O mais recente encontro de que tive conhecimento para discussão do tema dos restos humanos conservados em museus, que teve lugar em Novembro passado no Museu da Acrópole, em Atenas (Human remains in archaeological museums. Ethics and display), tinha como subtítulo “eles não são silenciosos, afinal” e apresentava um conjunto de epígrafes intencionalmente provocatórias, destinadas a fazer pensar os participantes: “restos humanos: objectos de estudo ou antepassados para enterrar?” (Bryony Kelly), “restos humanos: respeito pela morte, respeito pela vida” (Lynn S. Teague), “restos humanos: nem uma pessoa, nem uma coisa” (Jean-François Lebrun). Até Horácio, nas Odes, era convocado para a reflexão: “Nem tudo de mim irá morrer; e uma grande parte de mim escapará à sepultura”.
Trata-se sem dúvida de um tema candente e dos mais sensíveis e complexos para o mundo dos museus na actualidade. A literatura é vastíssima, estendeu-se aos media e nela podemos encontrar posições das mais díspares. A tal ponto que Chip Colwell, conservador sénior de antropologia no Museu de História Natural e Ciência de Denver, pergunta num dos seus ensaios no The New York Times “porque podem os museus expor múmias egípcias, mas não ossos de nativos americanos”, alinhando um conjunto de razões previsíveis (existência, ou não, de laços históricos directos com o presente, diferentes sensibilidades e interditos sagrados…), mas sem referência quer à complexidade e verdadeira substância das reclamações de pertença dos presentes em relação aos passados, quer às dimensões da apropriação secularista (ou profana, se se quiser) desses mesmos passados e dos vestígios que deixou, inclusive humanos, podendo esta ser feita tanto pelo conjunto das comunidades do presente (politicamente organizadas em estados e não em tribos, sem com isso deixaram delas ser descendentes), como pela humanidade em geral, debaixo do paradigma do racional e do irrestrito conhecimento e compreensão do mundo, que a ciência favorece.
Os museus, sobretudo os da América do Norte e da Europa - e entre estes os mais reputados e com maiores colecções de antropologia física - e as associações de profissionais criaram ou aperfeiçoaram códigos de conduta. Citem-se, a título meramente exemplificativo, a “Orientação para o Cuidado de Restos Humanos”, editada conjuntamente pela Conferência dos Directores do Museus Nacionais do Reino Unido e pela Associação de Museus o mesmo país (2005) ou as ”Recomendações para o Cuidado de Restos Humanos em Colecções de Museus”, da Associação de Museus da Alemanha (2013). No Reino Unido, casos como o do Museu Britânico (com cerca de 6000 restos humanos) e sobretudo o do Museu Pitt-Rivers (constituído em grande parte por restos humanos e colecções de estatuto ritual ou sagrado) têm sido especialmente focados, tendo-se intensificado os processos de interacção com comunidades do antigo Império ou de onde houve actividade de missões científicas no passado. Nuns casos, ainda poucos, procedeu-se à sua devolução; noutros à sua dessacralização; noutros à sua pura e simples ocultação.
O Conselho Internacional dos Museus também acompanha com atenção este tema. Começou por fazê-lo no Código Deontológico, uma espécie de bússola de todos os profissionais dos museus, onde se recomenda nomeadamente, tanto na incorporação, como na conservação, estudo e exposição de restos humanos e materiais de significado sagrado, “cuidado e respeito” (ponto 2.5) ou ainda “grande tacto e respeito pelos sentimentos de dignidade humana tidos por todos os povos” (4.5), devendo actuar-se “de acordo com padrões profissionais e, quando conhecido, tendo em conta os interesses e crenças dos membros da comunidade, grupo étnico ou religioso do qual os objectos tenham origem” (4.3.; cf. também 3.7 e 4.4, neste caso para efeitos de retirada de exposição e/ou devolução “às origens”).
A matéria é, de facto, extremamente delicada. Ela envolve não apenas múmias e esqueletos (certamente os mais sensíveis), mas, na verdade, quaisquer restos humanos, desde cabelos a peles, órgãos internos conservados em formol ou até máscaras faciais ou moldes de quaisquer partes do corpo. Por acréscimo pode também envolver mobiliários funerários ou simplesmente sagrados, considerados como integrantes daquilo que se considere a dignidade humana. Sabendo-se que tais mobiliários podem ser, e são, constituídos em muitos casos por objectos de uso comum, inclusive alfaias agrícolas, que se transfiguram através do seu uso ritual funerário, pode toda esta problemática estender-se de facto a grande parte das colecções dos museus, designadamente arqueológicas e etnográficas.
Tomemos três exemplos paradigmáticos do que pode estar em causa na questão da conservação e apresentação pública de restos humanos.
O primeiro, mais antigo, é o de Saartjie (ou Sarah, como foi chamada na Europa) Baartman, dita também (frequentemente com desumano e ofensivo sarcasmo) a “Vénus Hotentote”. Tratou-se de uma mulher do povo Khoisan que foi exibida como aberração em feiras e todo o tipo de exposições, ou mesmo salões de sociedade, na Europa do século XIX. Após a morte, o seu corpo embalsamado foi recolhido no Museu do Homem, em Paris, dando conta tanto de uma tipologia racial como de um modelo cultural, traduzido em disformidades físicas, conhecidas desde as chamadas “vénus paleolíticas” – a chamada esteatopigia. Esteve em exposição até meados dos anos de 1970, mas desde aí acentuaram-se os clamores contra a apresentação em museu de tal pessoa, como se de animal empalhado se tratasse. Investigadores como Steven J. Gould assim se pronunciaram, os representantes do povo de origem também e o assunto tomou especial relevância após a democratização da África do Sul e do apelo de Nelson Mandela para a devolução do corpo, tendo em vista sepultamento condigno – o que foi finalmente feito em 2002.
O segundo caso é o do chamado “Homem de Kennewick”. Este esqueleto, encontrado nos EUA em propriedade federal administrada pelos militares, pertencente aos habitantes iniciais da América (datado há cerca de 9 a 10 mil anos), foi escavado e estudado por arqueólogos e antropólogos físicos (dando aliás origem a monografia de mais de 600 páginas, publicada em 2014 pela Texas University Press), e esteve exposto em museu. A sua antiguidade captou as atenções de líderes dos descendentes da comunidade indígena que habitava a região à data da chegada dos europeus e dos confrontos com estes, ou seja, largos milhares de anos depois da efectiva existência daquele homem e da população que integrava. Pretenderam que seria “o antigo”, um ancestral seu, e desencadearam um processo social e judicial de reclamação da sua devolução, para sepultamento de acordo com os seus rituais. Após sucessivos recursos, com sentenças opostas, a decisão final acabou por chegar, obrigando o museu Burke (um museu de história natural e cultura, sediado em Seattle) a devolver o esqueleto. O elemento decisivo considerado pelo tribunal terá sido o da existência de traços “asiáticos” ou “índios” no ADN do esqueleto, ligando-o assim às ditas comunidades indígenas – fraco argumento, diríamos, porque óbvia e necessariamente todas as populações primitivas americanas teriam de possuir tais traços, porque não caíram do Céu, não sendo caucasianas e tendo, sim, origem partir do continente asiático. Após devolução, o esqueleto foi reenterrado, ou seja, destruído.
O terceiro e mais recente caso, apenas concluído em 2017, pelo seu trânsito final em julgado, é o do chamado “Homem de Lombroso”, em referência ao célebre psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista e antropólogo italiano César Lombroso, que em 1870 estudou, debaixo do paradigma do positivismo, o crânio de um fora da lei da região de Catanzaro, Giuseppe Villella, usado como suporte da teoria hoje totalmente ultrapassada de que seria possível identificar àquele nível traços distintivos das atitudes e comportamentos criminais. O crânio passou a integrar as colecções do Museu Universitário de Turim, mesmo depois de comprovada a inconsistência da teoria de Lombroso, porque lhe foi, e é, atribuído especial significado na história da ciência.
Acontece que em 2011, um tal Movimento Neoborbónico (nostálgico defensor do “povo das Duas Sicílias” e opositor de todas as ideologias…) exigiu que a Câmara Municipal de Motta Santa Lucia, terra de origem Villella, apresentasse uma queixa em tribunal contra o Ministério da Educação, a Universidade Turim e o Museu Lombroso, solicitando o retorno do crânio para ser devidamente sepultado. As autoridades académicas e museológicas opuseram-se, o ICOM Itália primeiro e depois o próprio Comité de Assuntos Éticos do ICOM mundial pronunciaram-se no mesmo sentido, valorizando primariamente o valor documental do crânio e, após sucessivos recursos judiciais, o assunto acabou por ser definitivamente decidido em favor dos argumentos científicos, preservando o crânio, que assim permanece em exposição do Museu Lombroso.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados. E posições diferentes, até diametralmente opostas, poderiam ser indicadas. Em certos casos, representantes de comunidades indígenas com efectiva relação histórica directa com antepassados conservados em museus reclamam a sua devolução; noutros casos, pelo contrário, não somente a não reclamam (ou reclamam “apenas” por questões de pertença), como continuam eles mesmos a criar museus com tais restos (caso emblemático do Perú e de praticamente todos os países Sul e Centro Americanos; caso também do Egipto no que respeita e restos do tempo faraónico, que têm até sido crescentemente objecto de exposições-espectáculo); noutros casos ainda, os líderes de comunidades indígenas investidos do poder para o fazerem, executam cerimónias nos museus, pelas quais “dessacralizam” restos humanos e objectos rituais, que assim passam a poder ser expostos, nos termos do racionalismo científico “ocidental”; e, finalmente, ocorrem as mais extravagantes tomadas de posição, seja por parte de grupos que inventam laços de pertença sem real substância histórica, seja por parte de pessoas carentes de causas, normalmente urbanos angustiados.
Em Portugal, estes temas são ainda pouco falados, ainda que haja casos a reflectir e exista já alguma polémica. A exposição de duas múmias humana peruanas, da civilização Chancay, recolhidas em 1878 pelo Conde de S. Januário, embaixador plenipotenciário e viajante por muitos países Sul-americanos, foi nos últimos anos alvo de contestação, tendo mesmo sido recomendado ao museu que as destruísse, se fosse necessário, para que pudessem “repousar em paz” (sugestão que os museólogos peruanos e os representantes das comunidade Chancay consideraram descabida, tanto mais que na actualidade se dedicam a remodelar e abrir de novos museus sobre o tema, com as ditas múmias).
Seja com for, o problema existe e deve ser levado a sério. Os museus, como foram reinventados modernamente em ambientes laicos e cívicos, mobilizados pelo que Crispin Paine, no seu já clássico ensaio sobre "Objectos religiosos em museus" (Bloomsbury, 2013), designou por "ethos secularista", têm sido confrontados desde sempre com forças actuando em oposição à livre investigação, forças que reivindicam interditos – áreas proibidas à razão humana. A Era da Razão na Europa, posteriormente expandida em todos os azimutes, representou uma pedra angular em direcção a uma visão secularista do mundo. E os museus foram usados como dispositivos nessa evolução e continuam a sê-lo hoje em regiões onde as visões obscurantistas ainda são importantes, se não dominantes. Os exemplos de descontentamento de grupos guiados por valores religiosos ou sagrados em relação ao que consideram ser “a maneira ocidental" de avaliar o património, não se limitam apenas aos casos mais extremos e bem conhecidos dos budas afegãos de Bamyan ou das figuras mesopotâmicas sírias no Museu Aleppo, recém-destruídas; ou às estátuas romanas na Argélia, retiradas de exposição, escondidas por causa de sua origem pagã).
Não, a situação é muito mais ampla, como documenta Paine: na Índia, por exemplo, “a religião – geralmente nas suas formas mais triunfalistas e intolerantes – está em ascensão e é o secularismo que se sente cercado; o ethos secularista sobre o qual a nação foi construída parece ameaçado pelo fundamentalismo religioso... Como resultado, alguns secularistas passaram a ver os museus como bastiões da razão contra as forças da irracionalidade”.
Em face de tudo isto, que pensar? Bom, pessoalmente entendo que ainda hoje, como sempre, os museus têm o direito de defender a sua posição de “bastiões da razão”. Mas não existem respostas simples para questões complexas.
Tomados os três exemplos acima citados, eu diria que o da chamada “Vénus Hotentote” representa um extremo em que os museus têm obrigação de prescindir da sua perspectiva racionalista, em nome de valores humanistas básicos, incorporados no adquirido civilizacional contemporâneo. Foi por isso correcta a restituição, mesmo tendo em vista a sua destruição pelo enterramento. No caso do chamado “Homem de Kennewick”, pelo contrário, considero trágico o resultado obtido e recrimino vivamente o museu por se ter finalmente rendido ao “politicamente correcto” – o que ainda-por-cima só fez depois de consumada a destruição, numa atitude de evidente pusilanimidade. No caso do chamado “Homem de Lombroso”, encontro-me muito mais dividido: o museu, a ciência, ganhou, mas pergunto-me se legitimamente. Confesso que, não obstante as opiniões de muitos colegas, alguns com grandes responsabilidades no ICOM, continuo a ter grandes dúvidas, porque afinal tendo a considerar que os museus não têm o direito de manter e exibir sem permissão corpos humanos (realidade de alguma forma diferente de "restos humanos" em geral, dado que estes podem referir-se a resíduos mais "neutros", como cabelos, por exemplo) de pessoas modernas identificáveis, com parentes vivos directos (até algumas gerações antes, talvez duas ou três, não tenho certeza). Mas mesmo aqui as excepções devem ser consideradas, referindo-se tanto a "personagens públicos" (como chefe de Estado), onde o olhar social poderá ser mais atendível do que o privado, como a valores gerais de cidadania e memória. Seria por exemplo inaceitável pretender que a exposição, agressiva e chocante, de pilhas de restos humanos feita em Auschwitz fosse retirada, mesmo que assim possa haver quem entenda que se desrespeitam as vítimas – como, no mesmo balanço, existe quem mais prosaicamente queira simplesmente fazer esquecer, ou até duvidar, dos horrores do nazismo.
Respeitemos, pois, os indivíduos com nome próprio e sem verdadeiramente dimensão pública que nos museus possam ser guardados e devolvamo-los às famílias. Quanto a tudo o resto, o princípio geral deve ser o de que os museus podem exibir todos os outros restos humanos, dentro de estritos quadros respeitosos e científicos.
O problema é que, dito isto, diz-se pouco, porque as dificuldades reais surgem quando se começa a considerar tudo o que existe no meio. E é muito. Índios americanos, devem todos eles ser considerados proibidos de ser exibidos? Até que ancestralidade? Certamente não, a meu ver, até as primeiras ocupações humanas na América do Norte, milhares de anos atrás. Neste caso, o olhar científico deve prevalecer sobre o identitário ou étnico. As múmias sul-americanas pré-hispânicas ou esqueletos medievais do norte da África devem ser enterrados todos, não permitindo nenhuma investigação científica e salvaguarda em museus? Não novamente, a meu ver, independentemente da posição religiosa assumida pelos actuais poderes políticos ou activistas comunitários em cada região. Na América do Sul, os poderes políticos favoreceram a exibição de múmias (e de fato os museus mais impressionantes do género estão aí localizados); alguns representantes indígenas opõem-se, mas não todos, longe disso. No norte da África, acontece o oposto: a maioria dos poderes políticos opõe-se à exibição de restos humanos, se forem de períodos islâmicos (podem eventualmente aceitá-la, se de períodos "pagãos", romanos e outros); as pessoas em geral são muito mais tolerantes. Aquilo que numa região é considerado respeito indigenista, noutra é considerado fundamentalismo religioso. E, o mais burlesco, é que esta dupla avaliação é assumida com frequência pelas mesmas pessoas, normalmente “activistas” grávidos da procura de causas justas.
A questão não é fácil, como disse. E nós, pessoas de museus e ciência, precisamos ser cautelosos, atentos e de mente aberta quando confrontados com esta problemática. Tenho, no entanto, receio que estejamos a entrar num novo período de sombras, onde valores racionais, secularistas ou positivistas dão cada vez mais lugar à moral obscurantista religiosa. O caso do chamado “Homem de Kennewick” é paradigmático. Perdemos aí a batalha. Pergunto-me e pergunto a quem me lê se iremos, pouco a pouco, perdendo todas as batalhas futuras, terminando novamente num mundo cheio de interditos, um “admirável mundo novo”.
Comments