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Parar, ouvir, transformar - por um mundo Oxalá



Nos últimos meses muito temos pensado e trabalhado em torno dos temas e assuntos que a exposição Europa Oxalá levanta. Desde a sua inauguração a 4 de março que assistimos a um imenso movimento de visitantes e de realização de visitas, conversas, workshops, que traduzem e revelam uma grande vontade de questionar, reler e repensar uma determinada ideia de Europa que assente não apenas num sentido crítico de leitura pós-colonial mas também num ativar de desejos de outros futuros e de reimaginação das suas possibilidades.


Esta exposição, com curadoria de António Pinto Ribeiro, Katia Kameli e Aimé Mpane, é uma co-produção e colaboração de quatro instituições - o Museu Real da África Central em Tervuren (Bélgica), o Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo em Marselha (França), a Fundação Calouste Gulbenkian – Delegação de França e o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal) através do seu projeto europeu MEMOIRS - Children of European Empires and Postmemories.


Plena de diversidade, cruzamentos culturais e pensamento político suscita de forma muito evidente e rica a curiosidade de novos públicos que a visitam trazendo outras vozes e perspetivas.


Nela encontramos cerca de 60 obras dum conjunto de 21 artistas das segundas e terceiras gerações afrodescendentes, cujas origens familiares estão ligadas às antigas colónias portuguesas, francesas e belgas em África. “Artistas nascidos e criados numa Europa de contexto pós-colonial, que trabalham sobre este passado coletivo e cujas obras se tornaram incontornáveis na arte contemporânea europeia, propondo uma reflexão sobre as suas heranças, as suas memórias e as suas identidades”[1] - numa mistura de biografias pessoais e identidades de países e de continentes, que questiona uma história da arte eurocêntrica e a sua epistemologia, desconstrói mitos sobre “arte africana”2 e abre “outros espaços de inscrição artística, outros temas, outras linguagens potencialmente regeneradoras.”[2]


“O carácter inovador e transnacional do trabalho destes artistas da «pós-memória» tem vindo a marcar profundamente a paisagem artística e cultural das últimas duas décadas e a maneira como alguns deles conjugam linguagens contemporâneas e processos tradicionais constitui um contributo essencial para a Europa contemporânea.”[1] As suas obras trazem o cunho criativo de uma diversidade cultural europeia e abrem caminho a novas interpretações da própria noção de Europa.


É uma oportunidade para parar e pensar sobre as ligações assimétricas entre Europa e África permitindo desconstruir o olhar eurocêntrico ainda dominante e encarar as diferentes perspetivas e versões da História e das estórias que contamos sobre nós próprios e com as quais desenhamos o mundo que temos e o mundo que queremos.


Os fluxos de populações que tiveram uma experiência colonial determinaram a transição da Europa como continente colonizador para uma Europa pós-colonial. “Hoje, os filhos e netos de gerações que experimentaram processos de descolonização, bem como muitos cidadãos não ocidentais que vivem no Ocidente, questionam-se sobre uma nova perspetiva de enunciação. Uma dessas questões diz respeito ao lugar híbrido em que vivem, o do europeu não branco, o europeu oriental, o europeu latino-americano”[3] e outros.


“Durante séculos, os museus contaram histórias sobre uma diversidade de pessoas, apresentando essas histórias a partir da perspetiva de quem está no poder. Assim, os museus reforçaram a supremacia branca, o sexismo, o colonialismo, o capacitismo, a heteronormatividade.”[4] Esta exposição vem questionar estas visões e abrir espaço para que surjam outras.


Visitar as memórias de um passado de escravatura e colonialismo impõe-se hoje se procuramos gerar espaço de debate de construção de territórios de futuro partilhados em democracia. Se os museus podem de facto contribuir para construir melhores futuros é importante que desenhem programação neste sentido, gerando os espaços e as oportunidades (quer nas exposições, quer na programação) para que a mudança se faça em conjunto.


Partindo destas obras trabalham-se os fantasmas e fantasias deste passado com os olhos no presente e os ouvidos nas partilhas de quem as visita e que afirma de forma confiante ou hesitante que apesar de nascidos e criados em Portugal não se sentem nem portugueses nem europeus, como muitos adolescentes afrodescendentes têm partilhado em cada visita que fazemos. A discriminação com que crescem e que sentem diariamente, seja pela cor da pele, pelas texturas dos cabelos ou pelo sotaque das suas muitas “língua(s) portuguesa(s)” marca experiências identitárias que no contexto desta exposição são partilhadas de forma franca e aberta, gerando debates na turma que muitas vezes ainda não tinham sido abordados no contexto aula. Perceber que o contacto com uma obra de arte permite abrir espaço para partilhas difíceis e conversas que de outra forma não aconteceriam faz perceber a importância da criação destes territórios seguros de encontro e partilha. Nunca em nenhuma outra exposição ouvimos tantos relatos na primeira pessoa, tanta vontade de discutir temas “difíceis”: é difícil crescer e contruir uma identidade de pertença quando se ouve vezes sem conta “vai para a tua terra” ou “fala português que não te percebo”, prova de um racismo velado que ouvimos insistentemente que não existe.


Nestes encontros e nestas partilhas reforça-se a necessidade de promover espaços onde a escuta se possa fazer e a mudança se possa desenhar, e é aqui que acreditamos que reside em parte o poder dos museus e a importância da arte na transformação das sociedades.


Também por isso no âmbito da programação, para além de visitas e debates, têm nascido projetos de maior continuidade, parcerias entre museu e escola – Fábrica de projetos [6] de que gostava aqui de destacar dois – CAM(inhos) para uma educação antirracista com uma turma de terceiro ano da escola EB1 do Castelo e No meu corpo cabem vários continentes com alunas finalistas da licenciatura em Dança da Escola Superior de Dança.


São projetos que dilatam o tempo para pensar sobre os assuntos introduzidos pela exposição e permitem reflexões aprofundadas e consistentes a partir da vivência da exposição como um espaço imersivo, como um laboratório de pensamento onde a cada retorno, a cada sessão de trabalho se descobre algo novo na presença e encontro com as obras que passam a ser conhecidas, parte de um quotidiano destes alunos(as) que visitam e vivem o museu como um espaço habitual nas suas rotina, como “um lugar para aprender e desfrutar”.(Hooper-Greenhill 1998)[7]


Onde na presença física das obras se ativam múltiplas experiências multissensoriais e vivenciais proporcionadas por estas e pelo ambiente em que se inserem, estabelecendo a possibilidade de uma relação aprofundada que ocorre neste estar em presença e poder revisitar e requestionar descobrindo continuas camadas de interpretação num território que se vai confirmando fértil de “aprendizagens duradouras, significativas e efetivas”.(Silva, 2008)[8]


Cada um destes projetos, à sua maneira, mergulha nos conteúdos das obras e trabalha sobre direitos humanos e cidadania, num currículo de justiça social e na esfera da educação artística, refletindo sobre o racismo, a descolonização das artes, o poder da arte e a desconstrução do pensamento colonial.


Por um lado, com os mais pequenos (alunos de terceiro ano) explora-se o pensamento critico, abrangente e inclusivo, num projeto longo de já 8 meses, que conta com diferentes momentos de exploração, idas à escola, conversa com uma curadora do CAM (Centro e Arte Moderna), conversa com artistas e aulas semanais no espaço expositivo. Trabalha-se a empatia e o imaginar-nos noutros lugares que não o nosso, a tolerância, a multiplicidade de respostas e perspetivas, o pensamento amplo e divergente, a promoção do desenvolvimento de valores, comportamento e atitudes relacionadas com a inclusão, a equidade, o respeito pela pluralidade cultural, igualdade de género, coesão social e da cidadania ativa.


E porque não procuramos apenas visitantes mas participantes, é importante que estes alunos de terceiro anos sejam também eles produtores de leituras. Das suas interpretações das obras e pensamentos sobre esta Europa Oxalá, nascerão agora outras visitas - uma visita orientada por eles próprios para familiares e amigos onde as suas vozes e leituras se tornam um novo espaço de partilha e questionamento.


Perguntas importantes e pontos de reflexão que surgem ao longo das sessões fruto de um olhar atento, indagador, de que destaco alguns exemplos:


“Esta obra faz-me lembrar o meu tio que não conheci porque morreu na guerra”. “Serve para lembrar e esquecer”.

Sammy Baloji, sem título, 2016-2020 | Instalação, invólucros de obus e plantas tropicais ©Pedro Pina

“Fala das falhas na Europa, como a guerra na Ucrânia”.

Sammy Baloji, Ngunda, 2018-2020 | Instalação ©Pedro Pina


“Faz-me pensar sobre um mundo sem fronteiras.”

Fayçal Baghriche, | Souvenir, 2009 & Épuration élective 2009 ©Pedro Pina


“Esta obra fala do passado, do presente e do futuro”.

Sabrina Belouaar, Dada, 2018 | Dada (escultura, molde de mãos, em gesso, e cinto velho em couro, dimensões variáveis) ©Pedro Pina


No segundo projeto, iniciado há 4 meses com a Escola Superior de Dança, é o corpo que fala e as alunas vão compondo uma coreografia que parte das suas interpretações das obras e dos seus pensamentos sobre o mundo. A performance de dança de que estas alunas são autoras, em co-criação com o professor da disciplina de Projetos e o setor de educação do CAM, terá apresentação pública como mais um dos espaços de leitura da exposição.


Neste pensa-se o museu como espaço de imaginação em que as obras se ativam através do movimento e “em que a força de um corpo cria um rasto de mil corpos”, nas palavras de uma delas.


Trabalham-se as questões da cidadania, na promoção de uma forma de pensar ativa, questionadora e criativa, que promove a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o diálogo e respeito pelos outros, num projetar de modos de estar em sociedade que tenham como referência os direitos humanos, nomeadamente os valores da igualdade, da democracia e da justiça social. Estas abordagens ancoradas nas obras de arte resultam num trabalho criativo de criação coreográfica contemporânea que se pensa como uma forma de mediação artística entre as instituições museu e escola, num processo de relação educativa horizontal: alunas-professor-mediador(a) que implica o risco, o desconhecido, a democracia, a política, a inclusão e a diversidade como eixos fundamentais.


Às suas ideias iniciais sobre as obras vão-se somando camadas novas de conhecimentos e relações criando ativadas pelo trabalho da mediação e de relação repetida com as obras e o espaço expositivo. É neste outro espaço da familiaridade e da construção regular que surgem frases como estas: “Como a verdade termina como uma não verdade”; “Hoje senti-me conectada com a rejeição feminina, uma sensação de vergonha, mas força ao mesmo tempo. Fechei os olhos e tentei transpor os problemas e/ou dia a dia nestas situações”. E é este processo de nos fazermos outros no contacto com o fazer artístico e com a reflexão que nasce a mudança que tanto sonhamos.


Projetos como estes deixam lastro nas vidas de quem os vive, transformam de dentro para fora envolvendo os participantes como sujeitos ativos na produção de conhecimento, como criadores que contribuem e assumem a sua responsabilidade num futuro com desejos de porvir.


Exposições como esta ampliam as possibilidades de escuta e transformação ao promoverem conversas importantes e urgentes sobre que futuro queremos construir como Europa e como mundo e potenciam os museus como “instituições capazes de reflexão e transformação, não só das suas visões da educação, mas sobretudo do seu papel e responsabilidade cívica num mundo desigual, convulso, violento e complexo. Para podermos, como diz Wayne Modest – construir novos e melhores futuros.”[9]


Por um mundo Oxalá em que “A arte serve para conversar com o futuro” (Aluna do 3ºano do 1ºciclo, 2022, projeto (CAM)inhos), promovendo tolerância, respeito e o potencial das infinitas releituras e reconstruções identitárias.


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[4]SINGER, E. (2021) Refocusing museums on people: my dreams for museums in a post-covid world. artmuseumteaching.com/2021/04/26/refocusing-museums-on-people/

[7] HOOPER-GREENHILL, E. (1998). Los Museos y sus Visitantes. Madrid: Ediciones Trea, S.L.

[8] SILVA, S.G. da, (2008) Experiência museal, conhecimentos prévios e construção de memórias. In BARBOSA, A.M.& COUTINHO, R. G.(org.). Arte como mediação cultural e social. (121-129) UNESP

[9] SILVA, S. G. da, (29/01/2021). Museus fechados…Museus abertos…Acesso Cultura. património.pt - https://www.patrimonio.pt/post/museus-fechados-museus-abertos


A autora utiliza o Acordo Ortográfico.


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