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Património musical português: a importância do movimento associativo


O convite para colaborar com a patrimonio.pt, que prontamente aceitei (porque pensar sobre património deve ser quotidiano), leva-me nesta primeira contribuição a sintetizar duas questões essenciais que têm atravessado o trabalho desenvolvido na minha atividade profissional.


a) Particularidades da classificação de música erudita como património

Património é aquilo que se escolhe preservar mas, antes de ser uma categoria ou uma área científica, compreende um objetivo: o da salvaguarda (tal como os patrimónios financeiros que se pretendem protegidos de ameaças e que, preferencialmente, aumentem ou rendam um tanto).

Se o objetivo está colocado, cabe a pergunta seguinte: quem decide o que deve ser protegido? Quase todos os países, hoje, têm corpos técnicos capazes de, dentro das modas correntes ou das necessidades urgentes, escolher o que deve ser protegido. Mas há categorias de património que se encontram em limiares de difícil definição ou que ainda não estão bem enquadradas em políticas de proteção patrimonial.


A música é um tipo particular de património: ao mesmo tempo material e imaterial, com paralelos talvez apenas na gastronomia ou na perfumaria. Gostaria de chamar atenção para um tipo particular de música: o de tradição erudita ocidental. Há uma falsa impressão de que, por ter concertos com bilhetes caros ou por ser associada a uma “cultura de elite”, a música dita “clássica” seja menos perecível ou não requeira apoios exteriores. No que tange ao património musical nacional de muitos países isso não é verdade. Enquanto há produções caríssimas de concertos e de óperas de grandes nomes canónicos, os compositores portugueses têm sido muito menos representados e conhecidos fora do meio restrito dos profissionais da música. Isso gera uma sensação errónea de que não há um património musical expressivo que mereça atenção. O problema é que muito deste património ainda está por ser descoberto nos arquivos e bibliotecas do país, sendo assim impossível um juízo categórico de valor prévio. Uma outra questão é que, sendo bom ou mau, há uma importância histórica no seu conhecimento que extrapola os recortes do país presente e ajuda a compreender o passado coletivo.


No campo patrimonial, essa dificuldade talvez se deva ao carácter bastante complexo do que é “património musical”. As partituras suportam a execução musical, estabelecem uma gramática para a sua transmissão e documentam modos de pensar, mas são limitadas e vazias sem o conhecimento dos gestos musicais, sem o savoir-faire interpretativo passado de geração a geração, em muitos casos sem a utilização, ou pelo menos adequação, de instrumentos históricos — muitos desaparecidos ou desconhecidos, mas com alguma sorte preservados em museus (e quase sempre em situação de grande fragilidade).


Assim, é possível perceber que a música erudita estaria mais próxima do campo do património imaterial: ela depende de alguns objetos físicos para sua execução, mas transcende-os, sendo fundamental, para a sua prática, a passagem oral de conhecimento, o desenvolvimento pessoal de competências artísticas de leitura e execução da obra de arte.


Ora, refere a Convenção para Salvaguarda do Património Imaterial de 2003 que são “«património cultural imaterial» as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões — bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados — que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural” (art.º 2, par. 1). Salvaguardar também é interpretar e dar a conhecer, e a interpretação e a execução dependem da preservação de património material. Uma partitura ou as páginas de uma receita culinária são, no fim, apenas fórmulas, um meio. As receitas, tal como as partituras, estão cheias de lacunas a serem preenchidas pelo seu executor. Para serem apreciados e conhecidos na totalidade, tanto a comida quanto a música devem ser experimentados. É possível escrever uma obra literária inteira sobre um prato sem que efetivamente seja possível conhecê-lo; são patrimónios que dependem de sentidos outros, além da visão ou do tacto.


b) A importância dos movimentos associativos

As associações em todo o mundo têm cumprido um importante papel da defesa do património, primeiro por permitir que a decisão do que se protege seja tomada pela própria comunidade a quem essa herança se refere, em abordagem democrática; segundo porque as associações muitas vezes detectam de forma mais imediata o que está em falta dentre os patrimónios que devem ser protegidos, já que essa percepção pode fazer parte do seu próprio campo de atuação ou de dificuldades vividas no dia-a-dia da comunidade. Ao ser um trabalho realizado pelas próprias comunidades, a missão patrimonial “auto-realiza-se”, em uma metáfora hegeliana: ou seja, selecionando e alimentando a identidade das comunidades, a ação de escolha do que deve ser protegido já revela quais aspectos, festas e saberes se consideram parte constituinte da própria comunidade. É igualmente dentro das associações que os saberes relativos àquilo que se define como vulnerável podem ser transmitidos para outros.


Além disso, o trabalho associativo ainda proporciona representatividade para as comunidades locais; no caso da música erudita portuguesa, os compositores, músicos, musicólogos e biblioteconomistas podem compreender-se no passado e assim construir novos caminhos para o futuro. Ao trazer à tona o património português passado, novos interesses são revelados nessa descoberta, suscitando trabalhos e produções originais que dialogam com o mundo e com aquilo que já existe.


Conclusão

A população deve ser ouvida! Se o património é público, a responsabilidade de protecção também o é: envolvendo todos os agentes patrimoniais e suas comunidades, isso não pode deixar escapar a importância das políticas públicas para aquilo que é detetado como património. É também por essa razão que interessa compreender bem qual é a natureza patrimonial dos objetos tratados, quais as suas especificidades para proteção e para serem dados a conhecer. A música erudita tem recebido pouca atenção: a sua proteção patrimonial inclui a salvaguarda e restauro de arquivos documentais, de objetos musicais históricos, mas também de investigação e de interpretação, para que seja amplamente (re)conhecida e valorizada.


Em tempo

A cidade de Veneza foi alagada nesta semana. O Conservatório de Música local, como não poderia deixar de ser, sofreu igualmente com a intempérie, pondo em risco uma grande quantidade de partituras históricas, incluindo um autógrafo de Vivaldi. Os próprios alunos e ex-alunos do Conservatório foram ao local para ajudar a “secar” as páginas das partituras, um trabalho que, se não fosse feito a tempo, colocaria em sério risco os documentos. Este é o indício mais bruto do quanto a proteção patrimonial depende do interesse contínuo das suas comunidades e de como precisa de ser sempre alimentado, enunciado, transmitido entre as gerações. Infelizmente, o trabalho de proteção patrimonial precisa quase sempre de ter como motor alguma tragédia, situação de risco ou ameaça de destruição para que os olhares do grande público se voltem para ele.

 

A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.


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