos erros e dos falhanços. No que toca à RPM, qualquer avaliação beneficiará da ponderação das metas e resultados atingidos, bem como dos retrocessos e omissões ao longo da jornada. O historial da implementação das políticas públicas não é um caminho linear, isento de pedras, de escorregadelas e até mesmo de quedas. As interrupções, a ausência de estratégia e a quebra dos recursos humanos tiveram neste caso consequências danosas que só um esforço conjunto de decisores políticos, lideranças e equipas permitirá ultrapassar.
Embora conceda prioridade a algumas propostas para a revitalização da RPM, não posso deixar de aflorar a atualidade do caráter utópico das redes, socorrendo-me de uma iniciativa recente. No início deste ano, em Paris, o Centro Georges Pompidou apresentou a exposição "Redes mundos", em que 60 artistas, arquitetos e designers se interrogavam sobre o lugar das redes na nossa sociedade.
Das redes imateriais da sociedade da informação às redes artificiais e à influência da Internet, a exposição abordava no último módulo a rede dos seres vivos, que une as espécies, gerando novas formas de conexões entre humanos e não humanos no contexto da crise ecológica que nos consciencializa para a interdependência de todas as coisas. Nesta ótica, a infinitude e o caráter utópico, que são traços distintivos das redes vivas, transparecem nas suas características de adaptabilidade, flexibilidade, ausência de centro e capacidade de reorganização, à maneira das células nos processos biológicos. Assumindo o reposicionamento das redes no mundo contemporâneo, como entidades vivas, plásticas e policentradas, que inspiração podemos colher para a reperspetivação da Rede Portuguesa de Museus?
22 anos depois da sua criação formal, muito mudou na paisagem museológica portuguesa nos planos tecnológico, educativo, territorial, organizacional e de relação com os públicos. Ciente destas mudanças que as limitações de espaço não me permitem detalhar, os meus principais contributos emanam de um coletivo de iniciativa governamental, o Grupo de Projeto Museus no Futuro, que coordenei em 2019 e 2020.
Partimos da premissa de que será necessária uma refundação, uma mudança de paradigma da RPM, baseada em três linhas de ação: conhecer; repensar e reestruturar; unir e programar. As propostas que apresentámos no relatório final são de ordem estrutural, organizacional e programática. Todas exigem pensamento estratégico, foco nos princípios e valores da RPM, atenção ao território, vontade de mudança, flexibilidade e equipas motivadas.
1º vetor: conhecer
Para efetuar um diagnóstico das necessidades, é preciso conhecer o estado atual dos museus que integram a Rede Portuguesa de Museus, os quais foram afetados de formas diferentes pelos efeitos da crise financeira a partir de 2010, e mais recentemente pelo confinamento ditado pela pandemia.
Em linha com a prática de aplicação de inquéritos aos museus portugueses, iniciada com o Inquérito aos Museus de Portugal (2000)3 e interrompida em 2013, recomendámos o lançamento de um inquérito ao panorama museológico em Portugal, incluindo: a caracterização dos museus, dos seus recursos, acervos, instalações, parcerias, visitantes e participantes; a caracterização específica da RPM e do seu funcionamento; o apuramento de indicadores de evolução da RPM; a consulta aos membros da RPM sobre o futuro desta Rede.
Concedo imensa importância a este último item. Os próprios museus, membros da RPM, devem ser auscultados e envolvidos na revivificação desta rede, fazendo uso de mecanismos de governação participativa, no espírito da Convenção de Faro, e recorrendo a encontros presenciais e plataformas tecnológicas.
2º vetor: repensar e reestruturar
Na perspetivação da RPM, propusemos um modelo organizativo diferente do inicial que assentava numa grande autonomia da Estrutura de Projeto, ancorada num Instituto Público. A realidade atual é profundamente distinta, sendo por isso indispensável repensar o papel do organismo central do Estado, a DGPC, e dos seus Museus Nacionais, bem como das Direções Regionais de Cultura e dos seus museus, em especial no atual contexto de transferência de competências para as CCDR.
Sugerimos a distinção entre dois núcleos organizativos da RPM: o primeiro, baseado na “credenciação” e o segundo na figura da “rede”.
O primeiro núcleo, com funções típicas da atuação do Estado, focar-se-ia na credenciação, regulação, monitorização, formação, apoio técnico e financeiro e seria da competência da DGPC. Entendemos ainda que a apreciação das candidaturas à credenciação não ficasse restrita à análise técnica exclusiva dos serviços da DGPC, recorrendo a uma bolsa de consultores externos, formada por peritos, quer de Museus Nacionais, quer de outros museus. É um modelo posto em prática noutros países com longa experiência de acreditação de museus, como é o caso do Reino Unido e da Irlanda.
O segundo núcleo organizativo da RPM estaria dedicado às matérias colaborativas próprias de uma rede e do trabalho em rede. Teria como funções a articulação, o estabelecimento de parcerias, a programação de projetos em rede, trocas de conhecimentos e de recursos, numa economia de meios e com uma maior eficácia na prestação de serviços aos públicos. Poderia tomar a forma de um grupo responsável pela dinamização programática da Rede, eleito entre os seus membros, que estabeleceria as necessárias pontes com a DGPC, numa perspetiva policentrada, e seria assessorado por uma equipa técnica descentralizada de pequena dimensão, garantida por aquela Direção-Geral.
Ainda no plano estrutural, propusemos que o Estado dotasse a RPM dos suportes que estão por cumprir desde a publicação da Lei-Quadro dos Museus Portugueses, em 2004: a criação de “museus âncora”, designados como “núcleos de apoio a museus” naquela lei. Esta medida implicaria a participação de Museus Nacionais e de museus da RPM dependentes de outras tutelas, que se destacassem pela qualidade dos serviços prestados em determinadas áreas disciplinares e temáticas, conforme estabelecido na Lei-Quadro. Estes “museus âncora” ficariam responsáveis por apoiar tecnicamente outros museus nas áreas da sua especialidade e por promover sinergias locais e regionais, nalguns casos formalizando realidades já existentes no terreno, através da dotação de melhores condições técnicas e de recursos.
A sua seleção seria baseada em critérios claros e consensualizados em função da sua área disciplinar, temática ou geográfica, envolvendo os membros da RPM. Antevê-se um processo faseado, que poderia começar pela instalação de projetos-piloto, estendendo-se progressivamente a todo o país e assegurando representatividade regional.
Uma Rede Portuguesa de Museus mais forte e atuante carece também de Museus Nacionais robustecidos, que cumpram as funções previstas na Lei-Quadro dos Museus Portugueses, apoiando tecnicamente outros museus nas áreas de especialidade das suas coleções e funcionando como focos de inovação e de experimentação.
3º vetor: unir e cooperar
A potenciação do trabalho em rede e da circulação de conhecimento demandaria uma linha de trabalho continuada de partilha de informação sobre parcerias e boas práticas, alimentada em plataformas digitais de acesso comum.
Como primeira etapa, recomendámos a criação de um portal da RPM e a realização regular de encontros. O portal privilegiaria a partilha de informação, reporte, receção de contributos, divulgação de iniciativas e fóruns virtuais, enquanto os encontros impulsionariam o debate de temas da contemporaneidade museológica, escolhidos pelos membros da RPM.
Ainda no objetivo estratégico “unir e cooperar”, importaria retomar outra medida da Lei-Quadro dos Museus Portugueses, também por cumprir: as redes temáticas de museus, organizadas por disciplinas e temas das coleções. Estas redes, compostas por profissionais, seriam catalisadoras da criação de grupos de trabalho e da formação em rede, quer à distância, quer em contexto profissional, envolvendo museus com coleções e temas afins. Na prática, recomendámos a inclusão no Programa ProMuseus de um eixo de apoio à criação de redes temáticas de museus da RPM.
Estas recomendações do relatório Museus no Futuro só fazem sentido se a RPM for um espaço favorecedor das parcerias e das colaborações com organizações de cidadãos, grupos de amigos dos museus, associações de defesa do património cultural e de solidariedade social, outras organizações culturais, como bibliotecas, arquivos ou teatros, empresas das áreas da conservação e da transformação digital. A RPM ganhará na interação com outras redes da área da cultura e com planos e estratégias nacionais, como o Plano Nacional das Artes. A expansão da ação da RPM no território, em colaboração com os agentes locais, ajudará a potenciar o impacto social, cultural e educativo dos museus e a afirmar a sua relevância junto das pessoas e das comunidades, afinal a razão de ser e a missão central das instituições museológicas.
Expectativas
Às propostas do relatório Museus no Futuro, acrescento as minhas expectativas pessoais relativamente ao papel dos quatro atores essenciais ao desenho do futuro da RPM: o Estado, as entidades de tutelas dos museus, os seus diretores ou responsáveis técnicos e as equipas.
Do Estado, espero a criação de condições para a participação dos membros desta rede no desenho do seu futuro, os recursos para a sua reestruturação, a alimentação e dinamização da RPM e uma constante atenção aos seus membros, em particular aos museus mais pequenos e aos localizados fora dos grandes centros.
Das entidades de tutela dos museus, espero a garantia dos meios, recursos e condições para o funcionamento destas instituições, autonomia e confiança nas lideranças técnicas, envolvimento dos museus nas redes de desenvolvimento local e regional e favorecimento do equilíbrio entre a preservação dos patrimónios culturais e a transformação social.
Dos diretores ou responsáveis técnicos dos museus, espero sentido de curiosidade para aprofundar o potencial de pertença à RPM, explorando as semelhanças e complementaridades com outros museus, aprofundando a comunicação interna, promovendo uma gestão democrática e o envolvimento das suas equipas.
Das equipas, espero proatividade e abertura à mudança, encarando a participação e a implicação na RPM como fatores de capacitação e motivação, reforço das competências, envolvimento na aprendizagem entre pares e promoção de uma cultura da partilha.
Os tempos que vivemos são marcados por incertezas, dúvidas, ameaças e por questões globais que fazem apelo a uma cooperação incontornável entre indivíduos e entre organizações. Utilizo novamente a metáfora da rede viva, da exposição do Centro Pompidou, para lembrar que a RPM deve constantemente irrigar os canais e fluxos de comunicação entre os seus membros. A malhagem da rede será reforçada através dos fios que ligam os museus, prestando atenção às zonas na penumbra, àquilo que falta matizar, aos museus que não participam ou não exploram o potencial da conectividade, às pontes que devem ser estabelecidas com aqueles que na sociedade não têm acesso ao potencial dos museus. A meu ver, a adoção do pensamento prospetivo utópico e a assunção do paradigma da rede viva reforçarão o papel articulado, orgânico e ágil da RPM e ampliarão o impacto dos museus que a constituem.
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A autora utiliza o novo acordo ortográfico.
[1] Fui responsável pela Rede Portuguesa de Museus de 2000 a 2010: como coordenadora da Estrutura de Projeto (2000 a 2004), Subdiretora do Instituto Português de Museus e do Instituto dos Museus e da Conservação (2005 a 2009) e de janeiro a outubro de 2010, de novo como responsável pela Estrutura do Projeto. De 2011 a 2014, tomei a RPM como objeto de estudo numa perspetiva comparada, no âmbito da minha tese de doutoramento (Camacho, C. F., 2015, Redes de Museus e Credenciação. Uma Panorâmica Europeia. Lisboa: Caleidoscópio).
[2] Camacho, C. F., Monteiro, J., & Freire-Pignatelli, C. (2001). Linhas Programáticas da Rede Portuguesa de Museus. Lisboa: Instituto Português de Museus.
[3] Santos, M. de L. L. dos, & Neves, J. S. (2000). Inquérito aos Museus em Portugal. Lisboa: Instituto Português de Museus e Observatório das Atividades Culturais.
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